Por Grevo de Vergere

§ 0 — Olavo de Carvalho foi sem sombra de dúvidas o parteiro da nova direita brasileira, em suas diversas expressões. Influenciou até aqueles que, logo em seguida, romperiam com ele. No Orkut, comunidades oficiais e comunidades o sacaneando coexistiam, movimentando os mesmos participantes de diferentes idades, ideologias, críticos ou apoiadores seus e do Mídia sem Máscara (portal de notícias do qual foi fundador). Algumas dessas comunidades que giravam em torno da figura do Olavo, seja na defesa, seja no “hate”, acabaram se tornando fóruns de discussões sobre diversos autores e temas indicados pelo Olavo em suas aulas. Papos esotéricos e iniciáticos e debates em torno do tradicionalismo, guenonismo, Dugin, etc. começaram a se desenvolver e pode-se dizer que um neotradicionalismo começa a surgir daí, muitos destes temas ligados ao “Olavo dos anos 80”, esotérico, ocultista, tradicionalista, participante da Tariqa de Frithjof Schuon — o que o próprio Olavo chama de seu período de aprendizado, que terminaria com uma ruptura que inauguraria o Olavo tal como conhecemos — católico, conservador e defensor dos valores americanos. Nessas comunidades coexistiam liberais como o Rodrigo Constantino (na época um hater de Olavo que refez as pazes com seu “mestre” há poucos anos atrás e que atualmente se parece cada vez mais com o falecido) e alguns moleques que quase uma década depois participariam da formação do MBL, simpatizantes de Dugin, René Guenon e Julius Evola, olavistas, integralistas, libertarianos, sociais-democratas e até alguns comunistas e anarquistas.

§ 1 — Alguns participantes das comunidades em torno de Olavo, principalmente os que se articulariam em torno da criação de eventos sobre o pensamento de Julius Evola, apelidam esse campo (do qual fazem/fizeram parte) de “Dissidência Tradicionalista” [1], ou apenas Dissidência — chamarei de neotradicionalismo. Grupos como o Frente Sol da Pátria e Nova Resistência são expoentes desse neotradicionalismo e mobilizam ideias e símbolos tanto de direita como de esquerda [2]. Alguns olavistas chegaram a frequentar os “Evolianos” [3], embora o olavismo de fato tenha se desenvolvido longe dali. Com a aproximação dos neotradicionalistas das teorias duginistas, não durou até a comunidade articular um debate entre Olavo e Dugin, que foi posteriormente publicado em livro mas pode ser encontrado em blog na internet. Com o flerte dos neotradicionalistas brasileiros — dentre eles alguns de seus alunos — com o pensamento de Dugin, Olavo só podia os considerar “guenonistas de botequim”. E segue: “se você não é capaz de aguentar a solidão de ver as tradições espirituais serem todas destruídas, tudo sendo destruído por um materialismo grosso, você não é de nada, você é um fracote, você é um bosta. Um homem espiritual de verdade não conta com as forças deste mundo, não precisa ter um movimento eurasiano pelas costas. Conta apenas com Deus e sabe que mesmo que esteja sozinho ele vai vencer a parada” [4]. Ou seja, um guardador das tradições, um homem espiritual não se aventura em política, se mantém como um “centro intelectual”, um ponto de ligação entre o velho e o novo, entre a destruição e a criação, uma testemunha do fim do mundo. Os conselhos de Olavo para seus alunos não podiam ser diferentes: “Se você está assoberbado de problemas, dívidas, doenças, dramas de família, despreze tudo e se concentre ainda mais nos estudos e na oração. Enquanto tudo em volta desaba, você vai ficando dia a dia mais forte. Quem dura mais, vence. É só isso” [5].

§ 2 — Ao contrário dos neotradicionalistas cuja não presença de um “líder” proporcionou um desenvolvimento mais plural, ou dos liberais que a essa altura rearticulavam seus institutos e suas redes, o olavismo responde a uma única figura, o próprio Olavo. Nesse sentido, é de se notar que o olavismo cresceu bastante com a popularização dos vídeos do Olavo no YouTube xingando e apelidando seus desafetos políticos, citando casos insanos do uso de células de fetos abortados como adoçante na produção da Pepsi, denuncias infindáveis ao Foro de São Paulo, ao movimento antitabagista e à implantação do comunismo no Brasil, negações da física newtoniana, etc. Tudo isso regado à metafísica e citação de autores obscuros que só ele leu (se é que realmente leu). É nessa aceleração proporcionada pelos vídeos no YouTube que Olavo alcançaria um outro status, de ícone pop saído do underground pelas mãos de pessoas que não o conheciam profundamente. Os novos olavistas conhecem pouco do pensamento filosófico do Olavo — ao contrário dos neotradicionalistas e dos próprios olavistas “raiz” —, mas se encantaram com sua personalidade politicamente incorreta, que fala coisas das quais eles não compreendem muito bem, misturadas com coisas que eles acham que entendem, temperadas com muito conspiracionismo e histeria e servidas com uma arrogância e desdém para com tudo o que está no mainstream. Olavo se tornou um verdadeiro punk.

