Por Daniel Manzione Giavarotti

Apostando no formato de diálogo, que iniciei na coluna de 20 de dezembro de 2021, convidei o colega Daniel Manzione Giavarotti para compartilhar aqui publicamente um debate que temos tido nos bastidores há algum tempo. Acredito que, desta maneira, posso abrir mais a Coluna Cidades para além das minhas questões e ponto de vista, dando maior movimentação às ideias para além da área de comentários. Isadora Guerreiro

O diálogo que aqui buscamos estabelecer com a última coluna de Isadora Guerreiro “O futuro dos trabalhadores é a rua” parte de uma das constatações de sua análise, embora aprofunde o significado de suas consequências sociais, econômicas e políticas. Deste modo procuramos oferecer uma interpretação crítica alternativa ao problema enfrentado, qual seja, o significado político e econômico do atual despejo de famílias populares que vêm engrossando a fileira de pessoas em situação de rua na metrópole de São Paulo.

A autora parte da hipótese de que o extraordinário aumento de pessoas em situação de rua, seja nos próprios bairros populares (as periferias), seja nas áreas centrais da metrópole, resultaria, de um lado, do “esgotamento de um ciclo de expansão urbana consorte à fase industrial” e, de outro, de “uma grande mercantilização do território popular, o qual é quase impossível acessar sem relações de troca — monetizadas ou de submissão a regimes de controle da violência local”, para além dos efeitos imediatos da crise provocada pela pandemia. Neste sentido, as periferias autoconstruídas teriam passado a expulsar ao invés de amparar aquela parcela da população trabalhadora incapaz de participar do mercado formal de habitação. Apesar da breve menção pela autora, o sentido que esta inversão guarda no processo de modernização e metropolização não é nada trivial. Em nossas pesquisas (Giavarotti, 2012 e 2018) buscamos pensá-la a partir da ideia de que à reprodução do trabalho assalariado durante a modernização retardatária brasileira correspondeu a formação das periferias autoconstruídas, enquanto que a reprodução destes territórios autoconstruídos (e seu caráter expulsivo) se dá simultaneamente à crise do trabalho (Kurz, 1993). Esta não-simultaneidade pode ser melhor qualificada.

O que estamos aqui chamando de “reprodução dos territórios autoconstruídos” poderia ser pensado a partir da ideia de um fechamento da fronteira urbana. As famílias migrantes chegadas a partir da década de 1950 em São Paulo foram as “pioneiras” responsáveis (na condição de sujeitos sujeitados) pela sua expansão, ao serem os “móveis” da transformação de terras rurais em terras urbanas à base de sobretrabalho [1]. Tal fechamento envolveu, por exemplo, a crescente ocupação e adensamento das centenas de loteamentos abertos nos arredores da cidade, a consolidação dos mesmos em razão das políticas do espaço (urbanização) e uma relativa finalização das moradias autoconstruídas. Todos estes elementos vieram concorrendo para uma diminuição absoluta de terra barata no entorno da cidade e de necessidade de sobretrabalho para a garantia de condições mínimas de reprodução, como foi para o contingente migrante. Não nos esqueçamos de que quando falamos de reprodução é preciso fugir de um pensamento androcêntrico que desconsidera a unidade familiar. E, neste particular, o trabalho pretérito dos pais reificado nas moradias autoconstruídas adquire um papel importantíssimo nas condições de trabalho e reprodução das novas gerações, como veremos.

Entretanto, como já afirmamos, este momento reprodutivo é crítico, pela própria simultaneidade que estabelece com os efeitos da crise do trabalho que, sinteticamente, significa a progressiva substituição de trabalho vivo por trabalho morto (trabalhadores por máquinas) nos processos de produção de mercadorias. Esta substituição, desencadeada pelo desenvolvimento das forças produtivas motivado pela concorrência, significou um salto extraordinário na produtividade do trabalho. Tal envolveu fenômenos como des-localização e re-localização de unidades produtivas (inclusive em território nacional), mas sobretudo novas rodadas de concentração e centralização de capitais, levando à bancarrota aqueles incapazes de alcançar a média de produtividade mundial recém-lograda, daí o fenômeno da desindustrialização nacional e paulistana. Este novo salto produtivo desencadeado pela revolução microeletrônica da década de 1970 se fez sentir mais fortemente no Brasil ao longo da década de 1990 [2], quando o desemprego estrutural se instalou no coração da reprodução social. Era um exército de “sujeitos monetários sem dinheiro” (Kurz, 1993), também designados por Schwarz, e inspirado pelo último, como “ex-proletários virtuais” (Schwarz, 1999) [3].

