Por Primo Jonas

Nestes conturbados dias vividos na República Argentina, as organizações sociais chamadas “piqueteras” parecem ser a única esperança de boa parte da esquerda. A crise econômica e monetária vivida no país empurra enorme parte da população à luta contra o empobrecimento.

Podemos descrever o imbróglio do governo peronista, em resumo, nos seguintes termos: Cristina Kirchner não tinha os votos suficientes para voltar à presidência após o fracasso do governo Macri, então, numa jogada que naquele momento foi entendida como “genial”, lançou-se como vice de uma personagem sem protagonismo, Alberto Fernandez. Esse, com um perfil mais ortodoxo e distanciado do sectarismo das organizações políticas fiéis à la jefa, primeiro geriu o desastre da pandemia com aparente sobriedade, mas depois, na ressaca da mesma, passou a ser pressionado por todos os lados, principalmente pela própria vice-presidente e seus seguidores. A vocação de luta intestina do peronismo chegou ao ponto do boicote público de diversos funcionários que respondiam a Cristina, minando as políticas econômicas do presidente. Quando este conflito chegou ao paroxismo, foi necessário convocar Sergio Massa, uma espécie de terceira via peronista, que já havia disputado eleições presidenciais contrapondo-se ao kirchnerismo (quando recebeu uma quantidade expressiva de votos, 21%).

As organizações sociais chamadas “piqueteras”, que herdaram esse nome por representar a mesma base social que, nos anos 90, ficou famosa por seus métodos de luta, se encontram divididas neste momento. Durante o governo Macri (2016-2019) houve uma certa confluência política, dado que o espírito da época foi o de “aguentar”: expressar rechaço político sempre que possível, mas ao mesmo tempo demonstrar uma grande capacidade de negociação com o governo. Não havia outra opção. Foi mais importante do que nunca apresentar-se como verdadeiros sindicatos de pobres, que não tinham objetivos políticos senão representar e conquistar melhorias para seus integrantes.

No entanto, com a chegada de Alberto à presidência, o tabuleiro se organizou com muito menos unidade. A chamada “CGT piquetera”, em alusão à central sindical oficial do país [Confederación General del Trabajo], agrupa as três principais organizações que hoje estão alinhadas com o governo: Movimiento Evita, a Corriente Clasista y Combativa e a Somos Barrios de Pie. Também integra a base governista o Movimiento de Trabajadores Excluídos, mas com maior distância e menos cargos. Sua distância já foi marcada recentemente, quando ameaçaram “desembarcar” do governo (o que possivelmente deixaria o governo sem maioria no Congresso) e participaram de protestos contra os rumos econômicos do país. Por fim, a frente chamada Unidad Piquetera, que conta com hegemonia do Partido Obrero (trotskista) e é composta de uma grande quantidade de pequenas organizações mais à esquerda, atua em oposição aberta ao governo (ou talvez fosse mais correto dizer oposição ao FMI, dado que acreditam que o fundo é quem realmente governa o país).

Quando Nestor Kirchner assumiu um país já detonado pela crise, sua proposta era deixar para trás todos os aspectos dos anos 90, especialmente a principal palavra de ordem da época, o famoso (e limitado) ¡Que se vayan todos!, uma expressão popular de rechaço a todos os políticos. A sua estratégia, ni palos ni planes [1], buscava integrar as organizações sociais na criação de postos de trabalho, e assim combater as organizações mais radicalizadas sem recorrer à repressão. Esse objetivo, no entanto, não foi plenamente realizável. Se, por um lado, não foi trabalhoso apaziguar as bases sociais, que se encontravam com um cenário econômico muito diferente do da década passada, por outro lado a incapacidade de realizar uma verdadeira transformação econômica no país e os compromissos assumidos com as lideranças dos movimentos, alçados a gestores e funcionários, obrigaram os governos kirchneristas a manter o financiamento das organizações por meio da gestão dos planos sociais.

A transformação de movimentos sociais em “sindicatos de pobres” passou a exercer uma pressão maior sobre o Estado como uma espécie particular de patronal, que deve negociar o valor dos planos sociais, sua extensão, além de outras prestações. O problema, ou um dos problemas, é que a tradição caudilhista traduzia as vitórias sociais em vitórias desta ou daquela organização, e somadas à “porta giratória”, pela qual lideranças sociais se tornam funcionários estatais e vice-versa, produz uma profunda fragmentação daquilo que algum dia foi o movimento piqueteiro. Cada sindicato deve realizar sua própria negociação com o Estado para garantir aos seus integrantes maiores quantidades de planos sociais, bolsões de comida para as cozinhas populares, etc. Essa realidade é ainda mais desanimadora ao saber que menos de um quarto da população com trabalhos informais recebe alguma modalidade de plano social, o que ajuda a que parte significativa da população entenda os planos sociais como privilégios operados através das redes clientelistas das organizações políticas. Estarão muito errados?

Neste contexto, também ocorrem debates complicados a respeito das políticas de assistência social. Os setores mais próximos a Cristina Kirchner pedem um Salário Básico Universal. As organizações sociais trotskistas criticam esta proposta porque o valor deste salário seria, inclusive, mais baixo do que os piores planos sociais atuais. Outra tendência que assusta a muitos é a transferência da gestão dos planos sociais para os municípios, que ganhou mais força com a pressão do setor cristinista. No começo da gestão de Alberto alguns sinais haviam sido dados neste sentido, mas no arranjo das suas alianças para enfrentar-se com as investidas do kirchnerismo “duro” ele teve que recuar nesta questão. Por outro lado está todo o setor das cooperativas de trabalho, que são uma modalidade de empreendedorismo de baixa produtividade financiado pelo Estado. Se bem que algumas destas cooperativas realmente realizam formas de trabalho democrático e consigam se conformar como unidades produtivas reais (especialmente nos ramos de serviços), também é verdade que muitas delas são estritamente controladas de forma vertical por organizações políticas, funcionando como caixas financeiras e ferramenta clientelista em territórios pobres.

Por marcarem mais presença nas ruas, estas organizações parecem estar encabeçando as lutas sociais na Argentina atual. Mas não é difícil ver que não se coloca sobre a mesa qualquer direção concreta para uma luta ampla e generalizável pelo resto da sociedade. É para suprir esse vazio que aparecem as consignas nacionalistas contra o FMI, contra os formadores de preços, contra a especulação, etc.

Ao mesmo tempo, mas com menos visibilidade, algumas lutas importantes também ocorrem em outros setores da classe trabalhadora. Talvez o exemplo mais importante neste momento seja a luta dos trabalhadores da indústria da borracha. Outros sindicatos importantes do país também estão se vendo forçados a mobilizar as bases, como os metalúrgicos da UOM. As cúpulas sindicais reunidas na CGT tratam de dirimir suas diferenças e não parecem apontar a nenhuma direção clara, entre o apoio público ao plano de ajuste fiscal do novo “superministro” Massa, uma mobilização “contra a inflação”, ou uma oposição ao governo. Poderão os trabalhadores e as trabalhadoras, por si mesmos, apontar a algum outro rumo nesta crise?

Nota

[1] Os planes sociales são, em termos gerais, as diferentes modalidades de assistência social prestadas em forma de renda básica na Argentina. Começaram a ser implementados nos anos 90, mas foi após a crise de 2001 que eles tomaram dimensões significativas. Sua história pode ser conferida neste verbete da Wikipedia.

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