§ 3 — Quando os levantes de 2013 começaram, ainda em Junho, Olavo não teve tantas esperanças, considerando que a direita brasileira havia sido “a primeira vítima” [6] e que as manifestações haviam transmutado a “insatisfação conservadora” em baderna revolucionária. Em sua visão, as manifestações serviriam como um “upgrade” do domínio socialista, o encerramento da “fase de transição” e um salto à ruptura decisiva, arquitetada a mais de um ano pelo Foro de São Paulo e contando “com os recursos do próprio governo, somados aos da elite globalista fomentadora de ‘primaveras’”. Mas seus antigos e novos seguidores estavam empenhados em disputar as coisas. Como não poderia deixar de ser, o abalo às instituições em 2013 trouxe consigo uma tomada de consciência sobre a capacidade de atuar em direção a um projeto de futuro. Depois das jornadas de junho, todo mundo sentiu que podia, e devia, militar. Entre o fim de 2013 e começo de 2014, ano eleitoral, novos e velhos atores políticos/culturais entram em campo e começam a se aproximar de Olavo, seja por interesse intelectual real, seja de forma oportunista para conquistar seu espaço em um ambiente político-institucional que começava a se recompor. Hangouts com Olavo começam a acontecer com diversos nomes como Kim (que viria a ser um dos fundadores do MBL no final de 2014), Rodrigo Constantino (seu antigo desafeto), Lobão (o roqueiro ex-esquerdista que agora flertava com posições liberais e conservadoras), Danilo Gentili (ex-repórter do CQC que estava em destaque por suas piadas politicamente incorretas), etc. Em entrevista a Kim Kataguiri em um desses Hangouts, realizado antes das eleições de 2014, quando perguntado o que Olavo acharia de uma possível candidatura de Jair Bolsonaro, responde dizendo que Bolsonaro “é uma excelente pessoa, mas eu não acredito que a candidatura dele será aceita pelo partido dele”. No final daquele 2014, com a vitória de Dilma, seguida de uma contestação do resultado das urnas e pedido de auditoria nas urnas eletrônicas para averiguação de fraudes, uma direita em movimento que se unificou em defesa da campanha de Aécio começava a se articular para tomar as ruas, seguindo os ensinamentos que tiveram em 2013. Os movimentos Movimento Brasil Livre e Vem Pra Rua são formados nesse processo, da derrota eleitoral, e tentam reavivar símbolos de 2013 para recolocar em marcha a revolta popular. Não é por acaso que MBL lembra tanto a sigla do Movimento Passe Livre (MPL) — responsável pelas primeiras manifestações das jornadas de junho. “Vem pra rua” era uma frase bastante gritada e cantada pelos manifestantes em 2013 para chamar as pessoas que estavam em suas casas, seus locais de trabalho, de estudo, nos pontos do ônibus, etc. para se juntarem à multidão. No auge do movimento pró-impeachment, o livro O mínimo que você precisa saber pra não ser um idiota — escrito por Olavo de Carvalho e organizado pelo jornalista Felipe Moura — se tornou um best-seller com mais de 120 mil cópias vendidas, se tornando um marco no que Camila Rocha, autora de Menos Marx, Mais Mises: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018), chama da “penetração dos contra-públicos digitais em públicos dominantes”. Se é verdade que as organizações que encabeçaram as lutas pelo impeachment não podem ser definidas enquanto “olavistas”, em sentido direito, também é verdade, por outro lado, que a base que massificava as manifestações podem ser enquadradas em um “neo-olavismo”, um anti-petismo e anti-comunismo grosso e histérico frente a uma suposta ditadura esquerdista, críticas ao Foro de São Paulo, e idolatrias ao “professor”. A direita em todos os seus aspectos (intervencionista, liberal, conservadora, neopentecostal e até monarquista) tomava as ruas imbuída de anti-petismo e pedindo a cabeça da presidente — daí o olavismo ter tanta penetração e o neo-olavismo poder ser entendido como uma síntese ideológica e tática dessa multidão. “Olavo tem razão!”.

