Ill Will entrevista anarquistas no Sri Lanka

 

10 de agosto de 2022

Anônimo

Em 9 de julho, centenas de milhares de birmaneses invadiram e ocuparam vários prédios importantes do governo, forçando o presidente Gotabaya [Rajapaksa] a renunciar e fugir do país. Esse foi o clímax de uma revolta de meses desencadeada pela pior crise econômica que o país viu desde a independência. No centro dos protestos está uma ocupação em expansão no coração de Colombo, a capital do país insular.

Quando a poeira baixou, o então primeiro-ministro Ranil Wickremesinghe, um aliado próximo da família Rajapaksa, foi eleito presidente pelo Parlamento em 20 de julho. Na noite seguinte, o último prédio do governo ocupado foi desocupado por soldados, assim como uma parte do principal acampamento dos protestos. Nas semanas seguintes, uma onda de repressão foi desencadeada, com numerosos ativistas sendo presos ou se escondendo. No momento em que publicamos isto, a polícia ameaça despejar a ocupação.

Após o ataque de 22 de julho, Ill Will realizou duas entrevistas com anarquistas no Sri Lanka acerca de suas opiniões sobre o levante: seus limites, seus horizontes e como pode se dar a próxima fase. A primeira entrevista foi realizada por correspondência com um anarquista e jornalista que vive em Kandy, a segunda maior cidade do Sri Lanka. A segunda foi feita num café dos subúrbios de Colombo com J. e Z., dois anarquistas envolvidos numa tenda de distribuição de ajuda mútua na ocupação e que estiveram na linha de frente dos protestos desde o início.

 

Kandy

Ill Will: Você pode compartilhar a sua opinião sobre a situação atual?

Mesmo após a renúncia de Gota [diminutivo de Gotabaya], o Sri Lanka continua preso ao mesmo grupo de políticos. O novo presidente, Ranil Wickremesinghe, manobrou para chegar ao poder por trás desse golpe público e reinstalou o mesmo gabinete. Milhões de birmaneses estão desapontados com essa reviravolta após meses de protestos. Alguns até acusam o movimento de protesto de ser uma espécie de quinta-coluna para Wickremesinghe e os seus apoiadores ocidentais. Enquanto isso, Wickremesinghe está exercendo todo o poder do Estado ao declarar um estado de emergência que dá aos militares e policiais poderes para reprimir os dissidentes. Os manifestantes dizem que vão continuar a lutar, mas ninguém sabe ao certo como, dado o talento extraordinário de Wickremesinghe como político astuto e sua reputação feroz por ter neutralizado brutalmente militantes de esquerda e ativistas durante a insurreição do Janatha Vimukthi Peramuna [1] (JVP) no final dos anos 1980 [2].

Você pode falar um pouco sobre si mesmo e sua história?

Antes do Occupy Colombo, eu participava da cena ambientalista local. Muitas pessoas dos grupos ambientalistas eram ativistas sociais. Muitas vezes tínhamos conversas sobre política radical e de extrema-esquerda. Então, antes dos protestos Gota Go Home [Gota vá para casa], tínhamos afinidade com pessoas com ideias semelhantes, mas não tínhamos um “grupo” em si.

Como você foi exposto pela primeira vez à política anarquista?

Em 2016 entrei para o mercado de trabalho e rapidamente fiquei descontente com o meu trabalho. Isso me empurrou para grupos de esquerda no Facebook. Comecei a ler literatura comunista e durante esse tempo toda a onda populista de direita, com Trump, Bolsonaro, Duterte e Le Penn, se desenvolveu. À medida que me aprofundava na política de esquerda, comecei a ler Kropotkin e as obras de outros escritores anarquistas. Eu também descobri sites como Crimethinc e Adbusters, que me deram uma visão sobre a esquerda libertária. Quanto mais eu pesquisava a rica história do anarquismo, como a Guerra Civil Espanhola e o movimento do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) no Sul do México, mais eu estava convencido de que outro mundo era possível.

Existe uma tradição ou cena anarquista no Sri Lanka? Existem outros grupos com os quais você está em contato?

Não há movimento anarquista no Sri Lanka, mas há uma longa história da esquerda no país. Houve duas insurreições de inspiração maoista lançadas pela JVP no início dos anos 1970 e no final dos anos 1980. A maioria dos partidos políticos no Sri Lanka são progressistas e de esquerda apenas no nome, e foram formados como uma reação contra o imperialismo ocidental e o passado colonial do país. No entanto, assim como os regimes socialistas na América do Sul, estes chamados governos e partidos progressistas sempre foram reacionários e estatistas até o caroço e não se preocupam de verdade com a classe trabalhadora.

Mas há tendências anarquistas na sociedade do Sri Lanka. Essas tendências surgiram abertamente como resultado da crise financeira deste ano e do movimento de protesto. Mas nenhuma facção, partido ou grupo se inscreve abertamente no anarquismo ou mantém visões anarquistas no Sri Lanka. Não estamos em contato com grupos anarquistas no estrangeiro porque não estamos devidamente organizados e só seguimos ativistas individuais nas redes sociais.

Como foi o seu envolvimento nos protestos e na ocupação?

Participei de pequenas manifestações de rua às vésperas da insurreição em Mirihana, mas não estava pessoalmente lá no momento em que começou [3]. Ajudei os ativistas e os manifestantes quando a ocupação Gota Go Gama [Gama vá para casa] foi formada. As primeiras semanas foram fenomenais – foi provavelmente a primeira vez que os birmaneses testemunharam um protesto de ocupação em massa. Havia tendas de suprimentos que distribuíam comida gratuita para os manifestantes, ocupantes e visitantes; era um bom exemplo de ajuda mútua e solidariedade. Os protestos geralmente eram pacíficos, com apenas alguns confrontos com a tropa de choque da polícia.

A maioria dos birmaneses não sabe que a polícia e os soldados estão lá para proteger o Estado. Como resultado, muitos estavam confraternizando abertamente com a polícia e pensaram que os policiais estavam “apenas fazendo o seu trabalho”. Os sentimentos antipolícia começaram a crescer quando a crise financeira realmente começou a pegar. Em seguida, a mão pesada do Estado apareceu com força total.

