Por José de Sousa Miguel Lopes

 

O cinema, com seus “truques”, “ilusões”, “magias”, e “efeitos” introduzidos, desenvolvidos e referenciados ao longo do tempo, preencheu uma grande expectativa posta desde meados do século XIX, quanto à busca por um realismo cada vez maior na representação da realidade, sem deixar de lado, no entanto, de enfatizar o teor “ilusionista” do seu espetáculo. O desenvolvimento e a criação de novas possibilidades para a produção de trucagens, ilusões, magias e efeitos conseguidas pela introdução de novas tecnologias no cinema exerceram um tipo de “efeito regenerador” na condição “espetacular” fosse essa introdução motivada pela intensão de construção de um realismo mágico ou não. De uma maneira ou de outra, o incentivo à introdução de novas tecnologias no aparato cinematográfico sempre encontrou apoio no entendimento generalizado de que “O cinema só se justifica se fornece e até impõe sentido a uma realidade que estaria um tanto desprovida de sentido” (Aumont, 2004, p.29).

Falar em cinema é falar da cidade, o espaço privilegiado onde, desde o seu nascimento, ele opera e a partir do qual se estabeleceram proveitosos diálogos para ambos. Com efeito, através do diálogo entre as representações do espaço urbano e a linguagem cinematográfica percebe-se o quanto as cidades podem ser concebidas como invenções sociais, na medida em que se constituem e se representam através das relações entre os indivíduos e desses com o seu ambiente. Os espaços vividos dos filmes podem ser considerados espaços da memória que são acionados na vivência cotidiana da cidade “real”, tornando-se constante elemento comparativo. O caminho, por certo, é de mão dupla: nos filmes estão presentes questões, angústias, desejos frustrados ou realizados e felicidades conseguidas ou impedidas da vivência da cidade “real”, como também a vivência na cidade concreta pode ser alterada pelos clichês fílmicos.

Face ao exposto, começaremos por analisar neste texto como se construiu a relação do autor com o cinema. Em seguida, abordaremos o conceito de educadores/cinéfilos e como estes estabelecem um diálogo com a educação. Finalmente, teceremos algumas considerações sobre o modo como o Cinema dialoga com a História e a memória.

Minha relação com o cinema

Poderia dizer que jamais frequentei uma escola de cinema. Esta afirmação não é inteiramente verídica porque, decerto, frequentei uma escola, aquela à qual me dirigia todo o sábado ao fim da tarde, no Moçambique colonial: o Cineclube de Lourenço Marques. Estamos nos finais da década de 60 do século passado. Frequentava o Curso de Economia na Universidade da capital moçambicana e, através de colegas, me inscrevi como sócio nessa agremiação cultural. Foi assim que entrei em contato com a cinematografia de Eisenstein, Welles, Bergman, Fellini, Antonioni, Bertolucci, Visconti, Truffaut, Godard, Resnais, Ford e de tantos outros clássicos.

No pós-independência (1975), e em decorrência da Guerra Fria, Moçambique parte para um projeto de construção de socialismo e, nesse sentido, passa a ficar alinhado ao mundo socialista. Diminui o fluxo de filmes provenientes do campo capitalista e se ampliam, de forma significativa, as cinematografias originárias do campo socialista. Devo registrar que se tratava de um cinema inteiramente desconhecido para mim.

Pela primeira vez, tive também a possibilidade de conhecer o cinema africano. Obras do Senegal, do Mali, do Egito, da Argélia, da República Saariana Democrática, entre outras, que, com poucos meios financeiros e tecnológicos, me revelaram produções de grande originalidade e com uma forte carga de denúncia à empresa colonial e à sua herança. Os filmes do senegalês Ousmane Sembene tornaram-se uma referência para se poder repensar um cinema em rota de colisão com o cinema dominante.

Enfim, aprimorei meu gosto pelo bom cinema depois de ter tomado contato com cinematografias mais díspares. Sobretudo, me habituei a escolher filmes como escolhia livros para ler: pelos seus autores.