§ 4 — Talvez Olavo tivesse sempre razão, mas não teria uma completa razão se os abalos e embalos de junho de 2013 não decorressem de uma enorme crise pela qual passava o Kapital no Brasil e no mundo. Na verdade a direita radical, ou a extrema-direita nunca teria razão na história do capitalismo se as crises do Kapital não encubassem os ovos que permitiram a sua fecundação. Um pequeno recuo na história nos possibilitará perceber que a eclosão da chamada Grande Guerra, a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), buscava alcançar novos mercados para a valorização do Kapital, na tentativa de combater uma enorme deflação advinda da primeira grande crise desse sistema, ocorrida entre os anos de 1873 e 1896. Nesse momento, a sedimentação e o recrudescimento dos nacionalismos, a xenofobia e a emergência de uma espécie de colonialismo “moderno” foi a consequência inevitável das necessidades de acumulação. Resultado ainda mais drástico seria vivenciado na sequência da crise de 1929, o mal-estar da civilização já podia ser observado na ascensão de governos de extrema-direita como o de Mussolini na Itália em 1922 e da consolidação do movimento dos Fasci Italiani, no Estado Novo salazarista em Portugal, no curto verdão da anarquia na Espanha e subida ao poder de Franco e principalmente do movimento nazista de Hitler na Alemanha. Em resposta à crise econômica e à miséria social e ao medo de um “comunismo” já inexistente representado pela URSS, esses grupos de extrema-direita, principalmente na Itália e Alemanha se organizavam em verdadeiras formações paramilitares, insufladas no seu extremismo pelos próprios governos, por meio de propagandas ultranacionalistas, racistas e antissemitas. Uma demagogia anticapitalista contra os judeus usurários e um suposto anti-imperialismo contra o Tratado de Versalhes levaram ao óbvio e inevitável desfecho da 2ª Guerra Mundial, na qual mais de 70 milhões de pessoas morreram para salvar o Kapital. Olavo não teria razão, então, se a crise de 2008 não tivesse rebentado no núcleo central do Kapital e se alastrado como pólvora pelo mundo inteiro através um sistema completamente integrado mundialmente. Um verdadeiro tsunami que foi, ao menos até a eclosão da pandemia da COVID-19, combatido com medidas de austeridade, impostas na Europa pela chamada Troika (Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu), que levou à devastação de países como a Grécia, por exemplo, e foi motivo de intensas mobilizações. No Brasil esse tsunami não passou, segundo o então presidente Luiz Inácio. No entanto, Painho estava enganado. Se aparentemente essa crise não surtiu efeitos no Brasil de forma imediata, sobretudo, pela demanda de commodities no mercado internacional, logo ela apareceria para cobrar seu preço, com juros.

§ 5 — Olavo tinha razão… mas talvez não tivesse tanta razão assim se o governo Dilma não tivesse trabalhado sistematicamente para destruir o pacto de conciliação de classe tão arduamente costurado por painho Lula nos seus dois mandatos com presidente. Entre os anos de 2003 e 2010, Luiz Inácio pôde surfar economicamente numa conjuntura internacional que lhe possibilitou o sonho de implementar uma política econômica e social em que todos os setores da sociedade brasileira ganhariam. O triste, batido, surrado e modorrento chavão de que “nunca na história desse país” foi repetido e espalhado como fumaça ao vento. É verdade, no entanto, que basicamente todos os grandes setores da classe dominante no Brasil viram seus lucros crescerem quase que exponencialmente no período Lula. Entre 2003 e 2010, as 500 maiores empresas não bancárias tiveram rendimentos que saltaram de 3,5% para 11%, já os bancos tiveram um salto de 12% no início do 1º mandato, para nada menos que 20% em 2010. Programas de infraestrutura como o PAC e de moradia como o Minha Casa Minha Vida, possibilitaram às empreiteiras (as mesmas que naufragariam no processo da Lava Jata) terem uma rentabilidade média de cerca de 16% nos dois mandatos do Painho. O ramo manufatureiro seguiu na mesma linha, com uma média de 18% no período. As classes trabalhadoras e os setores mais pauperizados da sociedade também tiveram sua miserável fatia (talvez apenas os farelos) desse imenso bolo desenvolvimentista. Houve programas de transferência de renda (o mais importante deles, o Bolsa Família), um aumento do salário nominal e também do salário real, a criação de empregos e, sobretudo, a propagação, como uma verdadeira panaceia, da criação de um mercado interno mais robusto via concessão de crédito. Lula, então, pôde tentar o sonho conciliatório de colocar do mesmo lado todos os setores dominantes, mais a classe trabalhadora e os setores pauperizados. Esse sonho perdurou enquanto todos “ganhavam”… como um castelo de areia se desfez depois que a marolinha da crise de 2008 foi transformando-se gradativamente em tempestade até explodir num grande maremoto ainda durante o primeiro governo de Dilma (2011-2014).