Com exceção da extrema-esquerda, os birmaneses geralmente simpatizam com a polícia e as forças de segurança. De forma perturbadora, muitos, na maioria cingalesa, veem os militares como seus “salvadores” por esmagarem o separatismo tâmil durante a guerra civil. Mas, quando os cassetetes começaram a descer em suas cabeças em 22 de julho, eles ficaram perplexos. Alguns gritaram: “Vocês deveriam nos proteger!” Ignoravam o fato que a polícia e os militares são instrumentos do Estado.

Que debates e divergências de perspectiva surgiram no movimento, ou dentro do seu próprio grupo?

Nós tivemos debates sobre tática e política. Tentei educar alguns dos ocupantes nas ideias anarquistas, mas isso não deu nenhum resultado. Os poucos que afirmavam ser anarquistas não se preocuparam em ser informados ou não tinham uma inclinação para serem organizados. Os manifestantes pensavam mais ou menos que o seu movimento popular tinha poder de barganha depois de deporem Gota. Eles presumiram que as tropas e a polícia se retirariam e os deixariam ocupar os prédios do Estado e ditar mudanças. Mas chegar até aqui é um milagre. Vejo como um primeiro passo para vencer muitas batalhas.

A política de esquerda, como eu disse, foi tornada impopular aqui por partidos e grupos pseudo-esquerdistas, como a JVP. A maioria dos jovens vê a ideologia socialista com desprezo. Para eles, o socialismo é para professores universitários enfadonhos, estudantes universitários irritantes e políticos mentirosos que choramingam de cima de palanques por causa do “imperialismo ocidental”. Para os jovens, a República Democrática Socialista do Sri Lanka é um fracasso em comparação com as nações capitalistas mais prósperas. Os Tigres Asiáticos, como Hong Kong e Singapura, são vistos como o que o Sri Lanka poderia ter sido se tivesse adotado plenamente as políticas de livre mercado. Mas os birmaneses tendem a ignorar o fato de Hong Kong e Singapura serem Estados policiais brutais, incompatíveis com ilhéus descontraídos e tranquilos como eles. Os birmaneses não conhecem a esquerda libertária. Eles não ouviram falar de lugares como Rojava, o Estado Livre Ucraniano de 1918, a Catalunha na década de 1930 ou a atual Chiapas.

Quais foram alguns dos grandes pontos de inflexão do movimento?

Os maiores pontos de inflexão no movimento foram os dias 9 de maio e 9 de julho. No dia 9 de maio, o ex-primeiro-ministro Mahinda Rajapaksa mandou seus bandidos para desmantelar os locais de protesto em frente de Temple Trees e Galle Face [4]. Assim que esses capangas começaram a atacar o Gota Go Gama, pessoas de escritórios e bairros próximos e até trabalhadores portuários vieram em socorro dos ocupantes [5]. O que se seguiu foi uma noite de retribuição, quando muitas mansões e propriedades de políticos do governo foram incendiadas. Os apoiantes de Rajapaksa foram espancados e jogados no Lago da Beira, em Colombo. O dia 9 de julho foi apelidado de “Ultimato” [Endgame], por causa do filme da Marvel, e com razão. Milhares convergiram para o Palácio Presidencial e para o Secretariado Presidencial e o resto é história.

O que você vê como oportunidades perdidas durante a luta? Quais foram alguns dos limites ou obstáculos que a luta não conseguiu superar?

Os anarquistas, ou aqueles com ideias anarquistas, não se organizaram bem para participar coletivamente dos protestos e apoiar a luta contra o Estado, ou para educar as pessoas que chegavam à ocupação. Os liberais e outras tendências políticas no movimento de protesto só queriam reformar o Estado, expulsando o grupo atual e escrevendo uma nova Constituição. Nós, anarquistas, entendemos que, se tudo o que conseguirmos forem acordos de curto prazo com os capitalistas que realmente controlam o Estado, os problemas do Sri Lanka apenas continuarão. Vimos o quanto essas corporações estão devastando o meio ambiente para dar lugar a plantações, fábricas e resorts. Entendemos que qualquer compromisso com a burguesia terminará em fracasso. A linguagem é uma das principais barreiras à difusão da nossa mensagem. Precisamos de encontrar tradutores dedicados que possam colocar literatura anarquista nos meios de comunicação cingaleses e tâmeis. Os anarquistas no Sri Lanka, sendo um grupo pequeno, e vendo a relutância das pessoas em relação ao anarquismo, geralmente postergam a confecção de quaisquer zines em cingalês ou tâmil.

Formas de anarquismo verde, anarco-primitivismo e guerrilla gardening têm atraído os birmaneses, dada a nossa cultura pastoril e ao ambiente verde na ilha. Muitos do nosso povo anseiam pelos tempos simplistas em que a vida estava em equilíbrio com a natureza.

Oficialmente, o movimento de protesto adere ao princípio da não-violência. Mas, ironicamente, os seus momentos mais importantes, 9 de maio e 9 de julho, foram definidos pela violência e pela ação direta. As “tropas da linha de frente” mais importantes nestes protestos são a Federação Interuniversitária de Estudantes (IUSF), coloquialmente chamada Anthare. A Anthare emprega um estilo muito agressivo de protesto e muitas vezes lidera o ataque contra a tropa de choque. A Anthare é formada pelos resquícios dos movimentos estudantis de extrema-esquerda da JVP e são acusados pelos liberais de tenderem para uma postura destrutiva. Os liberais, no entanto, marcham atrás da Anthare até que todo o gás lacrimogêneo desapareça e a luta mais dura acabe, e depois levam todo o crédito.

Como você espera que seja a próxima fase da luta?

Dada a reputação de Ranil Wickremsinghe como um repressor brutal e político astuto, o movimento enfrentará muitos desafios que não enfrentou nos meses anteriores. As forças reacionárias e fascistas estão se reagrupando neste momento e vão lançar contra-ataques para se vingar da humilhação que sofreram no dia 9 de maio. Ouvimos dizer que o aparato estatal está identificando os principais líderes dos protestos na esperança de intimidar ou subornar. Sabemos também que os agentes políticos e as fábricas governamentais estão trabalhando duro para desviar e desacreditar a dissidência pública.

