Por Assembly

Os leitores vão entender que é desafiante a tradução deste artigo, não pelo trabalho de revisão em si, mas pelo contato com relatos que temos pouco prazer em ter conhecimento. É a isto que devemos orientar nossas atenções em um contexto de guerra unilateral por parte da Rússia. Não às retóricas palacianas ditas por tal ou qual líder imperialista, mas à resistência de gente miúda — que apesar dos pesares é capaz de coisas grandiosas. O artigo original, publicado em 6 de abril, pode ser visto AQUI. Relatos mais recentes podem ser lidos AQUI, em uma série ainda não traduzida para o português.

-Traduzido por Alan Fernandes, estudante de filosofia na UERJ e jornalista.

Kharkiv não se renderá e não irá se render aos assassinos de Putler [*] em grande medida pela determinação do povo em compartilhar as coisas que são mais necessárias e apoiar-se quando eles mesmos precisam de apoio. Enquanto socorristas, médicos e funcionários municipais estão no limite de suas intervenções, muitos mostram que ninguém que restou ficará à mercê do destino, compondo uma base voluntária.

Os bairros mais afetados estão sobrevivendo graças ao apoio humanitário. Todos aqueles retratados nestas fotos foram mortos pela “mãe Rússia” que veio a nós trazendo morte, em razão de prometerem vida em meio ao cerco. Todos estes tiveram a oportunidade de deixar a cidade enquanto houve tempo, mas ao invés disso escolheram proteger suas comunidades e permanecerão jovens por toda a eternidade…

Por favor contribua com nossa campanha de financiamento coletivo pela restauração de nosso centro comunitário. A fotografia em destaque foi feita pelo nosso repórter no dia da publicação deste artigo na principal avenida da cidade. Uma visão geral das ações de sabotagem antimilitar na Rússia e Bielorrússia no dia anterior da publicação deste artigo encontra-se aqui.

Todos nós de uma forma ou de outra temos observado esses atos espontâneos, ainda não compreendidos pelas tendências anarco-comunistas durante esses 42 dias de guerra. Nas desertas áreas residenciais, imersas em frio e escuridão, de algumas profundezas distantes da natureza humana, emergia um impulso para a vida em fraternidade, como uma pequena chama de vela ao vento. Aqueles que só podem lutar com civis queimaram conscientemente o mercado de roupas Barabashovo com foguetes, além de armazéns de alimentos: não havia lá apenas estoques de mercadorias — os comerciantes forneciam colchões, travesseiros, cobertores para aqueles que perderam suas casas…

E a vida mesma às vezes se torna o preço pago por tais atos.

Condutor de micro-ônibus, o pacifista Anton Khrustaliov ajudou a evacuar mais de 300 pessoas do distrito mais afligido — Saltovka — e morreu sob ataque de míssil durante mais uma incursão voluntária em 16 de março.

No mesmo dia, morria o líder do Flash Cross Project, Yuri Volchkov, engenheiro voluntário no Instituto de Transporte de Gás. Durante as horas iniciais da guerra, ele se alistou para dar suporte àqueles que necessitavam, entregando comida e medicamentos em Kharkiv. Uma bomba acertou seu carro.

Nikita Chukhno, um estudante que cursava seu terceiro ano na Universidade Nacional de Rádio Eletrônica de Kharkiv, também voluntariou-se desde o início da guerra e morreu em 26 de março. Neste dia, ele ajudou residentes a restaurarem suas vidraças. Uma explosão irrompeu enquanto Nikita caminhava dentre os materiais de construção.

Durante a disparada de um míssil na área do Gorky Park na tarde do dia 14 de março, estilhaços da “mãe Rússia” atingiram o carro do Exército de Ajuda para Kharkiv, uma organização voluntária. Artem Ayvazyan, de 26 anos, morreu, sua irmã Alena ficou ferida e foi submetida a uma cirurgia. Tanto ela quanto a outra irmã, Mariam Ayvazyan, também voluntárias, conseguiram se reerguer sem seus pais. Antes da guerra, ajudavam órfãos, depois pessoas desalojadas em abrigos, e agora os militares e civis de Kharkiv. Todos tinham formação em Pedagogia.

Yuliya Zdanovska, de 21 anos de idade e estudante da Faculdade de Mecânica e Matemáticas na Universidade Nacional de Kiev, foi voluntária na fundação Estação Kharkiv de caridade e tornou-se vítima do bombardeio na região administrativa no dia 1º de março. Em 2017, passou no exame de independência externa com a pontuação máxima de 200, e junto de sua equipe venceu a Olimpíada Europeia de Matemática com garotas de 44 países, engajou-se em ciência computacional em níveis escolares e olímpicos. Uma de suas últimas declarações foi: “Obrigado! Mas permanecerei em Kharkiv até a vitória”…

Natalya Skibina, 36 anos, estudante do departamento de regência coral do Simpósio Teológico de Kharkiv, morreu sob um ataque de mísseis na prefeitura em 2 de março. Ela se especializara em farmácia e se voluntariou para embalar remédios armazenados no município, destinados para hospitais.

10 anos atrás, Ihor Volokhov era um agitador anarquista conhecido como Cain, e enquanto estudava na Universidade Nacional de Direito em Kharkiv tentava estabelecer uma célula sindical de ação direta estudantil. Ele apoiou o Euromaidan e converteu-se ao liberalismo político. Originalmente da Criméia, na primavera de 2014 ele se tornou um dos fundadores do centro de ocupação sócio-cultural para desalojados em 2018. Desde os primeiros dias da invasão, se alistou para a defesa territorial de Kharkiv e morreu durante um ataque, quando finalizava seus deveres na entrada do Conselho da cidade.

Kharkiv é tradicionalmente conhecida como uma cidade de rostos entediados, ano após ano presos numa rotina diária cinzenta, sem procurar saber o que se passa ao redor. E em muitos lugares desta devastada terra, nesses específicos momentos, mais e mais pessoas estão começando a tomar os primeiros passos para retomar as suas vidas com suas próprias mãos. A súbita interrupção do ciclo diário de produção e consumo parece ter aberto uma fenda na sociedade, no fundo da qual as primeiras fagulhas de um novo mundo começam a se alastrar. Tudo é muito simples e difícil ao mesmo tempo.

Paradoxalmente, na condição de risco de vida constante, as pessoas têm ajudado umas às outras com mais freqüência do que em tempos de paz. É uma pena que este “comunismo do desastre” frequentemente suma com o desaparecimento do perigo. Embora a mobilização humanitária em Kharkiv seja, em sua maior parte, verticalizada, o compartilhamento de transporte e a distribuição de alimentos e medicamentos para aqueles que estão impossibilitados de deixar o local são um exemplo do germe anarquista auto-organizado dos de baixo.

Esperamos que este floresça novamente em meio aos esforços coletivos para reconstruir os bairros destruídos, e ademais nos dias de trabalho. Mas tudo isso ficará para depois. Antes de mais nada, nós antes precisamos sobreviver.

Veja também nosso relato recente de volta para 1919 sobre os famintos e o terror [do exército] branco nos subúrbios ocupados no nordeste de Kharkiv.

[*] Fusão dos nomes “Putin” + “Hitler”, relembrando o caráter fascista da política levada a cabo na Rússia.

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