Assim fui dando cada vez mais importância ao trabalho dos diretores que considero os criadores centrais da produção cinematográfica. Não porque os diretores devam ter o mérito exclusivo por tudo o que vemos e ouvimos na tela – muitos filmes são grandes filmes devido à ação de seus atores, escritores, produtores ou montadores – mas sim porque são os diretores aqueles que ligam umas às outras as partes criativas e supervisionam o que dá vida às palavras do roteiro. Dirigir é, penso eu, a raiz da grandeza de um filme. A capacidade de uma imagem ser ao mesmo tempo aquilo que é objetivamente fotografado – aquilo que está à frente da objetiva – e aquilo que está na subjetividade do artista, explica, penso eu, o sedutor dualismo que é o próprio coração do cinema. A música, sendo menos ilustrativa do que o cinema é mais pura e evocativa; o romance descreve mais habilmente os processos da mente; a pintura é mais diretamente expressiva, a poesia muito mais vaga. Mas nenhuma destas artes é tão ambivalente como o cinema, pois ele exprime de forma paradoxal aquilo que é pessoal, mas também o que é objetivo e está para além da consciência.

Posteriormente, nos finais dos anos 80, em Belo Horizonte, frequentei um curso de extensão ”Introdução à estética do cinema”. Emocionava-me ver a generosidade com que o professor Starling Carlos, da UFMG, um profundo conhecedor e entusiasta do bom cinema, trazia de sua casa o vídeo e televisão pessoal, equipamento que, a cada aula, transportava no seu carro. Suas aulas eram preparadas cuidadosamente, passando fragmentos de filmes selecionados minuciosamente e procurando chamar a atenção para os pontos mais significativos das imagens mostradas. Em cada aula, distribuía vários textos sobre arte cinematográfica e desencadeavam-se boas discussões.

Na minha trajetória de educador, fui progressivamente começando a utilizar o cinema nas minhas aulas. Isso tem ocorrido mais fortemente nos cursos de Graduação, nas disciplinas de Antropologia Cultural, Filosofia da Educação e História da Educação. Utilizo também o cinema na disciplina do Mestrado em Educação “A linguagem do cinema e questões pedagógicas: elementos para uma educação do olhar”.

A receptividade dos alunos tem sido enorme e tem-se traduzido por debates calorosos. Frequentemente, após o debate, os alunos referem que gostariam de voltar a ver o filme acabado de assistir. Outros tomam a iniciativa de procurá-lo na internet e se debruçam sobre ele nos finais de semana. É muito comum, ouvirmos alunos dizer que não gostaram do filme acabado de passar, mas que, após o debate, mudam radicalmente sua opinião. Com efeito, as contribuições dos colegas, minhas chamadas de atenção para alguns aspectos da obra, acabam ampliando os horizontes de análise, revelando as complexidades, possibilitando a “leitura das entrelinhas”, promovendo a iniciação a alguns aspectos técnicos (fotografia, som, música, diálogos, silêncios…) do filme assistido. O debate, o exercício da critica, as articulações entre os filmes exibidos e o contexto cotidiano, são elementos fundamentais na formação de educadores.

Saliento que passar um filme para os alunos exige uma preparação bastante rigorosa. Previamente, sinto necessidade de ver o filme várias vezes, para pontuar melhor os dados a serem explorados no debate.

Nas minhas aulas de Antropologia Cultural ministradas em Cursos de Pedagogia, História, Geografia, Letras, Filosofia, Comunicação e Jornalismo, sempre me deparei com um alunado heterogêneo e que, em decorrência, reagia de forma diferenciada ao filme projetado. É curioso verificar como, no debate, as questões levantadas pelos alunos transportam não apenas as marcas de suas vivências, mas também o olhar do curso que frequentam. Um mesmo filme, consoante é visto na turma de Pedagogia, ou na turma de Comunicação e Jornalismo, produz debates, frequentemente tão diversificados, que chega a parecer tratar-se de uma discussão sobre dois filmes distintos. Nunca é demais referir que, para mim, como educador, me encontro mergulhado num aprendizado constante e sedutor nesta discussão com os meus alunos.