O que significaria vencer?

A vitória final seria que o povo do Sri Lanka se levantasse como um só, derrubasse os seus senhores e se apoderasse dos meios de produção. A ilha seria organizada em torno de coletivos de trabalhadores e agricultores totalmente autônomos, livres para tomar suas próprias decisões e construir uma terra verdadeiramente libertária. O Sri Lanka existiu de forma autossuficiente durante séculos. Se o país estiver livre da tirania do Estado e do capital, seria praticamente uma utopia onde as pessoas vivem para si mesmas e não para a baboseira de um Estado-nação.

Quais são as lições do Sri Lanka para as lutas em outros lugares?

O Sri Lanka ensina que os protestos espontâneos podem enfraquecer a vontade de um regime tirânico. Também ensina a importância da solidariedade porque uniu muitas correntes políticas e ideologias em torno de um propósito, como a Guerra Civil Espanhola.

O que as pessoas fora do Sri Lanka podem fazer para apoiá-los?

Precisamos que mais anarquistas do exterior nos visitem e nos ensinem sobre organização. Aprender com os livros é bom, mas estamos severamente limitados quando se trata de experiência. Gostaríamos muito de aprender com levantes indígenas como o de Chiapas, no México; e com anarquistas na Grécia, sobre como eles se organizaram durante a crise financeira lá.

Também temos grande falta de recursos políticos, como o acesso à literatura política. Estamos procurando uma boa impressora para podermos fazer zines, cartazes e adesivos para espalhar informações. Pessoalmente, penso que o primeiro passo para nos organizarmos aqui seria construirmos um pequeno centro de comunicação social com uma impressora e computadores para podermos interagir com anarquistas no estrangeiro e imprimir material. Aí, uma vez que os nossos grupos sejam suficientemente grandes, podemos avançar para ações diretas. Antes de julho, alguns de nós tinham planos de fazer grandes pinturas nos prédios, mas é especialmente desafiador devido ao atual estado de emergência. Mesmo pequenos delitos podem ser punidos desproporcionalmente, com ativistas tendo de enfrentar longas batalhas judiciais e longas penas de prisão. As viagens e a mobilidade são enormes problemas que enfrentamos neste momento devido à escassez de combustível no Sri Lanka. Alguns de nós estão usando bicicletas para se locomoverem, mas mesmo o preço das bicicletas subiu devido à enorme procura.

O que planeja fazer agora?

Nos organizarmos em grupos de afinidade para planejar os nossos próximos passos e decidir o que é necessário fazer agora.

(26 de julho de 2022)

 

Colombo [6]

Em primeiro lugar, você pode compartilhar a sua opinião sobre a situação atual?

Honestamente, todos nós estamos experimentando algum nível de medo por causa da repressão conduzida pelo Estado e da recente caça às bruxas. Mas também estamos frustrados e irritados pelo fato de, após quase quatro meses de protestos, não termos chegado nem perto de alcançar o que nos propusemos a fazer. Ainda há uma grande parte da população que sente que ganhamos simplesmente porque mandamos Gotabaya e os Rajapaksas para casa. Em primeiro lugar, aquela foi uma vitória simbólica. E em segundo lugar, eles não foram realmente mandados para casa; enquanto Ranil Wickremesinghe permanecer no poder, eles estão apenas nos bastidores, esperando o momento certo para voltar. Então, estamos numa espécie de fase de esperar para ver.

Parece um jogo premeditado que eles estão jogando com os Rajapaksas e Ranil no poder agora. Há tantas coisas que poderiam ser feitas neste momento para resolver a crise em que este país se encontra. No entanto, o foco deles tem sido principalmente reprimir as manifestações e ir atrás dos manifestantes.

Ranil, que é um dos políticos mais fracassados da história do Sri Lanka, esteve envolvido em inúmeras fraudes e alegações de fraudes, além de estar ligado aos campos de tortura dos anos 1980. Ele nem sequer foi eleito para o Parlamento no seu próprio distrito eleitoral. Ninguém queria que Ranil chegasse ao poder. As pessoas sabiam que ele estava lá apenas para proteger os Rajapaksas. As cartas acabaram de ser embaralhadas.

Você pode falar um pouco sobre como tem sido a repressão?

As pessoas estão sendo presas pelo seu envolvimento na Aragalaya [palavra que significa “luta” e tem sido usada para definir os protestos de 2022]. Foi declarado um estado de emergência, que está sendo usado como pretexto para prender quem quer que seja a qualquer momento. Eles não precisam nem de um mandado de busca para te levar. Vimos aquele cara, o Danish Ali, sendo arrastado para fora de um avião. Eles vão atrás de qualquer um que tenha se destacado, qualquer um que apareça nos vídeos que viralizaram. Até mesmo o cara que contou e entregou o dinheiro que foi encontrado no Palácio Presidencial foi preso, junto com seus quatro amigos. Estão indo atrás de pessoas que roubaram o ferro de passar do presidente ou a bandeira dele. Coisas assim, entende? É bem estúpido.

Começou assim. Mas agora eles têm uma equipe trabalhando para rever todas as imagens de todos os protestos e identificar os rostos das pessoas que apareceram em vários protestos, qualquer pessoa que esteja mais ativamente envolvida. Querem apenas nos arrastar para o sistema judicial, mesmo que não sejamos necessariamente presos. Eles só querem fazer da nossa vida um inferno. Na verdade, não há espaço suficiente nas prisões e há pessoas demais envolvidas neste movimento para poderem prender todo mundo. É mais para fazer com que todos tenham medo, para que deem um passo para trás e o movimento se dissipe lentamente.

Como tem sido o envolvimento de vocês?

Nós estivemos envolvidos na organização de alguns protestos. Houve os “protestos de bolso” para elevar o moral. As pessoas sentiam que a Aragalaya estava muito limitada aos locais da ocupação, que se tornaram muito politizados de várias maneiras. Por isso, fizemos uma pressão para que as pessoas começassem a protestar de novo nos seus bairros e em entroncamentos. Fizemos uma série de protestos chamados “Sextas-feiras de Liberdade” [FreedomFridays]. Vários grupos foram formados nos bairros, separados da Aragalaya.