Voltando à terra, agora já “devidamente” pavimentada, a excêntrica alcunha de Schwarz guarda fortes semelhanças com a mobilidade do trabalho (Gaudemar, 1977) experimentada pelos filhos e netos daquelas famílias pioneiras, bem como os novos migrantes chegados em São Paulo a partir de então, ambos produzindo novos conteúdos na vida popular e periférica. O chamado microempreendedorismo ou “viração” [4], como superação negativa do assalariamento, é um aspecto fundamental da experiência de superfluidade do trabalho produzida pela crise. Nossas pesquisas (Giavarotti, 2018) apontam também para o seu papel na mercantilização do ambiente autoconstruído, visto que aqueles parcos patrimônios acumulados pelas antigas famílias serão doravante refuncionalizados [5] e negociados de modo a oferecer condições para esta nova mobilidade do trabalho em crise. E não custa ressaltar, produzindo periferias altamente estratificadas e radicalmente diferentes de suas formas pregressas. Portanto, o “esgotamento de um ciclo de expansão urbana consorte à fase industrial” é, de nosso ponto de vista, a manifestação urbana da crise do trabalho e do “colapso da modernização” (cf. Kurz, 1993), responsáveis por torná-los territórios expulsivos. Seja porque a superfluidade do trabalho fez os rendimentos destes últimos caírem, seja porque o preço da terra e dos imóveis se tornaram inalcançáveis para a população que ali reside.

Almejamos que esta breve introdução permita deslocar o ponto de vista a partir do qual se possa ler e analisar a emergência das empresas-plataforma e a realocação de forças de trabalho daí decorrente. Em outras palavras, ler a contrapelo a emergência desta espécie de indústria a céu aberto que parece ter se tornado o espaço urbano ao abrigar trabalhos conectados à esfera da circulação que se tornaram campos oportunos ao “extrativismo financeiro” e “político” (Guerreiro). Vejamos.

Em primeiro lugar, esta “forma hegemônica de trabalho das classes populares” (Guerreiro) é constituída essencialmente pelos já mencionados “ex-proletários virtuais” produzidos pelo colapso da modernização e a relação de trabalho à qual hoje se submetem reitera esta não-identidade [6]. A “subsunção real da viração” promovida pelas empresas-plataforma, embora adquira aparência de uma indústria a céu aberto e a restauração da exploração do trabalho e da acumulação, deve ser mediada com a totalidade do capital. Em outras palavras, e mais em tom de advertência pela própria impossibilidade de uma análise mais particularizada, a “lucratividade” da Uber não diz nada (ou muito pouco) sobre o caráter geral da reprodução global do capital, a qual só pode ser alcançada por um esforço de mediação entre esta última e a escala do capital individual [7].

Em segundo lugar, o endividamento apontado pela autora e que se tornou um pressuposto da reprodução de trabalhadores e suas famílias, assim como do próprio exercício da mobilidade do trabalho (na compra a prestações de uma moto ou um carro), se tornou um atributo central e incontornável da reprodução do capital em geral. A substituição de trabalhadores por máquinas não apenas vem serrando o galho sobre o qual a acumulação (e a modernização) historicamente se sustentaram, como significou um aumento exponencial dos custos com capital constante. Tal não apenas indica uma crescente dependência estrutural do capital “produtivo” relativamente ao “capital portador de juros”, como desencadeou a formação do “capital fictício”, quando créditos insolváveis são pagos com novos créditos que nunca serão pagos, alimentando montanhas de dívidas. Portanto, embora o endividamento tenha consequências concretas muito distintas para proprietários e não-proprietários (embora esta distinção nos parece difícil de sustentar, sem mais), importa aqui reter a presença do crédito nas duas pontas do “metabolismo” do capital, produção e consumo, fazendo daquele um verdadeiro castelo de cartas [8]. Isto é, o endividamento já vem fazendo parte da vida das classes populares há alguns anos, como forma de manter de pé relações de trabalho colapsadas, o que hoje testemunhamos são seus efeitos catastróficos.