§ 6 — Dilma, a mãe guerrilheira, fez questão de dar toda a razão ao “filósofo” de Virginia. Se durante o primeiro ano do 1º mandato, Dilma ainda conseguiu evitar a debacle, com medidas como corte da Taxa de Juros (a chamada Selic que chegou a 7,5% em 2013), realizou “reformas” no setor elétrico, obtendo uma queda de 20% nas contas de energia, adotou nova política cambial, desvalorizando o real frente ao dólar, como o objetivo de dar mais competitividade principalmente à indústria nacional, abriu a porteira do crédito para investimento, via BNDES, instituiu o Plano Brasil Maior, que teve como principal eixo a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para automóveis, linhas branca, móveis e outros produtos. Essas medidas, no entanto, não tiveram efeito para segurar a rebordosa da crise de 2008 que já perturbava a consciência do capitalismo brasileiro. Em termos de PIB, há uma queda drástica ainda nesse 1º mandato: de 3,9% em 2011, cai para 1,9% em 2012. A desconfiança dos donos do dinheiro se reflete na taxa de investimento que desabou de 6,7% em 2011 para 0,8% em 2012. A crônica já estava se escrevendo, e morte logo seria anunciada. Apenas o setor financeiro e dos bancos passaria ileso por esse momento, o resto foi ladeira abaixo: o principal exemplo foi o setor de produção de petróleo (basicamente a Petrobras) que caiu de 11,4% em 2010, antes da Dilma, para -0,7% em 2014 no final do seu 1º mandato. O setor automobilístico também sofreu uma drástica queda nos seus lucros: se em 2010 chegaram a obter exorbitantes 49,2%, em 2013 a taxa foi apenas de 14,5%. A construção civil também despencou de 15,7% em 2010 para 1,9% em 2014. Desfeito o grande sonho da conciliação de classes e sem apoio popular devido ao chamado “estelionato eleitoral” após a reeleição em 2014, após o PIB recuar 3,2% no 3º Trimestre de 2015 e o investimento cair -12,5%. Essa desaceleração na acumulação capitalista passou a fazer eco no campo político (onde teve papel circunstancial a Operação Lava Jato) e a conhecida inépcia da presidente para o diálogo como todos os setores da burguesia agravou a situação a ponto de o impeachment ser cogitado como uma solução possível e necessária para que a classe dominante reavaliasse e redesenhasse os caminhos que poderiam ser na busca da saída da crise e retomada da valorização do valor. Em dezembro de 2015, o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha aceita o pedido de impeachment e em agosto de 2016 Dilma é definitivamente afastada da Presidência da República.

§ 7 — O contexto social que possibilita o surgimento de Bolsonaro é o de sensação de vitória contra o petismo através do impeachment de Dilma, seguida de uma reorganização das forças da direita em torno de uma única figura que centralizasse uma alternativa institucional ao Partido dos Trabalhadores. Nesse sentido, era de extrema importância uma personalidade que conseguisse sinalizar para todos os diversos setores de direita que se organizavam em torno da pauta do impeachment, continuar o trabalho de “síntese de ideias” que o neo-olavismo havia cumprido até então. É nesse contexto que Bolsonaro surge como opção viável. Militar reformado que goza de certo apreço pelas viúvas da ditadura militar, ao mesmo tempo que faz defesas vagas do livre-mercado e de ideias liberais. As pessoas de que se cercou não poderiam ser diferentes, nessa tentativa de manutenção da síntese: Paulo Guedes (cumprindo o papel da liberalização da economia), Mourão (cota do Exército) — embora houvesse sinalizado para Luiz Philippe de Orléans e Bragança (causador de êxtase nos militantes monarquistas), que só não foi chamado para ser seu vice por conta de rumores de um dossiê contendo fotos em uma orgia gay. Bolsonaro tentou chamar Olavo para ser seu Ministro da Cultura, que recusou mas indicou dois alunos seus: Ernesto Araújo e Abraham Weintraub. Acrescentou um juiz, um astronauta, uma neopentecostal, vários militares e alguns engomadinhos. Completado o seu “Village People” reaça [gíria brasileira para “reacionário”] e utilizando todas as estratégias e aparatos de propaganda que a direita havia constituído nos últimos anos, Bolsonaro sai eleito.

