Por José de Sousa Miguel Lopes
William Faulkner nasceu em 1897, na cidade de New Albany, Mississippi (EUA). Fez a sua estreia na ficção em 1926, com o seu romance Soldier’s Pay. O escritor, a partir desse ponto, passou a ter uma produção prolífica e sua literatura partiu para o impacto que foi O Som e a Fúria, romance de 1929. Sua consagração internacional, por sua vez, veio com Palmeiras Selvagens, de 1939. Posteriormente, o autor foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1949.
Dezessete dos livros de William Faulkner foram ambientados no mítico condado de Yoknapatawpha, no sul dos Estados Unidos, e que viria a ser o lar da família Compson no romance O Som e a Fúria. O condado nos parece um lugar bem real dos Estados Unidos sulista, e todos os costumes e ações estão lá fielmente retratados, em um período que abrange as primeiras décadas do século XX.
O Som e a Fúria tem este caráter de vida áspera e sem perspectiva. A família Compson é descrita em detalhes, e inúmeros conflitos emergem de uma convivência difícil entre personagens que vivem histórias caóticas. Eles se entrechocam na obrigação de estarem juntos diante de desafios que os colocam em um mesmo diapasão de embate, dor e demandas inumeráveis. Tudo isso em um cenário dos Estados Unidos sulista.
Este livro foge a qualquer referência anterior de ficção e o seu desenrolar narrativo choca o leitor sem grandes experiências de leitura. É que o romance não se apresenta gradativamente ao leitor, como na forma tradicional, para a acumulação de episódios e ações e o consequente desfecho do enredo. O Som e a Fúria não tem um enredo, embora tenha uma história detalhada. As revelações dos personagens e do narrador, nas quatro partes do livro, cronologicamente embaralhadas, são pequenas peças, um tanto informes, de um grande quebra-cabeça, que se irá completando sem chave ou final pré-determinados. Só após a leitura, entre surpresos e estarrecidos, é que começamos a organizar aquele “caos” temporal, e então penetramos, não só numa realidade artística fantástica, com num mundo atroz e repulsivo.
Li o O Som e a Fúria na mesma época em que li Ulisses de James Joyce. Foi imensa a perturbação que senti pelo estilo dos dois autores, pois eles rompiam com a narrativa linear a que estava habituado ao ler outras obras. Nestes dois romances defrontei-me com personagens profundamente fragmentados. Se, no início dos dois romances, a leitura foi penosa, à medida que ia compreendendo que estava enfrentando uma inovadora forma de retratar os personagens e suas múltiplas subjetividades, minha apropriação do texto literário ganhou novas dimensões e novos desafios. Algumas passagens mais obscuras não subverteram a imensa luminosidade que se desprendia na esmagadora maioria das narrativas inovadoras destes dois mestres da literatura.
O livro de Faulkner deixou-me exaurido ao final, não de forma negativa, como uma leitura enfadonha, mas com uma sensação de que o tempo é uma força motriz insuperável e, quando apresentado do ponto de vista mais profundo e interno, o qual só os grandes escritores conseguem captar, nos faz ter vontade de destrinçá-lo para melhor entendê-lo.
Um aspecto curioso relativo à gênese do livro O Som e a Fúria é que Faulkner (ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1949) teve sua obra rejeitada por diversas editoras. O mesmo aconteceu com o escritor William Golden com seu livro O Senhor das Moscas, rejeitado por várias editoras e que acabou depois por ganhar o Nobel. Haverá, provavelmente, outros casos semelhantes, o que prova que as editoras enfrentam problemas sérios ao avaliarem a qualidade dos livros que lhes são propostos para publicação.
É importante ter em conta a historicidade das biografias, o papel que elas desempenham não apenas no processo histórico, mas também na sua relação com os autores. Sabemos que, até recentemente, o estudo das biografias era completamente ignorado e não fazia parte dos planos de estudo, das bibliografias e dos trabalhos acadêmicos. Isso torna muito difícil avaliar uma obra, uma investigação inédita de outras que não o são. Tem sido tão escassa a teoria gerada pela prática da biografia que sequer dispomos de um cânone, de um consenso sobre os livros que marcaram o avanço do gênero.