O cinema deve, pois, ser utilizado como ferramenta primeira de reflexão, fazendo com que após analisar criticamente uma película cinematográfica o aluno procure complementar e aprimorar seu raciocínio através do estudo das matérias do currículo; e que esteja preparado para propagar este conhecimento adquirido, mais uma vez, através do cinema, de forma similar ao processo que se deu com ele.

Os objetivos do diálogo entre educação e cinema devem, a meu ver, centrar-se em:

  • Pensar o cinema como forma artística que se apresenta ao expectador como real; que este seja o ponto de partida para uma reflexão crítica sobre questões políticas, filosóficas, sociológicas, antropológicas e educacionais.
  • Despertar o interesse pelo estudo, auxiliando a formação de agentes multiplicadores do pensamento crítico.

O cinema cada vez mais é objeto de estudos e teses acadêmicas e também de uma imensa e variada produção de textos publicados em jornais e revistas especializados ou não. No Brasil, embora seja vasta e antiga a produção textual sobre cinema, invariavelmente sob a responsabilidade de críticos de cinema constata-se que têm sido muito poucos os educadores que têm escrito sobre cinema, em particular trabalhos que nos revelem a sua relação com o fenômeno educacional. Verifica-se, pois, uma produção intensa e diversificada dessa relação em vários países, mas, no Brasil, é ainda incipiente o estudo e sistematização desse universo.

O autor, junto com a professora Inês Assunção de Castro Teixeira, da UFMG, organizou, desde o ano de 2003 até ao presente, várias coletâneas onde constam seus textos sobre vários filmes. Assim, à primeira coletânea “A escola vai ao cinema” (2003) seguiram-se mais cinco, nomeadamente “A mulher vai ao cinema” (2005), “A diversidade cultural vai ao cinema” (2006), “A infância vai ao cinema” (2006) com a colaboração de Jorge Larrosa, da Universidade de Barcelona, “A juventude vai ao cinema” (2009) com a colaboração de Juarez Dayrell, da UFMG e “A família vai ao cinema” (2012). Produziu também o livro editado em Portugal “Educação e Cinema: novos olhares na produção do saber” (2007) para além de inúmeros artigos publicados no Brasil e no exterior.

O cinema e os educadores/cinéfilos

De que modo o cinema pode, em realidade e magia, ser capturado pelos educadores levando-os a transportar essa realidade e magia para o universo educacional da sala de aula? Como seria uma escola que também pudesse se expressar na língua do cinema e não somente na língua dos livros? Que educação será essa que pode fazer do cinema um aliado na sala de aula? Apesar de tantas experiências em vários sistemas educacionais ao redor do mundo, estas questões parecem persistir depois de tanto tempo e se constituem como um desafio para todos educadores.

Assim, neste universo tão amplo de todos aqueles que, ao longo do tempo se relacionaram com o cinema, prestarei particular atenção aos educadores/cinéfilos.

Importa explicitar que consideraremos como educadores/cinéfilos aqueles educadores que sempre tiveram uma relação mais próxima com o cinema, quer no interior da sala de aula, quer exteriormente a ela. Mais concretamente aqueles educadores que, com muita regularidade, frequentam salas de cinema e que, paralelamente, utilizam o cinema na sala de aula no ensino fundamental.

Embora existam inúmeras pesquisas que trabalham a relação entre Cinema e Educação, praticamente são inexistentes as que se debruçam sobre o papel desempenhado pelos educadores/cinéfilos.