Em terceiro lugar, o mencionado castelo de cartas também se manifesta nas tentativas do capital fazer do espaço urbano e da esfera da circulação um território oportuno ao “extrativismo financeiro”. Não há qualquer indício na coluna de Guerreiro de que os juros cobrados pelo capital alugado a trabalhadores, embora comprometedores dos rendimentos futuros conquistados por meio de seus “corres” e “virações”, tenha se tornado o esteio da acumulação de capital. O que, de nosso ponto de vista, parece sustentar a hipótese da autora, reside numa concepção trans-histórica do trabalho (Postone, 2014), para a qual toda e qualquer atividade subsumida aos imperativos do capital (como a uberização, por exemplo) torna-se “trabalho socialmente necessário” (Marx) e, portanto, válido do ponto de vista da acumulação. O que organiza o argumento da autora neste momento do texto parece ser uma pressuposição de que se alguém perde (os trabalhadores), certamente alguém está ganhando (e acumulando), mediada pela propriedade do capital monetário. A interpretação e crítica que estamos sugerindo aponta para a necessidade de tomarmos a contradição fundamental do capital como aquela que este último estabelece consigo mesmo em sua dinâmica temporal, ao serrar o galho sobre o qual assenta sua reprodução ampliada, isto é, o trabalho.

Por fim, e à guisa de conclusão, gostaríamos de dizer que o diálogo crítico que apresentamos aqui, certamente insuficiente, aponta para a necessidade de problematizar o outro sentido da expressão “ir para a rua” apresentado pela autora. A despeito da aparência que este processo guarda com uma “remobilização para o trabalho” (Gaudemar, 1977) (aos moldes de uma renovada acumulação primitiva), ao submeter uma população despojada de seus antigos empregos e moradias a uma novíssima modalidade de trabalho corporificada na expansão de empresas-plataforma que parecem fazer do espaço urbano sua “planta industrial”, acreditamos ter oferecido elementos para observar tal fenômeno à luz de outra perspectiva, como apenas mais uma das formas da “reprodução do colapso da modernização”.

De nossa parte, para aquém do diálogo crítico aqui apresentado, nos resta torcer para que a experiência de sofrimento que a reprodução do colapso da modernização vem impingindo à população, alimente um sentimento de recusa e crítica ao trabalho e não estritamente à sua apropriação pelos donos do capital.

Notas

[1] A metropolização de São Paulo foi extensiva em dois sentidos: como expansão da mancha urbana, isto é, “produção absoluta do espaço” (Smith, 1988) e como manifestação empírica da extensão da jornada de trabalho (mais-valia absoluta) das famílias pioneiras corporificada nas moradias autoconstruídas.

[2] O grupo de rap Racionais MC’s certamente é uma das mais importantes fontes para se pensar nos efeitos do colapso da modernização no cotidiano da população periférica paulistana.

[3] Em 1997 FHC se referia cinicamente a esse problema dizendo a seguinte frase: “O processo global de desenvolvimento econômico cria pessoas dispensáveis no processo produtivo, que são crescentemente ‘inempregáveis’, por falta de qualificação e pelo desinteresse em empregá-las”. (Folha de São Paulo – Brasil – São Paulo, terça, 8 de abril de 1997).

[4] A viração, o bico ou o biscate não são práticas laborais inéditas na vida social brasileira (cf. Oliveira, 1972). Seu ineditismo, entretanto, se refere à relação que estabelece com a diminuição progressiva de trabalho vivo nas unidades produtivas, a qual vai progressivamente tornando todos os trabalhos improdutivos. (cf. Giavarotti, 2018)

[5] Importante dizer que aí já se manifesta de forma muito evidente o problema relativo ao esfumaçamento entre produção e reprodução apontado pela autora ao final de sua coluna. Para uma análise mais dedicada acerca deste problema indicamos nossa tese (Giavarotti, 2012).

[6] Isto ficou evidente no termo “autogerenciamento subordinado” cunhado por Costhek (2019) para definir a condição dos “colaboradores” da Uber, embora construa seu argumento de modo a enquadrar, mesmo que a fórceps, esta relação de trabalho em crise no antigo esquema da luta de classes, com capitalistas de um lado e trabalhadores do outro.