O gênero biografia converteu-se, nos últimos anos, em um dos centros de interesse acadêmico dos cursos de Humanidades. Sua natureza interdisciplinar, entre a história e a literatura, requer o concurso de outras disciplinas (antropologia, sociologia, psicologia, psicanálise…) e de reflexões teóricas que permitam satisfazer as exigências analíticas e de conhecimento próprias do trabalho intelectual.
Vivemos a idade de ouro da biografia, ao menos no que diz respeito ao mundo ocidental.
O interesse pelas vidas reais se acha presente em todos os meios de comunicação (cinema, televisão, imprensa, internet), monopoliza as novidades editoriais e, por fim, está entrando no mundo acadêmico como uma disciplina que, incrustada entre a história e a criação literária, facilita a interpretação da vida humana individual, passada ou presente.
É magistral a reflexão de Barthes (1988) sobre o poder do autor quando nos diz que “o autor só possui um poder e um destino: combinar textos preexistentes e propiciar o nascimento do leitor”. É assim que me sinto ao fazer a leitura de um texto: estar nascendo como leitor. E a cada texto novo nascimento. Tantos nascimentos quantos textos usufruí. Não partilho a tese da morte do autor. Nesse sentido concordo com Bakhtin, pois sem o autor não existiria literatura.
Não pretendo no texto de Faulkner colocar em oposição os pontos de vista sobre os temas “morte” ou “vida” do autor, mas encontrar uma síntese conciliadora. Buscar essa síntese conciliadora nos remete, inevitavelmente, para o sentido da vida, indagação que persegue todos os filósofos desde a antiga Grécia. Nesse sentido, é bastante significativa a reflexão sobre o sentido da vida feita pelo prestigiado físico italiano, Carlo Rovelli (2021). Numa entrevista que deu em 2021 ele diz que:
o sentido da vida para todos nós será a rica combinação de necessidades, desejos, aspirações, ambições, ideais, paixões, amor e entusiasmo, que surgem em várias medidas e em diferentes versões naturalmente de dentro de nós. A vida é uma explosão de significado.
O diálogo entre os gêneros histórico e literário datam do início da teorização da arte ocidental quando Aristóteles distinguiu ambos ao afirmar que o historiador ocupa-se do que efetivamente aconteceu enquanto o poeta preocupa-se com o que poderia ter acontecido. Com o passar dos séculos, a literatura e a história se afastaram principalmente em virtude da rigidez teórico-metodológica empregada pela cientificidade do século XIX. No entanto, com o advento da Nova História, os historiadores careciam de fontes para responderem aos questionamentos suscitados por novos objetos de análise e, por conta disso, a literatura se reaproximou da história, servindo de fonte para compreender o imaginário e o cotidiano de um dado contexto histórico.
Tanto a história quanto a literatura nasceram como musas — respectivamente, Clio e Calíope — como as filhas da memória, buscavam representar e interpretar o mundo a partir de suas narrativas.
Faulkner em O Som e a Fúria revela a evidência pungente de um artista lutando com seus recursos herdados, lutando contra sua consciência dos erros da tradição que ele ama e da memória coletiva que ele absorveu. Colocar em diálogo a dicotomia entre modernidade e tradição implica em aceitar da existência de uma tensão dialética entre estes dois momentos lógicos e empíricos que, sendo contraditórios, se relacionam, se complementam, se confrontam, se interpenetram, de forma tensa e segundo condições históricas, sociais, políticas, econômicas empiricamente diferenciadas.
A decadência da família retratada nesta obra pode ser vista, no entanto, não apenas com referência ao passado do sul, mas também à cena americana contemporânea. É tentador lê-la como uma parábola da desintegração do homem moderno. Indivíduos que não são mais sustentados pela unidade familiar e cultural são alienados, fragmentados e perdidos em mundos privados. É isso que se pode verificar quando constatamos o modo como uma parte bastante significativa da atual sociedade americana vive numa profunda decadência, não apenas em termos econômicos, mas no alastrar de crenças religiosas sobre o apocalipse, parecendo viver em bolhas fora da realidade.
Um aspecto interessante é o modo com Faulkner constrói seu texto. Com efeito, a trama é contada alternadamente pela visão de diversos personagens. No entanto, não acompanha a cronologia do relógio, mas tem um tempo psicológico, da memória ou, então, do próprio fluxo da narrativa de Faulkner. Aos poucos, o que se revela é uma trama quase como repetição, com nomenclaturas que se sucedem e um destino que, apesar de evidente desde o caos inicial, é praticamente impossível se escapar.
