Por Cristiano Fretta
Olhar para a própria infância é enxergar um mundo ausente. Quem se debruça por cima do muro do tempo e espera vislumbrar nitidez em épocas passadas será enganado pela inerente idealização que a busca pelo nosso paraíso perdido produz no burocrático mundo dos adultos, local em que o brincar e a inocência tem de ser descartados no lixo da improdutividade. No mundo ausente, tudo é nebuloso: as lembranças, passadas pela peneira dos anos, talvez não sejam mais do que pequenos soldados de felicidade sobreviventes a um mundo hostil. Olhar para a própria infância é transgressão.
A antiga casa de minha tia era um balançar de folhas numa tarde de céu azul na zona norte de Porto Alegre. A antiga casa de minha tia possuía um cheiro de manjericão com terra, quando chovia ela dizia que as plantas estavam a se fartar de tanto beber água, nos dias muito quentes as minhocas saíam da terra e torravam nas lajes do pátio, havia um vizinho negro muito velho de quem eu tinha medo – com certeza ele era um monstro! As visitas à casa de minha tia eram mais felizes quando meu primo estava por lá. Ele me pegava pelo sovaco e se punha a me balançar no ar. Em seguida me largava no chão e me enchia de cócegas. Eu fugia correndo em círculos, mas suas mãos enormes sempre me encontravam para me prender entre seus braços e me sufocar de cócegas.
Foi mais ou menos por essa época que meu pai passou a odiar a figura daquele homem austero e de terno chamado Collor, um homem que antes ele idolatrava quando aparecia na TV, mas que subitamente passou a ser motivo do ódio do meu pai. Havia uma tal de “Casa da Dinda” e, como minha tia também era minha Dinda, sempre que o noticiário falava sobre essa residência eu imaginava o que ela tinha a ver com aquela magnífica casa. Deveria ser bom brincar com o meu primo em um local tão grande. Às vezes, no entanto, eu me lembrava que aquela casa tinha a ver com um dinheiro que meu pai havia perdido e então eu ficava em dúvida se de fato aquele era um bom lugar para brincar com meu primo. Talvez nós devêssemos entrar naquela imensa propriedade e procurar onde o Collor havia escondido o dinheiro do meu pai. Seria uma ótima brincadeira: ao final do dia nós descobriríamos que as notas de Cruzeiros do meu pai estariam escondidas dentro das paredes do imenso muro branco da frente da propriedade.
Era na casa da minha tia que a minha família se reunia. Depois de várias cervejas os homens se punham a perguntar por que na África não tinha cartomante — porque negro não tem futuro —,por que o mundo não é quadrado — para os negros não cagarem nos cantos —, por que caixão de negro tem furo — para que os vermes possam vomitar. Meu primo, então, se punha a fazer sempre a mesma pergunta: quantos judeus cabem em um fusca? Depende do tamanho do cinzeiro.
Não podemos idealizar os anos subsequente ao atual governo no que se refere à forma como as minorias sociais sempre foram tratadas neste país. O que quero dizer é que a violência a que nós, elite letrada, estamos sendo expostos agora, seja por meio das redes sociais ou por rupturas familiares, sempre esteve presente no dia a dia de boa parte da população brasileira. Por exemplo, em 2010 a taxa de homicídios foi de 28,3 a cada 100 mil jovens brancos. No mesmo ano, a de jovens negros chegou a 71,7. Não há dado que sustente a visão de que éramos uma república pacifista e sem violência antes de 2019. O que talvez tenha acontecido é uma explicitação e democratização de mecanismos autoritários e violentos, perspectivados na figura fascistoide de Jair Bolsonaro. Dessa forma, o Brasil, seja pela sua imanente desigualdade ou pela sua característica de nação submetida aos interesses de uma elite perversa e tosca, sempre encontrou um terreno fértil para o surgimento e — mais do que isso — proliferação de ideologias autoritárias. Para a população periférica, a linguagem da violência nunca deixou de estar presente.
Muitos anos mais tarde eu fui aprovado no vestibular de Letras da UFRGS. Naquele que foi um dos dias mais felizes da minha vida, eu recebi uma ligação do meu primo, com quem eu mantinha um amistoso contato. Minha tia já havia falecido há alguns anos, a sua casa não existia mais. Na conversa, após me parabenizar pela conquista, ele me advertiu para que eu não virasse “um barbudinho maconheiro”. Eu, inocentemente, respondi que isso não seria possível, pois eu pretendia entrar na universidade para estudar. Naquela conversa, relembramos a época em que eu era criança, e não foram poucas as vezes em que as noções da morte da minha tia e da inexistência de sua casa, somadas a um êxtase de felicidade pela aprovação, me causaram uma coceira na garganta.