§ 8 — Durante as eleições de 2018, as chamadas “fake news” dominaram a cena. O que para nós era uma novidade chegou com um certo atraso em relação aos Estado Unidos, que já inauguravam um novo patamar das “fake news” com o QAnon e uma certa rede/movimento sustentada em teorias da conspiração que serviriam como campo fértil para a extrema-direita, além de mais diretamente como base de apoio ao então presidente Trump. Criadores de Jogos de Realidade Alternativa (Alternate Reality Games ou ARGS), como Adrian Hon e Reed Berkowitz, identificam no QAnon similaridades com o funcionamento das ARGS ao buscarem mapear os dispositivos pelos quais essas teorias de conspiração parecem agir na mente de seus adeptos. A palavra que melhor explicaria as mesmas sensações disparadas tanto pelos ARGS quanto pelo QAnon seria a “apofenia”, isto é, “a tendência para perceber conexões ou padrões entre coisas aleatórias ou sem quaisquer conexões”. Nos ARGS a apofenia pode levar a dois casos: 1) o jogador encontra um padrão e acredita que aquilo pode levá-lo a solução do seu problema, o que o faz esmiuçar-se sobre questões que não têm nenhuma relação com seu objetivo principal, fazendo com que os desenvolvedores tenham de arranjar meios de trazer o jogador de volta ao caminho natural definido pelos desenvolvedores ou 2) os desenvolvedores arrumam um jeito de incorporar esse devaneio ao próprio jogo, criando missões paralelas ou expansões. Pensando no caso do QAnon, a apofenia é sua condição motriz. É ela que faz com que o movimento consiga se expandir, englobando uma série de teorias conspiratórias que, a princípio, pareçam até mesmo entrar em contradição. Os “desenvolvedores” aqui são os próprios participantes do movimento e não há fuga do “caminho natural”. É nessa aparente horizontalidade, em que todos incorporam tudo, que o movimento segue se reproduzindo. Mas o QAnon (e antes, o que ficou conhecido como “Pizzagate”) deve ser analisado mais de perto dentro do contexto dos escândalos de dados Facebook-Cambridge Analytica, na qual a empresa de consultoria política britânica utilizou informações pessoais de até 87 milhões de perfis de usuários no Facebook, os quais foram utilizados por políticos para influenciar eleitores em diversos países. A Cambridge Analytica (CA) foi fundada por Robert Mercer, que depois formaria parceria com Steve Bannon (o qual tem muito apreço por Olavo e suas ideias) e que, juntos, ajudariam a impulsionar um movimento de direita populista internacional (The Movement) com o objetivo de articulação dessa nova direita, tudo isso em cima de um modelo de negócio utilizando táticas militares. Nas palavras de um ex-funcionário em entrevista ao The Gardian [7], a CA seria “o produto de um bilionário gastando enormes quantias de dinheiro para construir seu próprio laboratório de ciências experimental, para testar o que funciona, para encontrar pequenas lascas de influência que podem ditar uma eleição”. A Cambridge Analytica teria papéis decisivos tanto nas campanhas pelo Brexit quanto na eleição de Donald Trump. Também são creditadas à empresa vitórias eleitorais de outros populistas de direita pelo mundo. No Brasil, até onde se tem notícia, a empresa não agiu diretamente, embora em 2017, em entrevista ao El País [8], o marqueteiro André Torretta já apontasse para uma “tropicalização da metodologia” da empresa britânica. Fundador da consultoria Ponte Estratégia, que mantinha parceria com a Cambridge Analytica, o marqueteiro disse que decidiu pela suspensão com os laços com a CA após o escândalo de vazamento de dados do Facebook. Reconhecedor da “expertise de milícia digital” — ou populismo digital, como bem define Letícia Cesarino — do MBL, Torretta entende que o trabalho eficaz com a propaganda precisa de reconhecimento territorial, isso porque os bancos de dados públicos brasileiros são muito inferiores aos americanos. Soma-se a isso o fato de que, ao contrário dos EUA, onde o Facebook é a rede social por excelência, “a grande rede social no Brasil é o WhatsApp”.

§ 9 — Embora em um primeiro momento uma cibernética populista tenha se formado com um emaranhado de redes, páginas e movimentos, no momento seguinte — quando Bolsonaro chega ao poder e alguns apoiadores passam a se tornar mais críticos, rachando com seu governo, como é o caso do MBL e de alguns outros influencers liberais — o diferencial do bolsonarismo começa a se fazer mais presente. Enquanto esses movimentos e personalidades começam a perder força, o bolsonarismo se fortalece. Na oposição aos “traidores”, a base bolsonarista vai se radicalizando e se conformando cada vez mais como uma seita em torno do presidente. Ao mesmo tempo em que os vácuos dos militantes direitistas profissionais vão aparecendo ao abandonarem o apoio ao governo, esse vácuo começa a ser preenchido por outras formas surgidas de dentro do próprio movimento. Se o neo-olavismo é a expressão da aceleração do próprio olavismo através da popularização de vídeos do Olavo em um contexto político-social de decomposição do consenso democrático que começa a ser direcionado para o anti-petismo, o bolsonarismo é o neo-olavismo acelerado por uma cibernética populista orientada a um contexto político-social em que o descrédito às instituições democráticas já direcionadas para o combate ao PT volta a se generalizar contra toda a institucionalidade democrática, entendida como apoiadora do PT e dos “esquerdistas”. Nesse sentido, surge um presidente que usa simbologia de 2013 mas aponta para 2016. “Contra tudo que está aí”, no caso, é o PT (com tudo o que vem na esteira do Partido dos Trabalhadores seguindo a cartilha: comunismo, Foro de São Paulo, ideologia de gênero, mamadeira de piroca, mas também o STF, o Congresso, a democracia). Para Olavo, em live no primeiro ano do governo Bolsonaro, ao comentar o Caso Weintraub, a eleição de Bolsonaro foi uma “ejaculação precoce”, pois de nada adiantava eleger um presidente sem militância organizada, “uma forma ideológica ou moral ou com um código qualquer que oriente a conduta das pessoas”. Não haveria “unidade nem ideológica, nem moral, nem intelectual” na direita para dar base de sustento ao governo. “Você tem é um estado anárquico, uma anarquia direitista, e esta é a base na qual o presidente se apoia”. O bolsonarismo preencheria essa falta de “unidade ideológica, moral e intelectual” com uma estratégia comunicacional. Centralidade da tática. Nessa anarquia cibernética, os conteúdos (notícias, prints de conversas, informações “secretas”, vídeos, memes, etc.) criados ao mesmo tempo por núcleos profissionais — mais integrados com o bolsonarismo oficial, os que têm os verdadeiros contatos — e pela comunidade — participantes dos grupos de Zap [gíria brasileira para “WhatsApp”], das páginas e grupos do Facebook, do Telegram, etc. — é que definem a forma a ser adotada pelo movimento. A apofenia parece oxigenar o movimento, levando a comunidade a criar seus próprios conteúdos (revisando informações, gravando vídeos com suas interpretações do que está acontecendo, prints de conversas com seu tio-avô militar da reserva, áudio repassado do primo da tia do amigo do seu irmão, que tem a voz parecida com a do Ministro da Justiça, como se fosse o próprio Ministro da Justiça…), com uma certa “reorientação de enredo” sendo feita pelos núcleos profissionais em certos momentos. Se uma notícia, em um grupo, é recebida como algo negativo — como por exemplo o quebra-quebra em Brasília no dia da posse do Lula — surgem rapidamente “correções” — tudo não havia passado de esquerdistas infiltrados para deslegitimar o movimento. Caso a notícia repassada seja visto de forma positiva, ela é incentivada e se desdobra em novos conteúdos para reforço da tática — chamadas de novas ações, reforço às pautas do movimento, etc.