O nosso grupo organizou um protesto na porta do Ministério da Eletricidade e do Alto Comissariado Indiano contra as relações corruptas entre Gotabaya e o primeiro-ministro indiano [Narendra] Modi. Porque parecia que eles estavam explorando a crise para assumir e monopolizar os projetos de energia no Sri Lanka. Sem o nosso grupo, isso não teria acontecido. Podemos ser processados pela Índia. De acordo com a Anistia [Internacional], eles têm um arquivo sobre todas as pessoas que estavam na porta do Alto Comissariado Indiano naquele dia. Mas foi um protesto específico muito importante que teve de acontecer.

Como foi tocar uma tenda de distribuição de alimentos?

Meu Deus, super agitado. No início, eles tentaram fazer uma escala para os voluntários. Mas simplesmente não deu certo. Então as pessoas apenas vinham sempre que podiam. Havia muitos egos conflitantes, muitas picuinhas e brigas. Porque as pessoas estavam sem dormir. As pessoas passavam a noite acordadas há muito tempo. As pessoas estavam frustradas.

Foi uma loucura. Havia filas, filas e filas de pessoas querendo comer. Não estávamos alimentando apenas as pessoas no protesto. Havia outras pessoas das aldeias e dos limites da cidade de Colombo que simplesmente vinham porque havia comida de graça. Com a crise alimentar, Galle Face tornou-se um lugar para conseguir comida de graça. A principal prioridade da tenda de distribuição em que estávamos envolvidos era sustentar as pessoas que estavam ocupando o espaço. Sempre havia coisas reservadas para as pessoas que estavam participando da ocupação. Todo o resto era distribuído para as pessoas que passavam em Galle Face.

Nesse momento, estava fervendo. Havia filas de pessoas do lado de fora da tenda. Nós distribuíamos pacotes de arroz, pães, bebidas e pacotes de biscoitos. Havia também produtos de limpeza, roupas, capas de chuva, tudo o que você puder pensar. Álcool em gel, medicamentos, tudo. E era frenético. As pessoas se aglomeravam em volta da tenda. Tínhamos de ter pessoas na frente e atrás da tenda para manter as pessoas nas filas, para evitar que as pessoas roubassem, para impedi-las de furar a fila. Havia também a batalha constante contra o clima, o telhado voando, manter toda a comida seca e retirar a comida a tempo para que não estragasse. Os voluntários caíam constantemente entre os pallets no chão, quase quebrando os tornozelos. Foi uma loucura. No seu auge, Galle Face estava explodindo de gente, as tendas de distribuição de alimentos estavam completamente lotadas. Tínhamos de continuar expandindo e a reorganizando tudo.

Havia tanta coisa acontecendo lá. A ocupação ficava agitada e depois calma, agitada e calma. O cinema passava filmes. Havia shows. A biblioteca tinha um fluxo constante de pessoas. Havia uma universidade, uma universidade popular, com aulas todos os dias. Diria que tudo atingiu seu auge entre abril e maio. Então tivemos de reconstruir após o ataque do dia 9 de maio. Também foi como um espaço em constante mudança e evolução. Estávamos lá todos os dias e havia muito o que fazer… Tudo isso enquanto respirávamos gás lacrimogêneo.

Quais foram os grandes pontos de inflexão do movimento?

O primeiro protesto em massa em toda a ilha foi planejado para o dia 3 de abril. O governo acionou a repressão com um toque de recolher em toda a ilha. Derrubaram as redes telefônicas e bloquearam o acesso às redes sociais. Isso galvanizou as pessoas: até os que estavam em cima do muro no dia 2 de abril e não tinham certeza se iriam para a rua apareceram no dia 3. A repressão desse Estado ao nosso direito de protestar realmente acendeu um fogo. Então, quando esse toque de recolher foi encerrado no dia 4 de abril, foi enorme. Também no dia 3 de abril, quando esse toque de recolher foi imposto, muitas pessoas ainda se aventuravam nas ruas, protestando nos seus territórios, nos seus bairros, nas suas ruas, fora de suas casas. Levando em consideração o nível de medo em que as pessoas viviam no regime de Rajapaksa, minar o poder de Gotabaya quebrando o toque de recolher foi um grande ponto de inflexão. As pessoas estavam começando lentamente a perder o medo e a sentir o seu próprio poder. O sentimento era: “OK, somos parte de algo muito maior”.

Depois disso, foi em 9 de abril, quando o protesto em massa começou em Galle Face, virando mais tarde uma ocupação. As pessoas estavam lá durante uns dois ou três dias para protestar, e algumas não saíram mais. Elas tinham vindo de fora de Colombo, por isso não podiam simplesmente voltar para a sua cidade ou para as suas casas à noite. Então, muitas passaram a noite e começaram a ocupar o espaço. E então a ocupação se converteu numa aldeia. Não ficamos sabendo de nenhum plano para uma ocupação, e ninguém que eu conheço ficou sabendo. Acabou virando uma ocupação espontaneamente. Isso estimulou a formação de ocupações semelhantes em todo o país. Outro grande ponto de inflexão foi em 9 de maio, quando houve um ataque patrocinado pelo Estado contra os manifestantes em Galle Face e outros locais em todo o país. Capangas armados destruíram o acampamento, queimaram coisas e atacaram os manifestantes. Vimos estas forças com os nossos próprios olhos, e a polícia estava apenas deixando tudo isso acontecer. A barricada da polícia deixou eles entrarem. Metade da multidão de Colombo apenas se aproximou e atacou os capangas pró-governo. E muitas pessoas fugiram de volta para as suas aldeias. O exército estava abrigando esses capangas pró-governo quando nosso pessoal começou a atacá-los.

Isso realmente atraiu um apoio maciço do resto do público. As pessoas que ocupavam esses espaços eram vistas como os jovens da nação que lutavam pelos direitos de todos. Toda a manobra realmente saiu pela culatra para eles, e o 9 de maio acabou reforçando o movimento. Nesse dia muita gente ficou com raiva.