[7] Indicamos o ensaio “Ascensão do dinheiro aos céus” de Robert Kurz (2014), em especial o item “a revolução terciária” para lidar com o problema aqui apontado.

[8] Neste particular se faz necessário dizer que, a despeito do aumento do salário mínimo proporcionado pelos governos petistas, a inclusão financeira da população trabalhadora foi um importante motor de sustentação do chamado neodesenvolvimentismo.

3 COMENTÁRIOS

  1. Caro Daniel,

    Primeiramente te agradeço pela disponibilidade de dialogar, principalmente em tempos tão castradores. Temos muito em comum no que tange à observação de que as periferias autoconstruídas não podem ser mais lidas da mesma maneira que na década de 1970; mais do que isso, entendemos ambos que suas transformações são parte orgânica das transformações no mundo do trabalho e da cada vez maior predominância do capital fictício, subsumindo a esfera produtiva. Nas minhas colunas, sempre busco trazer estas relações, contrapondo-me a visões que ou colocam o urbano como expressão simplória das relações sociais, substrato passivo, como um palco; ou ainda, do outro lado, visões internas ao urbanismo que acreditam que seria possível alterar relações sociais pelo redesenho abstrato do espaço.

    Dito isso, são necessários alguns comentários sobre seu texto. Primeiramente, acho importante problematizar a ideia do espaço urbano como uma “indústria a céu aberto”, espécie de chão de fábrica de um possível “novo ciclo de acumulação”. Primeiro porque o espaço urbano está muito longe de ser tão controlável e monofuncional como um chão de fábrica (capital fixo) – ainda que as plataformas se esforcem em tentar, através da manipulação algorítmica do controle dos corpos por meio do georreferenciamento. Segundo porque a lógica da uberização não é a lógica do capital produtivo. Não se trata de lucro (industrial), mas de reprodução financeira. Para esta, o que importa é a “produtividade” do fluxo, sua intensidade, e não a produção de mercadorias (ou serviços como mercadorias). Importa menos a produção de muitas mercadorias, mas o aumento das mediações por quais ela passa para se realizar – pois de todas estas mediações, são capturados partes do fluxo de capital de cada etapa. Importa a centralização e controle destes pequenos fluxos. Quanto mais mercadorias, melhor para aumentar os fluxos, não por conta dos lucros industriais alcançados especificamente em cada mercadoria, que são mínimos – um fenômeno da crise do trabalho, como você já expôs.

    Isso significa que quando falo de extrativismo, não estou falando de acumulação. Falo de uma forma dinâmica de captação, na qual importa saber gerenciar e centralizar fluxos, para redistribuí-los. É uma atividade rentista, não produtiva. Bem como as virações não podem ser entendidas como parte da esfera da produção (como o capital variável que gera mais-valia): trata-se de reprodução social, formas de sobrevivência que, atualmente, significam dar conta de pagar as dívidas no final do mês (da moto ao aluguel, do supermercado às prestações dos bens de consumo, e por aí vai). Isso não é “esteio da acumulação”, mas parte do processo contínuo (de crises) do capital que – talvez neste ponto eu discorde de você – não é uma linha reta rumo ao fim, mas um processo dinâmico constante de tendências e contratendências. Entendo que esse processo de uberização faz parte das contratendências, ou “causas contrariantes”, na acepção marxiana. Diz Marx (Capítulo XIV, Livro III) que elas são: elevação do grau de exploração do trabalho, compressão do salário abaixo de seu valor, barateamento dos elementos do capital constante, superpopulação relativa, comércio exterior e, por fim, aumento do capital por ações. Bom, a uberização é o combo de tudo isso junto!!

    Por fim, não acho que qualquer atividade subsumida ao capital seja “trabalho socialmente necessário”. Pois “trabalho socialmente necessário” é “necessário” para o capital industrial (e não para o trabalhador), ou seja, um conceito que se aplica à produção de mercadorias, o que não é o caso aqui. Na uberização, o trabalho (vivo) não é necessário: tanto que traquitanas tecnológicas como drones e carros autônomos são a bola da vez. No caso do rentismo, importa o “fluxo financeiramente necessário”, no qual eu completaria “para contrarrestar a tendência de crise do capital”. Isso não tem nada a ver com “esteio da acumulação do capital”, mas com a distribuição (do que resta) dele, cada vez mais monopolista.