§ 10 — Durante todo o governo Bolsonaro o “movimento bolsonarista” permaneceu ativo, atualizando seus repertórios das lutas, suas pautas, suas personalidades. Os movimentos contra o lockdown, que se desdobraram em defesa da cloroquina e do chamado tratamento precoce, foram responsáveis por um fortalecimento dos laços de solidariedade dos que lutavam contra o autoritarismo dos governadores e prefeitos de fazer as pessoas ficarem sem trabalhar — ao menos era assim que esses manifestantes e o próprio presidente viam a situação. Dessa forma políticos de oposição, empreendedores locais, trabalhadores autônomos, médicos bolsonaristas e adeptos das diversas teorias da conspiração sobre o “vírus chinês” conseguiram articular um campo de acordos táticos e tomar as ruas de várias cidades do Brasil. “Queremos trabalhar!”. Vários desses grupos e movimentos constituídos em plena luta viriam posteriormente a ser integrados na cibernética bolsonarista, isso quando já não estavam. Nessa síntese tática, o bolsonarismo consegue incorporar bem tudo, aproximando até os não-bolsonaristas mas que começaram a participar dos movimentos “pelo trabalho”. Contatos foram sendo realizados entre articuladores de movimentos de diversos lugares, e novos grupos de coordenação de ações começaram a surgir, um processo de operação ao mesmo tempo integrado com o centro oficial bolsonarista e autônomo a ele. Alguns líderes subiram alguns degraus no esquema de pirâmide desse populismo virtual, começando a participar de lives de canais bolsonaristas maiores, entrevistas, etc. Como todo milieu, o bolsonarismo também gera suas próprias personalidades, que só são conhecidas uma vez que você está integrado em suas redes. É também nessa formação de “influencers” que o movimento se reproduz.

§ 11 — Em um discurso 10 dias antes do 7 de Setembro de 2021 — o dia em que muitos dos seus apoiadores esperavam um autogolpe — Bolsonaro afirmou que só existiam três alternativas para seu futuro: “estar preso, ser morto ou a vitória” — três alternativas heroicas que, em sua análise, o colocariam nos braços do povo. Com as destruições nas sedes do Executivo, Legislativo e Judiciário e a opinião pública em conjunto com os Três Poderes em uníssono condenando o ataque, abriu-se um pretexto para “cair matando” em cima do governo Bolsonaro, e talvez essa prisão seja menos glamourosa do que o ex-presidente havia pensado anteriormente. A institucionalidade democrática parece, contudo, não querer apostar na prisão. Seria melhor caçar seus direitos políticos e o deixar inelegível, questão já dada como certa pelo próprio PL, que começa já a procurar uma alternativa dentro do próprio núcleo familiar do ex-presidente. A questão é, sem Bolsonaro como possibilidade institucional, haveria condições de um fortalecimento do bolsonarismo, ou dessa nova coisa que começa a se constituir em um “pós-Bolsonaro”? O contra-ataque disparado pelos Três Poderes após o putsch bolsonarista parece começar a surtir efeito considerável na capacidade de mobilização do movimento. A potência dos atos de rua e ação direta parecem ter atingido seu ápice e, agora, poderão entrar em declínio.

§ 12 — Não é possível afirmar que o movimento se extinguirá, ao menos não de maneira imediata. Duas possibilidades apontam para esse processo: a) poderá haver uma recomposição em que atores intermediários da pirâmide da cibernética populista bolsonarista (os líderes de movimento de suas respectivas cidades, os empreendedores radicalizados que financiam ações, as páginas de direita que bombam, os sites de notícia, os pastores bolsonaristas, etc.) saiam fortalecidos em seus nichos políticos/sociais locais, começando a constituir bases, que se estabeleceriam na criação de grupos para agitação permanente em suas cidades, na criação de um movimento para espalhar as ideias de direita (um fenômeno que vem crescendo, principalmente em cidades pequenas), na criação de canais de mídias locais, na unidade com os colegas de trabalho ou vizinhos que pensam parecido ou mesmo no lançamento de candidaturas; b) a segunda possibilidade é que é possível pensar que o auge da existência e potência desses grupos já tenha passado, talvez eles não tenham mais a possibilidade de ir tão longe nos cargos do Estado e, se eles foram essa espécie de “ejaculação precoce” de uma nova direita que não estava preparada para a “tarefa histórica” que Olavo imaginava para ela, tanto pior para eles. Não é possível afirmar, neste momento, se Bolsonaro vai estar apto a concorrer em 2026 e, mesmo se estiver, as chances que ele teria dependeriam muito de como vai ser o governo Lula. Se o governo Lula controlar bem a crise do Kapital (o que parece difícil) ele estará autorizado a eleger quem ele quiser, de novo — como em 2010 elegeu a “mãe Dilma” —; se ele não controlar, não é possível dizer que termine o seu mandato.