Então veio o 9 de julho, quando tivemos o Ratama colombata, o protesto “todo o país para Colombo”. Alguns jornalistas informaram que até dois milhões de pessoas estavam nas ruas naquele dia [7]. Foi um grande ponto de inflexão. A poeira não baixou por alguns dias. Os manifestantes ficaram por lá e continuaram a protestar. Estávamos bem na frente do portão do Palácio Presidencial quando as pessoas começaram a derrubá-lo. Havia tantas pessoas que não podíamos nos mover, por isso, quando fomos atingidos pelo gás lacrimogêneo, não podíamos fugir. Foi realmente agitado. Esse foi o dia em que os três prédios do Estado foram tomados. E então, em 13 de julho, um quarto edifício foi tomado.

Outro ponto de inflexão ocorreu em 22 de julho, quando tropas sob as ordens de Ranil entraram no GGG [Gota Go Gama] e destruíram metade do acampamento e atacaram os manifestantes novamente. Uma coisa que também tem de ser dita é que, mesmo antes de 3 de abril, a partir de fevereiro, houve protestos esporádicos em todo o país, principalmente nas zonas rurais. Protestos de pescadores e de agricultores. Esta é a primeira vez que uma crise dessa magnitude une a todos numa frustração comum, porque de uma forma ou de outra afeta a todos nós. Não era algo isolado que o resto pudesse simplesmente ignorar porque não os afetava. Mas os protestos começaram a acontecer mesmo em fevereiro.

Como foi o momento anterior ao 9 de julho?

Fizemos inúmeras reuniões para elaborar estratégias para angariar apoio público e envolver mais as pessoas, mesmo que não fosse necessariamente para visitarem o local de ocupação.

No período que antecedeu o dia 9 de julho, vimos muitas pessoas compartilhando coisas nas redes sociais. Mas já tínhamos visto isso ao longo desses quatro meses. Foi somente na manhã do dia 9 que realmente percebemos o quão grande seria. Mesmo quando chegamos lá, acho que não imaginávamos o quão grande era ou ia ser.

Todos estavam preocupados de que o apoio popular estivesse diminuindo e que iríamos perder. Eu mantive um diário durante todo o tempo. E quando volto e leio, há algumas páginas onde escrevi: “Tive muita esperança no início deste movimento, mas agora estamos perdendo. Não temos mais apoio. O GGG está vazio. Os protestos estão cada vez menores e mais raros”. E então, no dia 9 de julho, houve um comparecimento enorme.

Foi então uma surpresa agradável para muitos de nós. Mas houve muita celebração desnecessária, na minha opinião. Nessa altura, ainda não tínhamos visto a demissão de Gotabaya ou qualquer uma das mudanças que esperávamos que viessem desse movimento. As pessoas estavam celebrando mais o fato de tantos terem ido às ruas, o que era um motivo para celebrar. Mas ainda não tinha acabado naquele momento.

Por que você acha que muitas pessoas vieram no dia 9?

Houve um entusiasmo muito grande. Houve muita tração nas redes sociais por volta do dia 9. A informação circulou muito dessa forma. E mais, havia muitos grupos envolvidos na divulgação de informações.

Além disso, a situação econômica tinha acabado de piorar ainda mais. As pessoas estavam desesperadas. Para começar, o fato de esse movimento ter florescido foi inteiramente por causa da frustração e do desespero ter chegado a este nível: sentar-se em filas, não poder alimentar seus filhos, não ter acesso a cuidados médicos ou aos medicamentos necessários. De todos os ângulos, as pessoas estavam completamente fartas. Quando o protesto “todo o país para Colombo” começou a se espalhar, as pessoas sentiram que “OK, este será o último empurrão” para realmente tirar esses narcisistas do poder.

Já tínhamos pobreza no Sri Lanka antes dessa crise econômica. Mas só piorou. Falamos de uma perspectiva privilegiada de classe média. Mas a maioria das pessoas que foram para a rua no dia 9 não eram. Éramos uma minoria muito pequena. Foi a frustração que levou as pessoas a usarem sua última gasolina e diesel para irem a Colombo para esse protesto.

Havia um plano para ocupar os prédios ou isso aconteceu espontaneamente?

Acho que foi meio a meio. Há muitos grupos dentro do Galle Face com ideias diferentes sobre qual deve ser o objetivo principal. Mas todo mundo sabia que íamos marchar para aquele prédio, mesmo que ninguém soubesse que tipo de resistência iríamos ver das forças do Estado. Elas nos receberam com gás lacrimogêneo e canhões de água. Houve policiais em trajes civis que atacaram brutalmente os manifestantes com cassetetes enquanto eles pulavam as barreiras. Mas todos esses obstáculos foram tornando-se inúteis porque havia tantas pessoas, então a multidão superou tudo e rompeu todas as barricadas. E depois da última barricada, tudo o que restava era apenas chegar lá, o que as pessoas acabaram conseguindo. O Estado estava disparando com munições de verdade e as pessoas ficaram feridas. Mas, quando a multidão chegou à entrada do prédio, não havia mais nada a fazer a não ser entrar.

Nós nem sequer sabíamos que o Secretariado e o Temple Trees haviam sido tomados até tentarmos atravessar essa multidão e voltar para a estrada principal. Só então nos demos conta de toda a extensão do que tinha acontecido naquele dia. Já que todos os prédios ocupados foram tomados aproximadamente ao mesmo tempo, é tentador dizer que tinha de haver algum nível de organização e comunicação. Mas foi meio a meio.

O que aconteceu entre 9 e 13 de julho?

Nos dias seguintes ao dia 9, a máquina de propaganda do Estado trabalhou arduamente para destacar os saques e danos às propriedades do Estado ocorridos durante esses poucos dias. Algumas pessoas que estiveram ao redor do movimento por algum tempo argumentaram que isso é propriedade pública, que os reparos sairiam do dinheiro dos contribuintes e fizeram tudo ao seu alcance para proteger essas propriedades e evitar saques, roubos e danos. Mas, honestamente, era apenas anarquia. Estava completamente fora de controle e aqueles que tentaram controlar a multidão estavam em menor número.

