Por Jan Cenek
Um homem, afinal de contas, não devia conhecer tudo, sobressair-se em múltiplas atividades, iniciar a mulher nas energias da paixão, nos refinamentos da vida, em todos os mistérios? Mas aquele ali não lhe ensinava nada, não sabia nada, não desejava nada. Achava que era feliz; e ela o detestava por aquela calma tão assentada, por aquele peso sereno, pela própria alegria que ela lhe dava.
(Gustave Flaubert – Madame Bovary)
Estava no túnel de entrada para o segundo tempo da vida. Havia se acostumado com o substantivo masculino senhor. Em algum momento, talvez no terceiro quarto do primeiro tempo da vida passou, precocemente, a ser chamado de senhor. Não se incomodava. Era casado, tinha duas filhas e usava roupas discretas: sapatos e cintos da mesma cor, camisas por dentro da calça, blusas de lã com gola v. Mas, como registrou um escritor um pouco anterior ao nosso tempo: um dia surge o “por quê e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro.”
Era bancário. Fazia pagamentos e transferências. Os valores que movimentava na agência faltavam-lhe no bolso. Geralmente ficava sem dinheiro no meio do mês. Usava o cheque especial com a moderação permitida pela correlação de forças familiares. Na economia doméstica, ele era neoliberal, enquanto a mulher e as filhas eram neodesenvolvimentistas. Ele defendia o corte de gastos e o equilíbrio das contas. Elas exigiam a ampliação dos investimentos e das despesas sociais. Aquele lar era um bom exemplo de que as economias familiares não podem ser comparadas com as economias nacionais.
De manhã cedinho o cão o levava para passear. Às seis em ponto o animal corria e latia no quintal. Davam voltas no quarteirão até o cachorro se aliviar. Recolhia as fezes do animal e as depositava no cesto de lixo, devidamente embrulhadas. Daí seguiam para a padaria. Amarrava o cachorro e comprava pães para o café da manhã. Depois deixava as filhas no colégio e seguia para o banco. Às vezes fazia horas extras. Nesses dias ajudava a preparar o jantar, lavava a louça e dormia. Quando chegava no horário normal, aproveitava para assistir TV com a família. Não gostava de novelas, mas elas o faziam relaxar e esquecer o dia a dia, além de proporcionarem algum contato com a mulher e as filhas, que exigiam silêncio quando ele puxava assunto. Às vezes se repreendia por falar sempre na hora errada. Às vezes se retirava e ia para o quintal brincar com o cachorro, se acalmava e voltava. Era o melhor amigo do cão. Às vezes tentava colocar o animal dentro de casa, mas era repreendido pela esposa. Se pudesse, pelo menos, acompanhar a novela junto com o cão… Às vezes tinha vontade de assistir telejornais e programas esportivos, mas declinava para não contrariar a esposa e as filhas. Nem cogitava a possibilidade de assistir telejornais e programas esportivos no quarto, longe da mulher e das meninas.
Duas vezes por semana buscava as filhas no balé. Não se incomodava com o trânsito parado. Mas, nas apresentações semestrais, no ginásio do clube, esforçava-se para não cochilar, e aplaudia coreografias que não entendia. Pensava ser a desvantagem de ter filhas. Assistir um filho jogando futebol talvez fosse mais interessante – cogitava sem muita convicção. Queria tentar mais uma gravidez, quem sabe viesse um menino, mas a esposa não aceitava.
Aos sábados fazia pequenas manutenções na casa. Sempre sob supervisão crítica da esposa, que reclamava das limitações dele como reparador de interiores e exteriores. Ela dizia que qualquer homem da família dela faria o mesmo trabalho melhor e mais rápido. Ele trocava o telhado, pintava a fachada, limpava a caixa d’água, consertava o portão automático. À noite saía com a família. Deixava a mulher e as filhas escolherem o restaurante, em geral elas escolhiam algum shopping da cidade, para jantar e ir ao cinema. Ele não se incomodava com as filas e a lotação, nem se irritava com a dificuldade para estacionar. Elas desciam e faziam compras enquanto ele esperava aparecer alguma vaga no estacionamento, assim a mulher e as filhas aproveitavam melhor os passeios. Além de fazer compras, elas gostavam de filmes de ação. Ele não tinha preferências. Quando enjoava dos filmes que elas escolhiam, se escondia atrás dos óculos 3D e dormia. As filhas diziam que o pai vivia cansado, que só dormia. Ele concordava e ria: era verdade!