Ao analisar o fluxo de consciência nesta obra de Faulkner, fui remetido para outros grandes escritores deste estilo como é o caso de são James Joyce e Virginia Woolf. Para estes o fluxo de consciência é também o monólogo interior. Entretanto, outros autores separam esses dois conceitos, pois apresentam diferenças significativas sobre esses dois estilos. O monólogo interior é uma camada da mente humana. Já o fluxo de consciência é como se fosse um mergulho mais profundo em diversas camadas, ao mesmo tempo, da mente humana. O fluxo de consciência, em poucas palavras, nada mais é do que uma tentativa de escrever simulando a ordem — ou desordem — dos pensamentos, utilizando para isso a quebra das regras gramaticais. A característica não-linear deste processo leva frequentemente a rupturas na sintaxe e na pontuação. Faz lembrar José Saramago, que não utiliza pontuação em seus livros.
Grosso modo, o que está em causa é que a consciência se apresenta em constante mutação, ininterruptamente, concentrando-se sobre determinadas impressões e sensações, enquanto ignora outras. A primeira aplicação óbvia na Literatura é através dum narrador em primeira pessoa, que expõe seus pensamentos e vivências numa sequência contínua e abrupta, alternando seu foco de acordo com a corrente mental.
Não se pode ignorar a categoria tempo nesta obra de Faulkner. Mas, previamente, chamarei para o diálogo um poeta, um crítico literário, um arquiteto e uma romancista. Começarei com o poeta brasileiro Dante Milano que tem um poema dedicado ao tempo.
Ao tempo
Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida
A um tempo aproximando e distanciando…
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando
Tempo, vais para diante ou para trás?
O poeta vive a angústia de não poder controlar o tempo que nos impede de ter a certeza para onde ele caminha: para diante ou para trás?
Num pequeno documentário, dois portugueses, o crítico literário Eduardo Lourenço e o arquiteto Siza Vieira, travaram um curioso diálogo sobre o tempo:
Eduardo Lourenço (2019) afirma:
Hiroshima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a Humanidade faz a si mesma, não é? E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?
E Siza Vieira (2019) conclui: “E se assim não fosse talvez se tornasse insuportável”.
Neste diálogo a angústia sobre o controle do tempo se amplia, pela constatação inapelável de que tudo o que foi criado irá desaparecer.
A escritora Marguerite Yourcenar publicou um livro em 1983 com título O tempo esse grande escultor no qual afirma que
Sob certo aspecto, a vida de uma estátua começa no dia em que fica pronta. Concluiu-se a primeira etapa, pela qual, graças, aos cuidados do escultor, o bloco de pedra adquiriu forma humana; uma segunda etapa, ao longo dos séculos, após alternâncias de adoração admiração, amor, desprezo ou indiferença e graus sucessivos de erosão e de uso, irá leva-la gradativamente ao estado de mineral informe do qual a havia arrancado o escultor (1985, p.58).
O belo exemplo da vida de uma estátua, que tem início quando fica pronta e tem sua “morte” quando, por força da erosão que enfrentou ao longo de séculos, acaba voltando ao estado mineral inicial.
Todas estas vozes que se debruçam sobre o tempo se somam às dos físicos, dos filósofos e dos psicólogos que acabam por expressar a fugacidade do tempo, a angústia de tentar controlá-lo, e a conclusão que o único tempo que efetivamente temos é o presente, uma vez que o passado e o futuro são inalcançáveis. Isso é visível em Faulkner, que explora com maestria o tempo histórico, o tempo psicológico e o tempo mítico.
Um aspecto que chama a atenção é o modo como ele transcreve o complexo processo de pensamento de um personagem, com o raciocínio lógico entremeado com impressões pessoais momentâneas e exibindo os processos de associação de ideias.
No texto de Faulkner também se faz presente a imaginação moral que pode ser entendida como a capacidade distintamente humana de conceber a pessoa como um ser moral e, ao mesmo tempo, como o processo pelo qual o eu cria metáforas a partir de imagens e de experiências captadas pelos sentidos, armazenadas na mente e, posteriormente, empregadas para descobrir e julgar os padrões éticos em realidades concretas.