É um clichê se dizer que o conhecimento tem poder de transformação. Embora possamos discutir o que “conhecimento” significa para os mais diversos espectros político-ideológicos, ninguém ousará desdizer a verdade dessa sentença, uma vez que ela é uma das noções basilares que norteia a nossa sociedade, pois remonta à ideia de formação de mão de obra qualificada, em uma primeira visada. No entanto, é importante salientar que, mesmo que o conhecimento seja concebido como uma capacidade puramente operacional e, portanto, sem requerer muita autonomia do sujeito, ainda assim o ideário iluminista da racionalidade como modelo de resistência ao autoritarismo imprime ainda hoje a noção de que conhecer é estar livre. Em outras palavras, conhecimento é liberdade — e a liberdade é um direito humano indiscutível (apesar de ainda hoje muitos lunáticos a estarem confundindo com um direito puramente individual e não social).
O acesso libertador ao conhecimento que as aulas na universidade federal me propuseram serviram para mim como choques de realidade e desconstrução frente ao meu mundo de infância. Então quer dizer que o meu colega gay poderia ser tão ou mais estudioso do que eu, apesar de fazer sexo anal com outros homens? Estava realmente tudo bem eu ir à casa dele para fazer um trabalho? Eu não era também gay por passar uma tarde inteira com ele organizando um seminário sobre sociolinguística? E aquela minha colega lésbica que havia superado barreiras financeiras muito superiores às minhas para estar estudando, será que ela realmente estudava ou estava na faculdade somente para fumar maconha e “caçar” outras meninas? Como era possível que os meus colegas usuários de drogas pudessem conseguir estágios em escolas privadas e não passassem boa parte de seus dias atirados na calçada de alguma rua periférica, comendo o próprio vômito e proferindo blasfêmias contra Jesus Cristo? E o meu choque que havia sido ler “Crime e Castigo” pela primeira vez, desmistificando totalmente a minha noção de que havia somente pessoas boas e más! E quando eu descobri que um dos maiores objetivos do ensino da língua portuguesa no Brasil era perspectivar uma visão beletrista e opressora de língua e que, portanto, não obedecer às regras da Gramática no dia a dia não era desconhecimento, mas simplesmente comunicação… Como lidar com aquele meu colega negro que se opunha firmemente a colocar o nome de um colega branco que não havia feito parte da elaboração de um trabalho em grupo, contrariando a ideia de que “negro, quando não faz merda na entrada, faz na saída”, como dizia meu primo? Como futuro professor de língua portuguesa e literatura, eu percebi que tinha uma vida nova pela frente. Eu, envergonhado e curioso, deixei que a minha vida profissional e o contato com milhares de alunos fosse me surpreendendo a cada aula. Ainda hoje, passados 12 anos da minha formatura, toda vez que eu olho para uma turma e percebo a sua natural heterogeneidade, o meu mundo da infância vai ficando cada vez mais ausente. Ensinar é, acima de tudo, desaprender-se.
Em 2018 eu resolvi mudar a minha foto de perfil do Facebook e incluir um filtro com o nome de Haddad em vermelho, por cima de meu rosto. Era uma tentativa de deixar bem claro que, em hipótese alguma, eu seria neutro frente à possibilidade da eleição de um homem como Jair Bolsonaro, apesar de todas as críticas que eu costumeiramente fazia ao Lula e ao PT. Cerca de uma hora depois da alteração da foto, meu primo fez o seguinte comentário: “Quem apoia ladrão também é ladrão”. Eu o tolerava nas redes sociais com uma curiosidade meio antropológica, apesar de toda incitação à violência e à propagação de informações falsas. Imediatamente me veio à cabeça a casa de minha tia, aquelas tardes de céu azul, as árvores repletas de folhas, as risadas fáceis quando ele ameaçava correr atrás de mim para fazer cócegas, a vez em que ele me deu um caminhãozinho de presente, a certeza de que seríamos amigos para sempre. Tomado pela certeza de que sua incompreensão nada mais era do que um atestado de sua maldade, eu o bloqueei nas redes sociais. Desde então, nunca mais nos falamos.