Aos domingos jogava futebol. Mais importante era papear com amigos depois da pelada. Mas tinha pouco tempo. Almoçava na casa da sogra. Era sempre o primeiro a deixar o clube. Saía antes de terminarem as primeiras cervejas. Porque começava a sentir dores nos joelhos e tinha que almoçar na sogra, pensou em largar o futebol. Apesar de não atrasar mais que quinze minutos, quando chegava na casa da sogra era lembrado de que o almoço já estava pronto, sendo interpelado por olhares inquisidores. Elas perguntavam por que ele continuava correndo atrás de bola, se já não tinha mais idade.
Nos almoços dominicais, depois do macarrão vinha um assado, frango ou carne de boi, mais raramente costelinhas de porco; depois do macarrão e do assado vinha a sobremesa, geralmente pudim de leite condensado, porque as meninas gostavam; depois da sobremesa vinha o café; depois do café vinha o dominó, que jogavam até anoitecer, deixava a sogra e as filhas ganharem. Alegrava-se com a alegria delas.
Nos aniversários era sempre ele que puxava a parte do “e pra fulana nada”, ao que as demais respondiam “tudo”, ele perguntava “então como é que é?”, e elas retrucavam com “é pique, é pique, é pique, é pique, é pique.” É graças a homens como ele que, em nenhuma mesa e em nenhum salão, nunca o “parabéns pra você” parou no meio por falta de alguém que emende o “e pra fulano nada?”. Estranho acordo ontológico, mesmo sem nenhum contato prévio e sem nenhum treinamento, sempre haverá alguém para dizer “e pra fulano nada”. O que faz um homem saber que chegou a sua vez de ser protagonista no “parabéns pra você”? Seja como for, o fato é que tais homens são as vigas de sustentação das famílias.
Quando as filhas brigavam porque uma queria ir ao shopping e a outra à pizzaria, ou porque uma não queria que a outra usasse suas roupas, ou porque uma acusava a outra de bagunçar o quarto, ou porque uma dizia que a outra tinha comido todo pudim de leite condensado: ele intervinha. Explicava calmamente que elas eram irmãs e precisavam se entender, que uma tinha razão, mas a outra também, que o papai amava as duas igualmente. Não raro acontecia das irmãs, com apoio da mãe, se juntarem contra ele. As brigas nunca começavam com ele, mas costumavam se virar contra ele: como se o pai fosse culpado pelos desentendimentos e por todos os problemas da família e do mundo. Era como culpar um pernilongo por uma hemorragia. Ele desconhecia a comparação, mas certamente estaria disposto a aceitar que um pernilongo pode causar uma hemorragia, especialmente se fosse para acalmar os ânimos familiares. Ele era um pernilongo que nem picava nem fazia barulho, mas, às vezes, mulher e filhas tinham vontade de esmagá-lo com as mãos.
Vendeu um dos carros para bancar a lipoaspiração e o silicone da esposa. Ficou sem o veículo que usava para se locomover, mas a alegria da mulher compensou com vantagem o esforço para enfrentar o transporte público, mesmo nas épocas de chuva. O que era um sapato molhado durante todo o dia perto da alegria da esposa? O que eram duas horas chacoalhando nos coletivos perto da felicidade dela? Podia ouvir música pelo fone. Usava o tempo disponível para pensar na família e planejar o futuro.