Sempre que os manifestantes ocupavam prédios do Estado, havia sempre um grupo de pessoas super violentas que tentavam destruir a propriedade do Estado. Além de quebrarem as barricadas, houve incidentes em que algumas pessoas simplesmente invadiram os prédios e colocaram fogo. Isso aconteceu na casa do Ranil no dia 9. Havia o risco de o incêndio se espalhar para as casas ao redor, mas essas mesmas pessoas não deixaram os caminhões de bombeiros entrarem.

Isso nos fez perder muito apoio da população em geral, que disse: “Veja o que esses manifestantes fizeram. Eles foram lá e destruíram esses prédios”. Alguns acham que isso impactou negativamente no apoio ao movimento aos olhos do público. Durante semanas, tudo o que falaram no Parlamento era o fato de as casas desses ministros terem sido incendiadas.

O que você vê como oportunidades perdidas pelo movimento até agora?

Naquele momento, me pareceu um erro ter desistido dos prédios que tinham sido ocupados no dia 9. Parecia ser a nossa única alavanca para alcançar qualquer uma das mudanças que queríamos, especialmente porque Gotabata não tinha renunciado ainda. Talvez os prédios pudessem ter sido usados como um trunfo para se livrar de Ranil?

No entanto, com a visão retrospectiva de algumas semanas, provavelmente isso está equivocado. Não havia outra opção. Com a pressão da Ordem dos Advogados na época, e o fato de, entre os dias 9 e 13, termos perdido muito apoio popular, não houve escolha. Especialmente porque era quase impossível controlar as multidões dentro dos prédios ocupados. O público desenvolvia uma visão cada vez mais negativa da Aragalay todos os dias, vendo os protestos como a destruição da lei e da ordem. Além disso, se as forças do Estado tivessem decidido entrar e usado a força contra as pessoas que ocupavam os prédios, poderíamos ter visto derramamento de sangue. Então, será que foi uma jogada inteligente, pensando na vida das pessoas envolvidas no movimento? Mas, naquele momento, me pareceu um erro.

Quais são os principais debates que ocorreram no interior do movimento?

Desde o início, havia divisões abertas entre apartidários e esquerdistas, e entre uma ideologia mais anarquista e tipos mais constitucionais que queriam ver as coisas sendo feitas de acordo com o Estado de Direito e tal mesmo que nossa Constituição seja uma merda arcaica. Há um grande debate sobre se o movimento foi tomado ou sequestrado pela esquerda. Ao longo dos períodos de insurgência na nossa história, muitas pessoas perderam a vida. A geração mais velha que viveu esses períodos ainda tem memórias de sangue nos rios e corpos em todos os lugares. Esse medo da esquerda foi capitalizado por grupos que queriam que perdêssemos o apoio popular. Houve uma forte presença de esquerda em toda a Aragalaya desde o início. E ainda há.

Sem grupos como a Federação Interuniversitária de Estudantes (IUSF, também conhecida como Anthare) e as federações de professores, sem os sindicatos que organizaram um hartel (uma greve em toda a ilha), nada disso teria sido possível. Tudo isto contribuiu para pressionar o governo. As pessoas ficavam felizes em usar tais grupos quando parecia útil, e depois se viravam no dia seguinte e diziam: “Oh, a esquerda está sequestrando esse movimento”. É como aquela coisa do Scooby-Doo, onde eles tiram a máscara e revelam que “na verdade, foi a JVP o tempo todo”. De fato, eles estiveram presentes, mas o movimento não foi todo dirigido pela JVP, nem foi tomado pela JVP ou pela esquerda.

Existe ainda, de certa forma, uma ocupação militar do Norte e do Leste [do país]. Essa é uma das questões mais importantes do orçamento do governo, já que desde o fim da guerra civil, que foi apenas em 2009, não houve diminuição do orçamento militar. Os tâmeis do Norte e do Leste são oprimidos há gerações. Eles lidam com este tipo de questões há gerações. Os cortes de energia, a falta de combustível, a falta de acesso a remédios, a opressão do Estado, a brutalidade policial. Eles lidavam com tudo isto antes da guerra, e ainda estão lidando agora que a guerra terminou. Essas são coisas contra as quais eles vêm protestando há gerações também. Mas quase não houve nenhuma cobertura disso nos meios de comunicação que atingem o resto do país.

Quando esse movimento começou, muitos desses grupos do Norte e do Leste, a minoria tâmeis, olharam para ele e acharam engraçado. São coisas com as quais eles lidam desde a infância. Agora que afetou a maioria cingalesa, as pessoas do sul, de repente tornou-se este movimento em toda a ilha e que foi colocado em um pedestal. “Uau, veja o que estas pessoas conseguiram protestando. Que coragem elas tiveram para protestar”. Mas, na verdade, éramos pessoas privilegiadas que sabiam que haveria segurança de certa forma.

Havia um memorial no GGG para o massacre de Mullaitivu, que aconteceu no final da guerra civil. Houve muita resistência em torno disso. Alguns pensaram que iria desacreditar a Aragalay associando-o aos LTTE [8]. Afinal, tudo o que pode é tirado do contexto e usado contra nós. Outras pessoas argumentaram que, se não podemos ter um memorial desse tipo, como podemos dizer que o GGG e este movimento trouxeram a unidade que todos estão celebrando?

Houve muitas discussões menores que surgiram ao longo de todo o movimento. Mesmo sobre a ocupação dos prédios nas últimas fases. Algumas pessoas estavam em conflito sobre como as coisas eram tratadas e como as multidões eram controladas.

Algumas pessoas discordaram da forma como a comida gratuita era distribuída. “OK, agora isso está se tornando quase um sopão para pessoas que nem necessariamente são manifestantes. Elas só vão lá para comer”. Mas como não dar comida a pessoas famintas que estão famintas por causa da crise econômica contra a qual estamos lutando, só porque não são manifestantes como nós? E de qualquer forma, mais pessoas foram trazidas para Galle Face.

Qual o papel que a esquerda e os vários partidos políticos desempenharam nos acampamentos e no movimento em geral?