Direcionaremos nosso olhar para os modos como, na cidade, o cinema e os educadores/cinéfilos estabelecem diálogo com a educação. Mais concretamente, procuraremos refletir em que medida o olhar cinematográfico enriquece o olhar sobre a educação e sobre o processo escolar. Se partirmos do pressuposto de que o cinema se pode definir como uma educação informal, então esta irá exigir uma metodologia para seu melhor aproveitamento na sala de aula. O cinema atuaria, assim, como um elemento que poderia promover um aprimoramento cultural e intelectual dos docentes e dos discentes.

Como se sabe, todos os espaços dos filmes estão abertos para serem ocupados pela mente de qualquer indivíduo, que os vive de maneira única, retirando impressões e emoções totalmente diferenciadas; mas apesar de sua vivência ser próxima à experimentação do espaço real, são representações descontextualizadas do espaço original que representam conceitos, ideologias e sentimentos comuns ao público e aos cineastas. A cidade fílmica torna-se, portanto, um espaço simulado vivido.

Estas breves reflexões pretendem contribuir para um maior conhecimento da relação entre a cidade e o cinema e o seu diálogo com a educação, a partir de um enfoque, até ao momento, pouco revisitado.

Para esse efeito, procuraremos problematizar a memória construída pelos educadores/cinéfilos. Sabemos que os filmes têm usado a imagem das cidades, e como isso repercute no imaginário dos educadores/cinéfilos e como estes tematizam e transformam o cinema em estruturas de significado. Sabemos igualmente que alguns elementos como jornais, revistas, livros, cineclubes, etc. potencializam o diálogo entre os educadores/cinéfilos e sua cidade. Neste sentido, é de crucial importância a questão da formação dos educadores/cinéfilos, ou seja, de que modo a experiência de cinéfilos é um elemento importante na formação daqueles que se tornaram educadores. Dito de outro modo, de que modo a familiaridade deles com o cinema possibilitou a eles se apropriarem dessa linguagem, não apenas como recurso didático ou mediador, mas como produção simbólica a ser incorporada no processo de formação de seus alunos? Em síntese, não se pode ignorar que o cinema é um bem simbólico importante, ao qual os alunos deveriam ter acesso e, para tanto, deveriam ser “alfabetizados”.

Partimos do princípio de que a vivência contínua das representações por parte dos educadores/cinéfilos é capaz de conformar um conjunto de sensações modificadoras de nossa percepção da “realidade” na cidade. Como então, os filmes influenciam a vivência urbana desses educadores/cinéfilos? Essa rede de imagens, complementada por outras milhares, que bombardeiam o dia-a-dia da vida moderna pode constituir-se num acervo pessoal de memórias?

Dado que os educadores/cinéfilos do meio urbano/metropolitano têm acesso mais frequente aos filmes e possuem a urbe “real” como elemento comparativo, a cidade de cada filme parece interligar-se com outros espaços simulados e vividos. A ser assim, a memória de outras cidades experimentadas em outros filmes é ocasionalmente acionada, conformando uma rede que engloba um conjunto único da experimentação das várias cidades fílmicas que cada educador/cinéfilo assiste ao longo de sua existência. O tema é mais complexo do que se supõe, desencadeando uma série de perguntas, que só poderão ser cabalmente respondidas através de uma ampla pesquisa. Será que o olhar do educador pode ser capaz de elucidar com mais clareza as complexas contradições presentes nesse diálogo da História com a memória? Como os filmes produzidos têm usado a imagem da cidade e como isso repercute no imaginário dos educadores/cinéfilos? Como esses educadores/cinéfilos tematizam e transformam o cinema em estruturas de significado? Como na cidade se configurou, através da História e da memória, o diálogo dos educadores/cinéfilos com o cinema?