As obras que ilustram o artigo são de Judith Lauand.

Notas e referências

[1] Sobre a ‘dissidência tradicionalista’, pelos próprios ‘dissidentes’: https://andreluizvbtr.blogspot.com/2022/05/historia-da-dissidencia-tradicionalista.html

[2] Há denúncias de ambos os grupos como se fossem “fascistas infiltrando-se na esquerda”, as quais sinceramente me parecem muito simplórias. A verdade é que tanto esses grupos quanto a esquerda da qual se aproximam têm muito mais similaridade e compartilham as mesmas ideias e simbologias, muito mais do que possa parecer. É mais correto tentar observar o surgimento de um fascismo mais na intersecção entre esses grupos e os partidos dos quais se aproximam por meio do nacionalismo do que um vetor fascista partindo unicamente daqueles com o intuito de dominação destes.

[3] O próprio Olavo incentivava a leitura de Evola ao criar uma lista de “livros que fizeram minha cabeça”, no entanto ele reforça que não é em relação a “concordar e seguir”, já que afirma que o autor era “maluco”.

[4] Para Olavo, Dugin busca, através de suas ideias eurasianas, unir tudo o que é anti-ocidente (remanescentes comunistas, a Igreja Ortodoxa, a extrema-direita europeia anti-america, remanescentes nazistas e muçulmanos — a Terceira Roma, o Terceiro Reich e a Terceira Internacional), aliado a um vocabulário guenonista e evoliano (tradição, o retorno ao sagrado, etc.) para atacar uma caricatura ocidental que se baseia unicamente em um livro: A sociedade aberta e seus inimigos, de Karl Popper. Ao identificar o modelo liberal de Karl Popper nos Estados Unidos, ainda segundo Olavo, Dugin se esquece de que “metade do país está contra isso” e que os Estados Unidos não podem ser identificados com o esquema globalista — que no momento destas críticas estava no poder através do presidente Barak Obama, que estaria apoiando a Revolução Egípcia, assim como toda a esquerda latino-americana — “tudo o que não presta no mundo e tudo o que o Alexandr Dugin gosta”. Nesse sentido a oposição globalismo e eurasianismo seria um mito, uma vez que “estão de mãos dadas para implantar no mundo o socialismo, porra!”. Os seguidores das ideias de Dugin no Brasil dessa forma contribuiriam para fortalecer os planos imperiais russos que, devido à sua incapacidade de imposição, utilizaria outros países como muleta. Veja a discussão completa aqui.

[5] https://brasilsemmedo.com/quem-dura-mais-vence/

[6] https://olavodecarvalho.org/a-primeira-vitima/

[7] https://www.theguardian.com/technology/2017/may/07/the-great-british-brexit-robbery-hijacked-democracy

[8] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/11/politica/1507723607_646140.html

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  1. Um dos melhores artigos da história deste site! Conseguiu organizar uma miríade bem complexa de temas e fatos. Alguns pitacos que me vieram à cabeça olhando para esse quadro como um todo: na ausência de alternativas de esquerda a tudo isso, redes de solidariedade, organizações fazendo frente e disputando as ruas e e as lutas nos locais de trabalho e moradia, um forte movimento ideológico de divulgação e propagação de ideias anticapitalistas etc. a força desse fascismo em ascensão só perderia força “por si só” se houvesse uma conjuntura de expansão econômica capaz de convencer os trabalhadores de que a “opção governista” petista, “de esquerda”, é melhor que o bolsonarismo (cujo fracasso econômico foi ocultado pelo impacto da Covid-19), e eu acho essa opção praticamente impossível de ocorrer nas atuais condições do país, dada a crise de financiamento do Estado brasileiro e suas possibilidades de incentivo ao desenvolvimento e o nível crítico do comércio internacional. Não sei em que medida o que vou dizer é específico para a conjuntura atual, mas me parece que já que não há antagonista de classe organizado internamente e nem possibilidade de um solução desenvolvimentista redentora a nível de governo nacional etc, o futuro disso tudo será decidido no cenário global, conforme houver recuperação econômica e expansão no capitalismo chinês, norte-americano, o desenrolar de guerras e a ascensão ou não de forças fascistas em outros países. Conforme a crise se aprofundar a nível global por aqui mais e mais soluções xenofóbicas, nacionalistas e toda essa merda identitária bolsonarista vai ganhar força, enquanto os outros identitarismos autointitulados de esquerda vão brigar a tapas em busca de garantias mínimas (cotas e políticas públicas) de sobrevivência em meio à catástrofe econômica e suas implicações políticas (fascismo e necropolítica etc). Por exemplo, as reportagens e construção da opinião pública pela mídia a respeito da “tragédia yanomami” não impediram que já nesse momento, onde a crise econômica não está tão em pauta devido a ser fim de ano, troca de governo, etc., houvesse muita gente indignada com a atenção demasiada aos índios em vez de aos que trabalham, e não à toa voltou a ser muito compartilhado nas redes a desavergonhada frase do jurista Ives Gandra: “Não Sou: Nem Negro, Nem Homossexual, Nem Índio, Nem Assaltante, Nem Guerrilheiro, Nem Invasor De Terras. Como faço para viver no Brasil nos dias atuais?” (ver aqui [[https://www.noticiasagricolas.com.br/artigos/artigos-geral/202552-nao-sou-por-ives-gandra-da-silva-martins.html#.Y-yTqHbMJPY]]). Não ignoro que houve uma força política e social “democrática” a se organizar eleitoralmente contra o fascismo bolsonarista, mas essa força só foi capaz de conter a onda, ou seja, se valeu de forças e acúmulos políticos e ideológicos das lutas históricas em torno dos valores democráticos, sem propor nada de novo, nenhuma solução para a crise real que os bolsonaristas identificam no “sistema”. Aliás, esse é um ponto ausente nesse fantástico artigo: vale sempre ressaltar que os bolsonaristas não são de todo insanos, conspiracionistas e aferrados a inimigos imaginários etc., eles identificam muitos problemas reais, que são mal compreendidos e para os quais propõem soluções péssimas, mas reais.