Quantidade. Eles agregaram pessoas, com certeza. Mas também, devido à natureza da IUSF e de facções semelhantes, tendo estado envolvidos neste tipo de protestos durante anos, enfrentar o gás lacrimogêneo, as barricadas e os canhões não era realmente novidade para eles. Até certo ponto, eles assumiram um papel de liderança no início, estando na linha de frente, porque isso não era nada novo para eles. Eles fazem isso há anos. Para muitos de nós que aderiram a este movimento, foi a primeira vez que experimentamos a sensação de gás lacrimogêneo, ou de batalhar cara a cara com um oficial de polícia. Eles nos mostraram que não há nada a temer, que podemos fazer isso. Sempre que estes grupos entravam, vinham com milhares de pessoas. Realmente nos deu a moral e os números de que necessitávamos para conseguir tudo isto. Mas isso de modo algum significa que se tratava de um movimento da JVP. Porque havia tantos outros grupos, facções e indivíduos presentes por toda parte.

Quais são alguns dos debates que ocorreram no interior do seu próprio grupo?

Algumas pessoas recusaram-se firmemente a sentar na mesa com os políticos, e se mantiveram firmes nessa posição. Outros mudaram de ideia e juntaram-se a reuniões com políticos, à excepção do partido Pohottuwa [9]. Ninguém sabia realmente qual era a coisa certa a fazer. Mas surgiu uma barreira entre as pessoas que se encontraram com os políticos e as que não se encontraram.

Quais foram os principais limites que o movimento encontrou?

Essa é a primeira vez no Sri Lanka que grupos de pessoas com diferentes identidades de gênero, classe e contexto socioeconômico se reúnem. Era uma mistura de pessoas diferentes. Naturalmente, pessoas que eram semelhantes se uniram. Mas houve muita contaminação cruzada e composições. Muitas barreiras de gênero, idade e classe também foram quebradas, o que foi uma coisa enorme. Penso que esta foi uma das maiores consequências destes protestos.

Mas dentro do GGG, vimos as mesmas questões da sociedade em geral refletidas lá. Embora houvesse um nível de unidade sem precedentes e a quebra de barreiras de classe, gênero e raça, o movimento ainda era dominado por homens falantes de cingalês. Ainda havia uma minoria de mulheres nos megafones. E as minorias ainda eram minorias, mesmo dentro do movimento. Mesmo que houvesse definitivamente mais aceitação e mais inclusão, há um longo caminho a percorrer antes de enxergamos o tipo de país que queremos ver.

Essas divisões tornaram-se mais intensas ou mesmo rachas em algum momento?

Acho que foi um pouco sutil. Estávamos num protesto em Fort e tínhamos muitos amigos da comunidade LGBT conosco. Eles estavam sendo discriminados por outros manifestantes por carregarem a bandeira do orgulho LGBT [bandeira arco-íris]. Então, havia pequenos problemas como esse. Eu não diria que são mesmo grandes desentendimentos, mas meio que desentendimentos menores e mais sutis, onde ainda não há unidade possível.

Sempre era uma minoria que ficava irritada, e eles nunca causaram um escândalo grande o suficiente sobre isso, porque queriam priorizar os principais objetivos do movimento. Faço parte do círculo de mulheres do GGG. Têm havido queixas constantes feitas por mulheres de que poucas mulheres falam em conferências de imprensa, poucas mulheres falam no megafone, poucas mulheres estão envolvidas na organização e na elaboração de estratégias. Então essas queixas existiram. A tenda comunitária LGBTQIA+ só foi montada recentemente. Havia amigos trans que eram discriminados e enfrentavam muitas dificuldades e assédio apenas por estarem lá. Havia coisas assim por toda a parte. Todo mundo meio que trabalhou nisso com o melhor de suas capacidades. Mas não foi como se todas essas questões desaparecessem por completo. Era como se a sociedade em geral estivesse exatamente refletida lá.

Algumas das pessoas no GGG que estavam armando tendas e a ficando por lá não eram receptivas às ideias de pessoas como nós. Porque nunca ficávamos lá fisicamente nas tendas. Já que estávamos lá desde o início, ganhamos o respeito e viramos camaradas das pessoas da biblioteca e pessoas da cozinha e outros grupos. Nos ajudamos mutuamente. Mas certas tendas sempre nos olhavam como forasteiros.

Houve uma certa desconexão na comunicação entre os manifestantes que ocupavam e os que não ocupavam. Para alguns de nós que não estavam lá ocupando, parecia que estávamos sendo excluídos de certos processos de tomada de decisão e reuniões.

Você sentiu que as pessoas se radicalizaram ao longo do movimento?

Definitivamente. Muitas dessas pessoas nunca teriam pensado que iriam quebrar barricadas e enfrentar gás lacrimogêneo e sofrimento. Depois de anos de opressão e apenas ter medo do Estado, ver jovens em pé nas barricadas gritando Api baya nah! o que significa não temos medo foi uma coisa enorme.

Uma coisa que eu testemunhei pessoalmente: havia uma garota que era uma atriz de teatro que estava envolvida nesses protestos. Ela era muito pequena e um dia eu a vi ser atingida por um canhão de água. Ela caiu no chão, seus óculos voaram e ela ficou gravemente ferida. Mas naquela tarde no acampamento, eu a vi sorrindo e falando sobre outras coisas, como se não fosse grande coisa. É uma coisa tão bonita de se ver, porque as pessoas foram tão radicalizadas por este movimento. É como se fosse uma coisa normal para eles.

Como pensa que será a próxima fase da luta agora que Ranil está no poder?

Penso que é definitivamente uma mudança de capítulo. Não creio que as estratégias que usamos para nos livrar dos Rajapaksas possam ser aplicadas a Ranil, porque ele tem a fama de ser um político sagaz na forma como faz as coisas. Então, atualmente, é com a guerra de propaganda que estamos tendo de lidar.

Quais são as lições do Sri Lanka que podem ser úteis em outros lugares?

Se as pessoas se encontram em situações econômicas e políticas semelhantes, não esperem. Comecem a se organizar e planejar estratégias agora.

O que planeja fazer agora?