Cinema, História e memória

A historiografia contemporânea proporcionou, nas últimas décadas, uma significativa transformação epistemológica, na medida em que passou a consolidar a importância de novas fontes históricas, antes ignoradas ou relegadas a segundo plano, além de revisitar fontes antigas, porém com um novo olhar sobre as mesmas. Não há mais dúvidas de que qualquer “vestígio” do passado possui o seu valor interpretativo, cabendo ao historiador elaborar as perguntas adequadas aos interesses de sua pesquisa. Sob essa perspectiva, também se destaca a valorização de objetos até então desconsiderados nos estudos históricos, anteriormente mais direcionados para grandes estruturas políticas, econômicas e sociais. O que se vê atualmente, especialmente no âmbito dos estudos culturais, é um deslocamento da perspectiva macro para a microanálise histórica. Como bem observa Jacques Revel (1998, p. 32), na escala macrossocial perde-se de vista a história vivida, a experiência concreta dos indivíduos, em favor de sujeitos sociais abstratos e de dinâmicas generalizantes. Enquanto, através da microanálise histórica, chega-se à vivacidade e à dramaticidade dos enredos singulares que fornecem ao pesquisador um universo social bem mais complexo e que, naturalmente, escapa ao olhar macro analítico. Seguindo este mesmo caminho, Michel Maffesoli (1984, p. 12) nos informa que, contrariamente a um projeto totalizante e unificador, onde os sujeitos apenas se submetem às imposições hegemônicas, é na vida cotidiana e nas múltiplas situações do dia-a-dia que a identidade social se constrói, mesmo que de forma caótica.

Alguns filmes voltam-se mais para as mazelas sociais e econômicas dos grandes centros urbanos; outros mitificam esse espaço, utilizando-o como suporte para amplos cenários, com suas belas paisagens naturais ou humanas; outros, ainda, apresentam uma sensibilidade diferenciada, transformando a cidade em um personagem significativo de seu enredo. Todos esses filmes são resultados da impressão da experiência de seus realizadores com o espaço, que procuram transformar em imagens audiovisuais. As tentativas de apreensão do real, realizada por estes cineastas, traduzem na verdade um determinado imaginário social – dentre outros possíveis – que ancoram as representações sociais e os sentidos construídos por esse grupo que, por sua vez, não se restringe aos produtores da obra cinematográfica, mas amplia-se para os espectadores da mesma. O que importa destacar é a riqueza de significados que um filme pode nos oferecer, na medida em que constituem a manifestação de um imaginário sobre uma cidade, que marca as representações ali veiculadas. Se tais representações parecem, por vezes, contraditórias, isto apenas revela as várias “cidades imaginárias” que podem ser construídas, pelos grupos e pelos indivíduos, no interior de uma mesma “cidade real”. Revela, ainda, que as cidades são “lugares praticados”, segundo a já mencionada concepção de Michel de Certeau (1994). Isto significa dizer que as cidades são invenções sociais, na medida em que se constituem e se representam através das relações entre os indivíduos e destes com o território.

Poderão estas invenções sociais ser potencializadas pelo cinema? No escuro do cinema, a sala de exibição faz-se menos presente na consciência do espectador preparando-o para transportá-lo sensorialmente à realidade mostrada na tela, isolando interferências. Atuando sobre nossa percepção visual, através do processo da “ilusão do movimento” e da “impressão da realidade” (Baudry, 1974-75; Metz, 1997), o cinema possibilita o “movimentar-se” por experiências e lugares.

Como explica Aumont (2004, p. 54): “Por mais poderosa que seja a força da impressão da realidade, ao assistir a uma sessão de cinema, a princípio, só me submeto a um fluxo perceptivo, o das manchas luminosas veiculadas pela luz do projetor e materializadas na tela”.

Resumindo: no cinema a noção de “espetacularidade” se baseia numa construção imagética (tecno-estético-visual) e de “submersão” por parte do espectador. Tradicionalmente, a espetacularidade cinematográfica nos remete ao cineasta pioneiro Georges Méliès. Espetáculos de mágica e experimentos com a trucagem eram motivos de interesse. Enquanto, nos primeiros anos do século XX, os irmãos Lumière se interessavam por cenas reais e acontecimentos triviais do cotidiano (operários saindo de uma fábrica, um incêndio, a refeição de um bebê), Méliès em Viagem à Lua (1902) representava um mundo fantasioso, com a utilização de primitivos e imaginativos efeitos visuais. Em continuidade ao seu período inicial, até os anos 1960, a espetacularidade se associa gradualmente ao chamado cinema “popular”. Àquele conhecido tradicionalmente como “cinema do entretenimento”, constantemente relacionado à produção cinematográfica hollywoodiana, e caracterizado progressivamente por efeitos visuais de qualidade.