    Do ponto de vista dos trabalhadores, que já vivem na viração desde sempre no Brasil, o que mais importa é que, de fato, a subsunção não se dá mais apenas na esfera da produção, no momento da venda da força de trabalho – quando o trabalho tinha que ser “socialmente necessário”. Ela se dá também na esfera da reprodução social, por conta do endividamento. As pessoas são instadas a ter alguma atividade que lhe dê rendimentos (não digo “salário”, pois ainda não me convenci de que seja o caso). E neste ponto, retomamos a discussão do urbano e da autoconstrução. De outro patamar, evidentemente. Talvez o principal papel da uberização para o capital (enquanto totalidade) não seja a circulação de mercadorias e pessoas, mas sim a criação de endividamento, a impossibilidade de autopromover a reprodução social (como ocorreu na era industrial), pois não há tempo disponível que não seja tempo subsumido. E aqui temos uma fronteira política nova a enfrentar.

    Obrigada pela possibilidade de diálogo, Daniel! Continuemos…

  2. Olá Isa, boa tarde;
    Peço desculpas pela demora em responder sua réplica ao meu texto, mas como desconfio que, como eu, você concorde que o esforço de reflexão e crítica não tem nas redes sociais o seu melhor veículo, embora seja incontornável ao debate, considerei que tal demora não seria exatamente um problema.
    Como já dito por você, compartilhamos de um mesmo ponto de partida, qual seja: de que os territórios periféricos metropolitanos já não são os mesmos e que suas transformações podem ser observadas à luz das transformações no mundo do trabalho, ou nos meus termos, na mobilidade do trabalho. Pelo que entendo, talvez estejamos de acordo também de que diante de tais mudanças se faz necessária uma reconsideração crítica dos termos pelos quais hoje se dá a relação entre periferia, trabalho e acumulação de capital. E este movimento do pensamento está evidente quando busca considerar as imbricações da esfera produtiva e reprodutiva em contexto urbano, superando a estrita separação entre produção e reprodução e sua relação com a acumulação de capital. Neste sentido, eu compreendo perfeitamente sua primeira crítica à ideia exposta por mim de que a “subsunção real da viração” implicaria na constituição de uma “indústria a céu aberto”. Entretanto, o meu uso desta expressão buscava explicitar algo que me parece estar subjacente ao seu próprio argumento. Do modo como vejo, a expressão “subsunção real da viração” trai o seu próprio modo de compreender o processo analisado na medida em que esta ideia envolve transformações qualitativas nos processos concretos de trabalho de modo a garantir maiores taxas de exploração pela redução da entropia. Daí o uso da expressão “indústria a céu aberto”, já que o que está pressuposto é de que estaríamos testemunhando estritamente capitais altamente concentrados, centralizando trabalhadores sob seu poder despótico (na forma de empresas plataforma) e arrochando cada vez mais o parafuso do controle e da gestão do trabalho de modo a sugar mais mais-trabalho. Todavia, como você mesmo disse aqui, não é mais-valia, é renda, portanto um tributo cobrado pelo aluguel de capital aos trabalhadores, por exemplo na forma do endividamento. Portanto, se estamos mesmo vendo um processo de extrativismo, qual o sentido da expressão “subsunção real da viração”? Acho que a expressão traz mais problemas para o entendimento do processo. Eu acho mesmo que a gestão promovida pelas empresas plataforma tem mais cara de “biopolítica” ou “necropolítica” do que exploração do trabalho, embora a finalidade fetichista de fazer de um “dinheiro dois dinheiros” permaneça como fundamento da reprodução econômica e, portanto, o desenvolvimento tecnológico e as formas de gestão e controle do trabalho permaneçam operantes, mesmo que girando em falso, do ponto de vista da acumulação do capital.
    Entretanto, percebo ainda que este problema é rebatido no uso que você faz da tese das contratendências do capital. Do modo como compreendo, este momento do texto do Marx busca discutir os expedientes pelos quais os custos envolvidos nos processos produtivos (na forma de matérias-primas, meios de produção, força de trabalho, capital alugado) podem ser rebaixados de modo a contraarrestar a queda tendencial da taxa de lucro. Mas se, como você afirma, o que está em jogo na forma atual de circulação dos fluxos financeiros é o modo como eles se capilarizam na vida social e extraem rendas (mediados pela propriedade deste capital) como é que a teoria das contratendências ajuda a compreender este processo que, do modo como você compreende e eu também, é de distribuição da mais-valia? Ademais, e neste ponto eu estou de acordo com você de que temos uma discordância: a modernização, no modo como compreendo, é um processo linear, mas não sem rupturas. Ele é “linear” pois envolve um processo imparável de desenvolvimento das forças produtivas (o algoritmo que gere o trabalho dos motofretistas é filho do mesmo conhecimento responsável por construir os robôs que substituem o trabalho vivo nos processos produtivos) e a queda tendencial da taxa de lucro é a forma fenomênica (econômica, num sentido economicista) do aumento da composição orgânica dos capitais. É este o nível da reprodução do capital que indica a crise do trabalho, sendo a queda tendencial apenas um fenômeno econômico daquela, como formulou Moishe Postone.
    Por fim, não sei se compreendo a réplica que você me faz com relação ao “trabalho socialmente necessário”. No modo como compreendo, o trabalho socialmente necessário é necessário do ponto de vista do capital, da necessidade de acumulação, embora esta esteja em crise, o que faz aquele desaparecer. Até porque a crise não se revela na contabilidade das empresas. Estas, ao contrário, como demonstrou o Marx, apagam a crise ao igualar capital constante e capital variável. Se a substituição de motofrestistas por drones e outras parafernálias aparecem ao capital individual (e “na consciência constumeira dos agentes da produção”) como diminuição de custos, ela será levada adiante, muito embora este seja mais um aprofundamento da crise do trabalho, ao engrossar a fileira da superfluidade. E neste sentido, independe se é o trabalho industrial (produtor de coisas materiais) ou na esfera da circulação (imateriais), pois a acumulação se funda no trabalho abstrato, à revelia de sua materialidade. (o que não significa que todo o trabalho seja produtor de mais-valia). No modo como compreendo a dinâmica temporal do capital (Postone) o trabalho necessário sempre se torna supérfluo a cada novo salto produtivo, embora se recomponha fetichistamente como “trabalho necessário”, mesmo incapaz de garantir a acumulação de capital, que se torna fictícia por causa da expulsão do trabalho vivo. Quando digo que eu acho que você afirma uma concepção transhistórica do trabalho e supõe que todo o trabalho concreto se torne “trabalho socialmente necessário” meu intuito é explicitar que você desconsidera a diminuição absoluta e secular de trabalho vivo nos processos produtivos. Em outras palavras, desconsidera a própria dinâmica crítica do capital que serra o galho sobreo qual se assenta (o trabalho abstrato), o qual seria capaz de se recompor indefinidamente e, portanto, restaurar sua capacidade de exploração do trabalho.
    Agradeço também o diálogo Isa! Continuemos!
    Um forte abraço