Em 2020, no dia em que meu primo fez aniversário, tive ímpeto de ligar para ele, dando-lhe os parabéns. A verdade é que eu sentia uma saudade que era alimentada pela garrafa de vinho que eu havia tomado. Sóbrio, sinto vergonha por ter pensado em fazer a ligação e, de alguma forma, admitir uma culpa que eu não tenho. No entanto, enquanto eu tinha essa vontade, na televisão apareceu uma fala de Jair Bolsonaro, desacreditando a vacina contra o coronavírus e, portanto, destroçando o conhecimento com suas palavras repletas de psicopatia. Jair Bolsonaro era o meu primo. Meu primo era Jair Bolsonaro.
A família é uma das primeiras referências de relacionamento que temos em nossa vida. É por meio dela que compreendemos que o outro é importante tanto no sentido do amparo emocional quanto no estabelecimento de relações de poder. Ao longo dos anos vamos construindo diferentes laços com nossos familiares, de forma que as redes de afeto acabam por se estruturar em torno de um misto de hereditariedade e convivência, mesmo que esporádica: reconhecemos em nossos parentes mais do que pessoas pertencentes aos mesmos laços de sangue, mas também os enxergamos como uma expansão de nossa própria existência, perspectivada em outras vidas, unidas por um núcleo que remonta a um instinto praticamente tribal e repleto de uma noção um tanto quanto subjetiva de ancestralidade. Além disso, é por meio da família que as tradições encontram o seu meio de propagação. É na convivência, no exemplo, na capacidade que as crianças têm de absorver o comportamento e as palavras dos adultos que a máquina das construções ideológicas gira o seu poderoso motor. Talvez seja esse um dos motivos pelos quais todo comportamento progressista seja acusado de, em uma ou outra medida, ir contra os “valores familiares”.
Durante os últimos tempos, apesar de toda distância e inimizade, eu tive o desejo de fechar os olhos e em uma noite qualquer sonhar com a casa de minha tia. No sonho eu gostaria de poder experimentar mais uma vez a minha infância e a inocência na qual ela era banhada, com as tardes azuis, os parentes vivos e, sobretudo, com as cócegas que meu primo fazia em mim. Por mais que eu mentalize essa sensação antes de dormir, no entanto, esse sonho nunca acontece. Há alguns dias, no entanto, sonhei que eu estava em uma casa completamente diferente daquela da minha tia. Tratava-se de um lugar escuro, algo industrial e decadente. Então meu primo surgiu e nós, ressabiados, tentamos nos cumprimentar. Nos aproximamos lentamente, como que sem saber o que dizer um ao outro, desconfiados da própria presença. Na hora em que fomos nos cumprimentar, ao invés de nos apertarmos as mãos, começamos a nos empurrar. Meu primo então tirou um revólver da cintura e apontou em minha direção enquanto me chamava de ladrão. Eu comecei a correr, os estampidos dos tiros surgiram atrás de mim, mas nenhuma bala me atingia. Inexplicavelmente eu reparei que também tinha uma arma na cintura. Parei de correr, saquei-a, virei-me em direção ao meu primo e dei um tiro em sua direção. Assustado, acordei-me imediatamente, na consciência de que eu não havia assassinado um familiar, mas sim dado um tiro no peito de um mundo ausente.
A primeira ilustração e a imagem em destaque são do filme A Dama de Shanghai (1947). Logo acima, uma cena do filme O 3º Homem (1949).
Excelente relato sobre a situação atual de muitas pessoas. E o pior é quando isso acontece com parentes mais próximos, como pai, mãe, avô, avó, onde os laços de parentesco são mais intensos. O bolsonarismo vai deixar marcas que nunca mais serão apagadas na vida de muitas pessoas. É uma decadência civilizacional.
Parabenizo, é claro, pelo interessante artigo. Não tenho estudo ou conhecimento preciso sobre questões familiares e, nesse sentido, seria leviano de minha parte apresentar qualquer consideração teórica sobre o assunto.
Dito isso, solto aqui uma reflexão e espero que os comentários aqui no sítio do PP possam nos ajudar a pensar sobre o seguinte assunto: por que a família, algo tão insuportável e uma instituição construída em um sentido mais de relações insuportáveis e além de tudo desnecessárias como forma de sociabilidade crítica ao capitalismo, é tão aceita e venerada – ainda que de forma silenciosa, do tipo “é assim mesmo” – pela esquerda?
Só a herança ou a hereditariedade justificam esse traço tão comum entre nós? Ou seja, uma grana que um parente deixa ou um passado comum servem para a permanência desse caminho tão chato que participa de nossa existência?