A principal fonte dessa imaginação moral sempre foi a Bíblia, assim como obras de grandes teólogos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A filosofia clássica de Platão e de Aristóteles, assim como dos estoicos e de Cícero, também é muito importante. Por fim, não podem ser ignorados os trabalhos de historiadores clássicos como Heródoto, Tucídides, Tito Lívio e Tácito. Todavia, faz-se necessária alguma precaução para não confundir a noção de imaginação moral com algum tipo de moralismo. A formação pessoal do leitor é fundamental para apreendermos a imaginação moral nas grandes obras literárias. Quanto maior for nossa disciplina de leitura, mais estaremos aptos para alimentar nossa imaginação moral.
Pela imaginação moral, conseguimos transformar as imagens reais em janelas abertas a nós próprios, permitindo que nos vinculemos às virtudes por detrás delas.
Além disso, a imaginação moral possui uma capacidade criativa, posto que, ao se apropriar de diferentes virtudes simbólicas, em diferentes imagens reais, é possível reproduzir esses símbolos em novas imagens, ou seja, em novos artefatos culturais.
Assim, percebemos que, apenas pela vinculação com o passado, somos bem-sucedidos na busca por um sentido que nos humanize; e sem comunicação, isto é, sem imaginação moral, tal vinculação é impossível.
Uma última consideração a respeito desta obra de Faulkner é a questão da autoridade e legitimidade de quem escreve a História. É ponto pacífico que a História tem sido sempre escrita pelos vencedores. Quando duas culturas se chocam, o perdedor é extinto, e o vencedor escreve a história em livros. Livros estes que exaltam sua própria causa e menosprezam o inimigo vencido. Não é o que ocorre nesta obra de Faulkner. Com efeito, embora o autor e a família que descreve estejam inseridos na classe dominante, ele consegue mostrar empatia e até exaltar os perdedores personificados por Dilcey, a criada da família Compson. O que revela este posicionamento? A família Compson é, naturalmente, uma família decadente e, como tal, se aproximando cada vez mais do universo dos dominados.
O autor também vivenciou a decadência da própria família. Em 1861, com a Guerra da Secessão, desmorona todo um universo familiar, quer entre negros, quer entre brancos. Durante quatro anos, o sul é devastado, desfazem-se a delicadeza e as maneiras gentis e instaura-se a degeneração moral e física dos brancos pobres e das famílias arruinadas pela abolição. Faulkner cresceu em meio a esse ambiente. Não será por isso que esses episódios marcaram sua obra? Ele tentou escrever e reproduzir a situação do sul decadente ou, ao contrário, procurou refazê-la, reconstruí-la? Nessa reconstrução não será o autor levado a sentir essa empatia pelos dominados, já que ele e sua família estão agora nas mesmas condições? Indagações para as quais, muito provavelmente, provocarão no leitor diferentes respostas.
Finalizando, este é um romance que lida com temas abstratos: a dimensão do tempo como causa da ruína de tudo, a impossibilidade de sua negação, a transitoriedade da vida, os modos como os indivíduos agem em decorrência do meio em que vivem, o papel do trabalho, visto ora como redenção, ora como purgação da existência, a vida como extenso complexo de dilemas sobre os quais não temos controle nem respostas definitivas. Tudo isso justifica, em parte, porque esta é uma obra sempre fundamental: ela irradia algum som sobre a fúria da vida.
Referências
BARTHES, Roland. A Morte do Autor. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FAULKNER, William. O som e a fúria. Trad. Paulo Henriques Britto. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
LOURENÇO, Eduardo. In: MARTINS, José Eduardo. A problemática do legado a partir do trailer de “O labirinto da saudade”, 27/04/2019.
http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2019/04/27/a-problematica-do-legado/ (Acesso em 20/02/2022)
MILANO, Dante. Poesias. Petrópolis: Editora Firmo, 1994.
ROVELLI, Carlo, O tempo não existe: a visão de Carlo Rovelli, considerado o novo Stephen Hawking. https://www.uol.com.br/tilt/noticias/bbc/2021/05/24/o-tempo-nao-existe-a-visao-de-carlo-rovelli-considerado-novo-stephen-hawking.htm (Acesso em 24/05/2021)
VIEIRA, Siza. In: MARTINS, José Eduardo. A problemática do legado a partir do trailer de “O labirinto da saudade”, 27/04/2019.
http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2019/04/27/a-problematica-do-legado/ (Acesso em 20/02/2022)
YOURCENAR, Marguerite. O tempo, esse grande escultor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
As fotografias que ilustram o texto são da autoria de Dorothea Lange (1895-1965).