  3. Gogol, obrigado pelo comentário.

    Eu não conhecia os textos do Charles Júnior (e, infelizmente, demorei muito para conseguir lê-los). De minha perspectiva, há um problema de fundo que é sintetizado por Postone, em Tempo, trabalho e dominação social. Valor, em Marx, não é exatamente uma “categoria econômica”. Ele utiliza-a criticamente, apropriando da formulação dos economistas clássicos, mas a dobra para uma perspectiva crítica. Por isso ele deve falar em forma-social contraditória.

    Charles está partindo aqui do trabalho do Mészáros, que é interessante, mas também insuficiente. Uma teoria das crises consequente é, a meu ver, mais bem desenvolvida por Robert Kurz, desde o “O colapso da modernização” até o “Dinheiro sem valor”.

    E aqui, da minha perspectiva, essa teoria não é “incompatível com a lei do valor, nos termos colocados por Marx”, como você escreve – pelo contrário, acho muito mais coerente com os escritos de Marx – por exemplo, Marx, nos Grundrisse escreve:

    “O seu próprio pressuposto – o valor – é posto como produto, e não como pressuposto superior, pairando sobre a produção. O limite do capital é que todo esse desenvolvimento procede de modo contraditório, e o aprimoramento das forças produtivas, da riqueza universal etc., do conhecimento etc., aparece de tal forma que o próprio indivíduo que trabalha se aliena [entäussert]; se relaciona às condições elaboradas a partir dele não como suas próprias condições, mas como condições de uma riqueza alheia e de sua própria pobreza” (2011, p.723)

    No livro III d’O Capital, Marx escreve: “Um desenvolvimento das forças produtivas capaz de reduzir o número absoluto de trabalhadores, ou seja, em que toda a nação possa efetuar a produção total em um menor intervalo de tempo, provocaria uma revolução, pois inutilizaria a maior parte da população”

    Um parêntese: o drama é que vivemos num mundo que “inutilizou” (e continua inutilizando) parte da população sem que isso produza qualquer revolução.