  2. Estou impressionado. De longe um dos melhores textos! Uma síntese simples e ao mesmo tempo complexa da formação da direita no Brasil. Não sabia que tinha sido no Orkut.

  3. Primeiramente, obrigado a todos pelo feedback.
    Pablo, estou de acordo com os apontamentos feitos por você. De fato o bolsonarismo não perderia força “por si só” sem que houvesse questões de matriz econômica para minar suas energias. Se há de fato um movimento descendente na capacidade de luta dos bolsonaristas – e eu acredito que há – ele não se dá, pelo menos nesse momento, em relação à questões econômicas de nível macro – uma melhor performance no campo da economia pelo governo Lula em relação ao Bolsonaro – mas de nível micro – de capacidade do próprio movimento de se sustentar (ou pelo menos a parte mais radical dele). Na segunda-feira a AGU pediu à Justiça Federal em Brasília a condenação definitiva de cinquenta e quatro pessoas, três empresas, uma associação e um sindicato considerados os financiadores das excursões para Brasília. Além disso, a AGU também entrou com pedido para que a ação de bloqueio de bens dos acusados seja convertida em ação civil pública para que assim sejam condenados em R$ 20,7 milhões (valor aproximado dos danos nas sedes dos três poderes). 941 pessoas seguem detidas. O discurso consensual dos poderes públicos e da mídia em ir até a raiz do problema pode ter contornos interessantes no futuro, uma vez que a rede bolsonarista é difusa, complexa, e opera em vários níveis. Daí entra outra questão pertinente que tu coloca aí, que talvez tenha ficado implícito o caráter “sequelado” do bolsonarismo, como se todos fossem do “QGanon” (ouvi essa em um vídeo no youtube logo depois de submeter o texto para publicação, certamente teria utilizado antes porque acho que abre possibilidade pra um recorte dentro do próprio bolsonarismo), eu também não concordo com essa visão e acho que essa coisa pode ter ficado meio mal representada no texto. Como tentei demonstrar, o bolsonarismo é mais o resultado de uma estratégia comunicacional, e aí estão vários senhores e senhoras, jovens, “pais e mães de família”, etc. participando dessas redes que não são da linha (será que daí já seria possível a definição de “bolsonarismoS” em coexisência?) das “ocupações de QG” (por mais que possam apoiar os atos e tudo mais, mas que no final denunciam os vandalismos do dia 8 de Janeiro, por exemplo, ou então os trancamentos de rodovia depois dos resultados do segundo turno). Agora, tem uma questão aí também nessa pegada a nivel internacional. O exterior com certeza cria as condições e em alguns casos até fomenta diretamente, mas nossos demônios crescem em casa. E, a julgar pelos representantes do populismo de extrema direita internacional, não parece haver condições de fortalecimento de uma linha “sequelada” – não a toa a extrema direita populista em peso condenou o 8 de Janeiro, não porque não curtiriam o nível de radicalidade, ou porque são defensores da democracia, mas porque sabem que não tem condições (pelo menos não agora, e aí as questões econômicas internacionais que você levantou podem mudar as condições no futuro) de bancar o nível da radicalidade em proporção de massa. O bolsonarismo radical do 8 de janeiro queima o filme deles porque escancara o que, no âmago, todos eles são. Poderia isso ser uma “cobrança” do populismo de extrema direita internacional por um bolsonarismo mais “domesticado”, menos escrachado, menos barulhento, mais recatado e sorrateiro?

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