A persistente ação da indústria cinematográfica no processo de construção de imagens espetaculares, que apresentam as grandes metrópoles sucumbindo a um tempo presente desastroso ou um futuro apocalíptico, passa agora pelo entendimento e desenvolvimento de um processo criativo e estético, que tem bases na gênese da relação entre o cinema e o espaço urbano, na construção de novas percepções do espaço pelo cinema e principalmente nas imagens e visões construídas e veiculadas através dos diferentes meios de comunicação, em particular a televisão. A cultura da catástrofe, do apocalipse, está por toda parte, exposta aos olhos fascinados e cada vez menos atônitos dos espectadores do cinema e da televisão. Por isso mesmo, as imagens que hoje permeiam constantemente as ficções e representações contemporâneas, tornaram-se um “produto cultural” (Coelho, 1995) que atesta o fato de vivermos uma época em que a “questão contemporânea” se reduz ao fluxo inexorável de imagens pré-digeridas que jorram aos montes na mídia.

A questão da representação do que é passado, presente, e futuro assume uma posição de destaque e é mais complexa – e tem como consequência, a perda do sentido histórico mencionada por Fredric Jameson (2000). Como Alberto Manguel (2001) ressalta: “Através do olho da lente, o passado tornou-se contemporâneo e o presente se resumiu a uma iconografia coletiva” (p.92). É através dessa sistematização de imagens, convertidas em clichês, que a cultura impõe seus parâmetros e valores e reproduzem “verdades preestabelecidas”. Filmes são, no mais das vezes, universos fechados que proporcionaram ao homem uma relação com a sua realidade através de um processo imagético de visualização dessa realidade através da produção de ambientes “imaginários” e construídos para a ação. É nesses ambientes imaginários que novas tecnologias encontram o espaço ideal para se auto-justificar e o cinema contemporâneo encontra a possibilidade de afirmação do real enquanto pura exterioridade. Por isso mesmo, o cinema contemporâneo tem nos fornecido uma verdadeira “visão artificial” da realidade (ou não) que nos faz pensar e “sentir” o mundo em função de um complexo sistema de representação. A violência urbana, por exemplo, seja qual a forma que assuma, funciona no cinema espetacular contemporâneo, de modo a tornar inevitável uma leitura descontínua ou sobrecarregada do respectivo momento histórico (em realidade) ao mesmo tempo em que encontra apoio numa tendência representativa de construção de um “realismo mágico”. O imaginário agora hiper-realista que domina a representação da catástrofe (e da violência) com o qual o cinema nos bombardeia vem em formatos variados e tem provocado interesse (principalmente na academia) por estimular de forma direta o pensar, interpretar e conceber a diversidade de conflitos humanos, sociais, econômicos e políticos comuns e presentes nas grandes metrópoles. A contingência apocalíptica, citada anteriormente, e mostrada como inevitável, por exemplo, é reconhecidamente crível, já que o seu realismo tem bases também na realidade concreta. Isto é, tem respaldo, e até mesmo justificativa, na violência urbana.

A memória coletiva é um marco importante para o entendimento destes registros ao longo da História, como bem enfatiza Delgado (2006). Os relatos pessoais podem assegurar uma transmissão de uma experiência coletiva e constituir-se numa representação que espelha uma visão de mundo. Delgado (2006) aponta a História Oral como uma metodologia, técnica e disciplina, pois, de certa forma, traz para o palco do presente, certas versões e vozes que, por vezes, estão perdidas.