Estamos analisando outros modos, não de dissidência, mas de revolucionar a vida por fora do sistema; para criar essas comunidades off-grid autossustentadas, onde podemos cultivar nossa própria comida e nos autogovernar. Fomos arrastados e inspirados pela ideia do nosso camarada de criar uma comunidade off-grid, com permacultura baseada em plantas, para nos libertarmos do sistema e, com a iminente crise alimentar, possamos cultivar os nossos próprios alimentos e viver em harmonia com a natureza, utilizando métodos de construção sustentáveis e ecológicos. Estamos ansiosos por isso. Foda-se a Constituição e as leis. Porque vamos cultivar a nossa própria comida e gerar a nossa própria energia. Não teremos de nos preocupar mais com o dinheiro e as flutuações da moeda.

Esse é o plano por enquanto, então vamos ver como vai ser e se podemos realmente encontrar uma terra onde seja possível começar esse estilo de vida sustentável que estamos procurando, longe do sistema e da opressão. É revolucionário à sua maneira.

Não acreditamos que a Aragalay vai parar. Ela vai evoluir para o que é necessário ser agora sob Ranil. É uma fase de esperar para ver, durante a qual podemos traçar novas estratégias. Mas isso não significa que vamos parar. Vamos continuar a criar [produtos] gráficos e a encontrar formas de divulgar informações e ideias. E nós dois vamos continuar a lutar.

Alguma conclusão?

Foda-se a polícia.

(31 de julho de 2022)

Notas do Ill Will

[1] Frente de Libertação Popular. Um partido marxista-leninista que é agora o terceiro maior partido no Parlamento do Sri Lanka.
[2] Ranil é acusado de supervisionar o centro de detenção de Batalanda, usado para interrogar e matar dissidentes e pessoas de esquerda durante a segunda insurreição da JVP. As muitas torturas em Batalanda incluíam esfolar, espancar, arrancar os olhos, queimar, violar e desmembrar. Especula-se que as histórias horríveis de Batalanda foram propositadamente vazadas para causar medo e desmoralizar a população.
[3] Mirihana é um subúrbio de Colombo, onde a residência pessoal de Gotabaya está localizada. Em 31 de março, milhares protestaram do lado de fora da casa de Gota. Durante os confrontos com a polícia e os soldados, os manifestantes destruíram uma barricada e um ônibus e vários veículos da polícia foram incendiados. Naquela noite, protestos espontâneos se espalharam por toda a cidade.
[4] O ex-primeiro-ministro Mahinda Rajapaksa é irmão mais velho de Gotabaya Rajapaksa e amplamente visto como o patriarca da família. Ele foi forçado a renunciar ao cargo de primeiro-ministro em 9 de maio.
[5] Gota Go Gama [Gama vá para casa], ou GGG, é o nome do principal local de ocupação, localizado em Galle Face Green, em Colombo.
[6] Z. é um designer gráfico. Eles [Z. e J.] costumavam fazer graffiti quando estavam na escola e sempre tiveram intuitivamente uma atitude de foda-se o sistema. Depois de se perderem em um emprego corporativo por uma década, começaram a trabalhar como freelancers, voltaram para Colombo durante a epidemia de Covid, e se viram no meio da Aragalaya. Sem saber da ocupação, Z. passou por Galle Face um dia no início de abril e, por acaso, encontrou um amigo que havia iniciado uma tenda de distribuição de alimentos para os protestos. Desde então, estão fortemente envolvidos. A primeira incursão de J. no ativismo foi quando ela colocou cartazes no aquário de sua escola porque achava que os peixes estavam sendo maltratados. Quando nada foi feito a respeito, ela começou a roubar um peixe por semana. Ela esteve envolvida em movimentos feministas e ambientais, e por isso tinha alguma conexão com outras pessoas na Aragalaya quando tudo começou. Ela vivia no Sul do Sri Lanka na época, mas quando percebeu que isso estava se tornando algo enorme, ela sabia que tinha de estar no centro de tudo e desistiu de sua casa e emprego e voltou para Colombo. Ela foi morar com os pais para garantir que não tivesse outros compromissos e pudesse estar o mais envolvida possível. Ela passava a noite, mas nunca montou uma barraca na ocupação, porque “é engraçado que eu diga isso agora, mas toda vez que eu sentia que ‘OK, vou armar minha barraca e me mudar para cá’, parecia que ‘oh, é tarde demais, vai acabar a qualquer semana’. E então, um mês depois, eu pensava: ‘merda, eu deveria ter acabado de armar a tenda quando pensei sobre isso da última vez’”. Tanto Z. como J. estiveram envolvidos na administração de uma tenda de distribuição de alimentos de ajuda mútua durante a ocupação e estiveram na linha de frente dos protestos. Z. tem feito designs e cartazes anônimos para o movimento, embora muitos dos que foram impressos tenham sido destruídos durante o ataque de 9 de maio. J. tem filmado e transmitido ao vivo a partir da linha de frente, para fornecer uma alternativa ao enquadramento dos meios de comunicação. Esta entrevista foi ligeiramente editada para maior clareza e concisão. As respostas de Z. e J. foram editadas em conjunto.
[7] Para contextualizar, o Sri Lanka tem uma população de 22 milhões.
[8] Os Tigres de Libertação do Tâmil Eelam.
[9] O partido associado aos Rajapaksas.

Traduzido, a partir do original em inglês publicado no site Ill Will (aqui), por Marco Tulio Vieira. As fotografias que ilustram as entrevistas são da autoria de Atul Loke e outros fotógrafos anônimos.

3 COMENTÁRIOS

  1. É interessante observar que, depois de um vasto e radical movimento popular contra as políticas ecológicas que levaram ao colapso da economia do Sri Lanka, os próprios militantes libertários do país tenham como perspectiva a implementação de uma política econômica que converge com aquela que causou o desastre, quando afirmam que pretendem “criar […] comunidades off-grid autossustentadas, onde podemos cultivar nossa própria comida e nos autogovernar […] com permacultura baseada em plantas […] cultivar os nossos próprios alimentos e viver em harmonia com a natureza, utilizando métodos de construção sustentáveis e ecológicos”. Não admira que, como um deles observa, a população em geral seja relutante em relação ao anarquismo.

  2. A METADE DA LARANJA (at least):
    AOB hiperbatou FE ou quando Alma Bela encontrou sua Belalma.

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