    Isso porque, em Marx, a reprodução ampliada do capital é necessariamente contraditória. Ver, por exemplo, o capítulo XXIII do Livro I, d’O Capital: por uma necessidade intrínseca à própria reprodução do capital, o trabalho é substituído por máquinas. Nesse processo, entretanto, coloca limites intransponíveis à valorização do valor. Por isso há uma tendência de “anacronismo” do valor como forma social – e, a meu ver, essa intuição já está dada em Marx. O aumento da composição orgânica do capital acaba bloqueando a valorização do valor. Se a substância do capital é o valor, e o valor é uma forma historicamente determinada de mediação social baseada no trabalho (entendido enquanto uma categoria moderna), então, o próprio capital entra em colapso.

    Há nesses textos elementos que corroboram com o desenvolvimento de uma crise. Mais recentemente, há o esforço do Fábio Pitta para uma interpretação da “bolha de commodities” ou o texto de Luiz Phillipe De Caux sobre o “definhamento da forma-jurídica” que acompanha o decaimento da forma valor. Há a dissertação de mestrado de Ana Sylvia Ribeiro (defendida na USP, orientando de Anselmo Alfredo) sobre o consumo ficcionalizado nas periferias.

    Além disso, acho que a interpretação da crítica do valor oferece subsídios importantes para compreender a realidade para além dos “dados econômicos”. É uma teoria que ajuda a explicar não só a ficcionalização do capital (decorrente de sua dessubstancialização), mas ajuda a explicar a disseminação da violência, ajuda a explicar o levante do “novíssimo radicalismo de extrema direita”, entre outros processos sociais.

    Parte dessas questões levantadas já respondem algumas das questões colocadas por Isadora, a quem agradeço enormemente a oportunidade do diálogo (que, com certeza, não se encerra aqui).

    Eu não sei se a dominância do capital portador de juros – em particular o capital fictício – permite falar em “valorização do valor”. Pois o que acontece é um “adiantamento” de mais-valor que não existe – a imagem que Kurz usa é de uma “fuga para frente”. Assim, não há acumulação “real”, mas apenas uma “simulação” de valorização, sustentada (sustentada?) Por montanhas de capital fictício”.

    Como falei, o contexto de crise instaurada pelo desenvolvimento da contradição interna do capital produz esse sistema de crédito mundializado, empilhado e inflacionado, que camufla a derrocada da valorização do valor. Valorização financeira, para Kurz, não significa valorização do valor. Acho que é uma distinção pertinente para pensar uma série de desdobramentos.

    Então, eu concordo com você que “o capital portador de juros passa a subsumir as relações sociais de maneira diversa daquela do capital industrial – a meu ver, dando outros contornos ao lugar da reprodução social, na medida em que a este capital servem corpos rentáveis, não necessariamente produtivos”. Entretanto, isso não significa valorização do valor, mas um outro tipo de sociabilidade de crise – e é preciso conceitualizar melhor o que isso significa.

    Assim, acho que uma pauta para nossas próximas conversas (tomara que presenciais) deve ser o lugar do capital portador de juro. Acho que reside aqui nossa divergência na forma de ler o Marx.

    Falar do “do fim de uma forma” e da “forma mais crua e mais bem acabada” não é, a meu ver, uma confusão. Como escreve Hegel no prefácio da Fenomenologia, é só no fim que uma coisa é o que é. Então, acho coerente afirmar que Marx estava sim reconhecendo com a formação do capital portador de juros uma dinâmica de colapso da forma-valor.

    De toda forma, o debate segue em aberto. Uma oportunidade muito boa conseguir fazer isso que Brecht chamava de “pensar dentro de outras cabeças” – obrigado!

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