Para Nora (1981, p. 7) a memória está vinculada à lembrança das ideias e vivências por laços afetivos e de pertencimento, enquanto aberta e sempre em constante mutação; também a História é a crítica e reflexão sobre as memórias expostas, que se constituem em representações sobre o passado. As memórias são “matérias” fundamentais para constituição das identidades sociais e da formação da cidadania crítica e participativa das coletividades (LE GOFF, 1994). Problematizar a memória social com os cinéfilos que pretendemos entrevistar, a partir da compreensão de como os discursos e práticas cinematográficas operaram na cidade, podem indicar perspectivas que até o momento não foram contempladas em outros tipos de pesquisas.

Esses educadores/cinéfilos poderão, através de suas recordações, revelar como se relacionaram com o cinema. Importa igualmente verificar como ficaram guardados em suas memórias os filmes e documentários a que assistiram, e que tivessem como tema a cidade. A partir destas duas indagações e cruzando-se com elas estaremos verificando como suas vivências cinematográficas dialogaram com suas práticas educativas.

No fechar do pano

Finalizamos nossa breve digressão que, direta ou indiretamente, buscou compreender as relações entre cinema, história, sociedade, cultura e educação em uma perspectiva relacional, presente nos debates das ciências humanas e sociais contemporâneas.

Sendo o cinema um meio de comunicação ele tem poder criativo, de curiosidade e pesquisa científica, pois além de divertir e entreter influencia no modo como enxergarmos o mundo. A relação entre cinema e educação, principalmente a educação escolar, faz parte da própria história do cinema e pode transformar-se numa proposta educativa, ao termos a oportunidade de focar aspectos históricos, literários e cinematográficos, de forma separada ou em conjunto.

Filmes ampliam nossa visão na medida em que o aparato cinematográfico detém o poder do visível mostrando objetos da forma que não é possível a olho nu – um close-up nos coloca em um íntimo face a face com uma personagem, por exemplo. O cinema, portanto, é essencialmente um mecanismo de visualização e materialização do mundo que se pretende projetar, aquilo que os futuristas saudaram como a “…máquina de acelerar o mundo e mecanizá-lo, como o automóvel” (Aumont, 2004).

Dada a sua primazia visual, o cinema oferece (de forma controlada) enquadramentos variados. A música e o som, somados ao processo de corte e montagem cinematográficos, projetam percepções que evocam e manipulam nossa visão e experiência da realidade. No cinema, somos voyeurs. Estamos seguros em nosso posto de observação privilegiado, ainda que inteiramente expostos à surpresa e ao susto.

O cinema, como o local da memória, é o refúgio de milhares de imagens que transformamos em realidades, memórias de lugares pelos quais nunca andamos, de pessoas com as quais não falamos, mas repletas de narrativas que podemos contar e lembrar. Por constituir-se em uma educação da sensibilidade, o cinema cria raízes profundas na forma como percebemos o mundo, como nos lembramos do mundo, de lugares, de personagens. O cinema, enfim, é memória.

Referências

AUMONT, Jacques. As Teorias dos Cineastas. Campinas: Papirus Editora, 2004.

BAUDRY, Jean Louis. “Ideological Effects of the Basic Cinematographic Apparatus”. Film Quarterly, v.28 n.2, 39-47, 1974-75.

CERTEAU, Michel de. Relatos de espaço. In: A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 199 – 217.

COELHO, José Teixeira. Moderno & Pós-moderno. São Paulo: Iluminuras, 1995.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História Oral – memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. São Paulo: Editora Ática, 2000.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 3ª ed. Campinas: UNICAMP, 1994.

MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. São Paulo: Rocco, 1984. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.

MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

METZ, Christian. Significação no Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1997.

NORA, Pierre. Entre memória e história: o problema dos lugares. Revista do programa de Pós-graduados e do departamento de história da PUC-USP. São Paulo: [S.I], 1981.

REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

 

As imagens são do filme Um truque de luz (Die Gebrüder Skladanowsky), dirigido por Wim Wenders (1995).

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here