Não existe “vida pura” no capitalismo – isso é, ou deveria ser, óbvio. Mas outra coisa, bem diferente, é – após a maioridade e com autonomia em alguns campos de nossa existência – todos nós se sentirmos obrigados a ter “carinho” e tolerar as perspectivas e práticas absurdas de nossos familiares. Pode ser pai, mãe, irmão, primo – o que for.
Enfim, como disse, tenho pouco conhecimento – e até, sendo sincero, interesse – em relação a essas questões. Mesmo assim, seu texto me despertou a vontade de escrever esse comentário. As pessoas que acompanham e escrevam aqui no site devem saber sobre os processos históricos revolucionários e os debates na esquerda em relação a esses pontos e, por esse motivo, encerro aqui e deixo que os demais – se assim quiserem – também comentem sobre isso.
Termino, então, nessa contradição: o assunto pouco me interessa, mas fez o meu pensamento caminhar. Obrigado.
Lendo o texto e os comentários lembrei de um professor que dizia em sala que a família é uma fábrica de fazer loucos.
Fernando Paz, concordo em termos. A família também é um local de socialização, envolve sentimentos de gratidão, de segurança (ainda mais em um mundo cada vez mais instável), etc. É uma instituição permeada de contradições.
Sim, Paulo. Também concordo contigo.
Na esbórnia voluntarista, a consigna heroica: OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER!
Na subsequente ressaca derrotista, a divisa estoica: TOLERA E TE ABSTÉM.
Nem Cila, nem Caríbdis.
Salto quântico: terceira margem do rio, quarta pessoa do singular, beAMONGtween.
Paulo Henrique: concordo contigo. No entanto, não só a família, como também todas as instâncias ou instituições são locais de socialização e tudo mais de qualidade que foi indicado por você. Perfeito, não podemos perder isso de vista. E também todas as instâncias e instituições são permeados por relações de poder e, no mundo em que vivemos, hierarquias.
Sei que a pergunta parece boba – até porque abordagens históricas, antropológicas e sociológicas (tabus, formação de clãs, disputas entre grupos) já responderiam tal aspecto com diversos exemplos -, mas por que nós de esquerda ainda aceitamos a consanguinidade como o determinante para manifestarmos nosso afeto em relação a alguns familiares que abominamos?
Parece o trabalho – ou seja, um ambiente que tem seus laços determinado por uma certa obrigatoriedade.
O Caetano Veloso – que deveria ser considerado apenas um compositor, com suas obras interessantes e outras de menor qualidade, e não a iluminação do caminho da esquerda cultural brasileira (ainda bem, por exemplo, que o PP mostrou aqui o debate importante sobre a indústria cultural, capitalismo atual, o que a Tropicália e o Fora do Eixo representam como desdobramento disso tudo) -, voltando, o Caetano Veloso tem um verso bem divergente (ou seria convergente?) com a fala do professor citado pelo Fernando:
“Onde queres família, sou maluco” (O quereres).
Dá o que pensar – até porque, contradição em movimento, Caetano Veloso hoje faz turnê com os filhos todos músicos. Deixemos o Caetano Veloso, foi só um exemplo. A pergunta sobre o tal “engajamento” na consanguinidade persiste.
Exílio Mondrian, eu entendo também que a socialização se dá em várias esferas da vida, mas também acho que a família ainda exerce uma função importante (embora tenha seu papel tenha se modificado bastante nos últimos tempos, e é justamente esse embate – velha configuração familiar contra nova configuração familiar – que é um dos aspectos do que se convencionou chamar de “guerras culturais). Num mundo onde as relações são cada vez mais superficiais, os laços de parentesco parecem ser muito mais estáveis do que amizades, por exemplo, que mudam na velocidade das redes sociais. Além disso, com o avanço da precarização, onde os novos ingressantes do mercado do trabalho, que são mais jovens, estão descobertos de qualquer proteção pelas leis trabalhistas, a família aparece como esse garantidor. É bastante comum a figura do entregador que tem como única fonte segura de renda a aposentadoria ou salário de algum parente. Nesse cenário, os laços familiares aparecem como única fonte de segurança e estabilidade. Além disso, há sentimentos que derivam do reconhecimento ou do agradecimento em relação aos cuidados prestados previamente, como a “criação”, doenças, etc. Diante desse cenário, aguentar o tio (ou pior, país ou avós) bolsonarista é o preço a se pagar.