Com a cintura fina, as pernas torneadas, os peitos duros e duas horas diárias de academia, a esposa passou a implicar com a barriga dele. Havia tantos homens que estavam melhor que ele, uns 60 só no clube – pelas contas dela. Um homem que não se cuida não merece uma mulher bem cuidada – dizia a esposa. Ele concordava e prometia se matricular na academia, ou, pelo menos, comprar uma bicicleta ergométrica e um banco de supino. Faltava-lhe tempo e energia. Mas sabia que ela tinha razão. Desconfiava, inclusive, que no clube havia mais de 60 homens que estavam melhor que ele, o número era arbitrário, bondade e complacência da esposa. Sentia ciúmes dos homens que estavam melhor que ele, especialmente aqueles 60 ou mais. Sonhar com o barulho de pernilongo pode significar que há pernilongos no quarto. Mas ele tinha certeza de que a mulher nem reparava nem se interessava por outros homens, se falava deles era para incentivá-lo a se cuidar. Estava realmente barrigudo e fora de forma. Ela tinha razão. Estava corretíssima.
É verdade que reparava em outras mulheres. Nutria algum interesse por dormir com outra mulher. Era o invariável desejo de variar. Inclusive porque a esposa foi a primeira e a única namorada dele. Mas o receio de magoar a mulher e as filhas o continha. O risco não compensava o investimento – pensava aquele trabalhador da área financeira. Sou casado, minha vida é boa, não posso arriscar – dizia para si próprio. Foi legítimo herdeiro da tradição inaugurada por Charles Bovary, apesar de não conhecer literatura nem ter tempo para livros. Enfim. O bovarismo – entendido como alteração do senso de realidade – foi pensado a partir de Emma Bovary, mas é preciso estudar o fenômeno também a partir de Charles Bovary.
Certa vez precisou renovar documentos e certidões. Pediu liberação do trabalho no período da manhã e agendou a visita ao posto de atendimento. Passeou com cão. Comprou os pães. Foi a pé renovar os documentos e as certidões. Era a primeira quebra de rotina em muitos anos. Constatou que as ruas em que crescera estavam lotadas de edifícios e automóveis. No posto de atendimento foi solicitado a confirmar as informações pessoais anotadas pela atendente. Data de nascimento: correto. Pai: correto. Mãe: correto. Estado civil: correto. Cor dos olhos: correto. Cabelos… Grisalhos? Foi quando surgiu-lhe o por quê. Sentiu, espantado, a passagem do tempo, como se tivesse ficado grisalho naquela manhã. Por que o tempo passa tão rápido? Convivia com o substantivo senhor, mas era a primeira vez que se deparava com o adjetivo grisalho. Tinha algumas dezenas de cabelos brancos, era fato, mas nunca havia sido chamado de grisalho.
Confirmou que as informações estavam corretas. Pediram que aguardasse. Ficou pensando nos cabelos brancos. As ruas do bairro haviam mudado, estavam cheias de automóveis e prédios. As filhas tinham crescido, talvez estivessem namorando. Sentiu ciúmes, mas teve vontade de conhecer os futuros genros, pediria para as meninas convidarem os namorados para um almoço. Ele próprio tinha mudado, estava barrigudo e grisalho. Lembrava-se do dia em que esteve no posto de atendimento, vinte anos antes, era um jovem magrelo que precisava trabalhar. Duas décadas depois era um homem feito: com emprego, mulher e filhas. Concluiu que Deus sabe o que faz, que o tempo passa rápido porque a vida é boa e o futuro é sempre melhor que o passado. O filme da vida dele passou na cabeça dele. Viu a casa e o banco, o cão e a sogra, a esposa e as filhas. Como sou feliz – pensou!
Dados de uma relação familiar e profissional abusivas. Isso me deu inspiração para escrever um conto do ponto de vista da mulher, pois o formato imposto à performance feminina é táo ou mais miserável quanto ao do personagem do seu conto. Gostei da escrita, pq me lembrou o jeitão do Kundera de ponderar o personagem, tendo ele como sujeito analisado. Agora, se formos atentar para essa vidinha vazia, oca de prazeres pessoais, isso é algo que tod@s nós, da classe média baixa, temos em comum, mesmo quando acreditamos de verdade que somos plenos e, de fato, nossos subterfúgios são meramente prazeres paliativos para nos distrairmos das pressões cotidianas dessa sociedade que nos suga toda a nossa energia vital.