Por Eli Friedman
Por alguns dias em abril, minha timeline foi dominada por imagens de uma mulher de noventa e cinco anos em Xangai lutando contra os “Grandes Brancos” – funcionários do governo e policiais vestidos com trajes de proteção que passaram a simbolizar os excessos coercitivos do recente lockdown devido à COVID-19 na megacidade. Empunhando nada mais do que uma vassoura, a mulher repeliu os avanços de seis policiais que vieram levá-la de sua casa para as temidas instalações centralizadas de quarentena. No fim, ela foi subjugada e detida, apenas para aparecer mais tarde naquele dia de volta em casa. Supostamente, ela escapou da quarentena pulando por uma parede. Sua vontade de ferro e destemor diante do poder esmagador do Estado conquistaram instantaneamente um status de culto na internet.
Essa insurrecionaria de noventa anos imitava o “Homem dos Tanques” de 1989, que parou uma fila de tanques na Praça Tiananmen. Ambos os indivíduos encararam a mão pesada de uma ditadura autoritária e forçaram-na a hesitar, representando as linhas de opressão e resistência. O Homem dos Tanques e a avó de Xangai merecem a nossa admiração, mas nenhuma das suas ações deve ser reduzida a uma representação ao estilo de Hollywood do indivíduo contra o Estado. No contexto dos esforços incessantes do Estado chinês para atomizar a sociedade, balançar uma vassoura contra os Grandes Brancos é um ato político, mas que devemos situar no interior de uma linhagem de feroz resistência coletiva à morte social — não apenas na China, mas dentro das lutas dos despossuídos em todo o mundo.
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Com ou sem a pandemia de COVID-19, a China possui uma maior capacidade de controlar o movimento interno da sua população do que talvez qualquer outro país no mundo. Isso é garantido principalmente através do sistema de registro de domicílio (hukou), que vincula a prestação de serviços sociais a localidades regionais desde 1958. Sob o comando de Deng Xiaoping, a China começou a construir um mercado de trabalho nacional, que hoje permite aos cidadãos desfrutar da estreita liberdade de mercado para procurar emprego em todo o país. Mas a cidadania social, incluindo o acesso a cuidados de saúde, educação, pensões e habitação subsidiadas pelo Estado, está estruturada ao nível da cidade.
Nos últimos anos, o governo central promoveu uma biopolítica tecnocrática que visa distribuir especificamente as pessoas, nas qualidades e quantidades certas, no interior de uma complexa hierarquia socioespacial de cidades e regiões. Essa “urbanização just-in-time” destina-se a atrair talentos de elite para cidades de elite e empurrar a “população de baixo custo” para lugares de baixo custo.
Embora a mobilidade humana nunca possa ser ditada com tanta precisão, o efeito prático para os trabalhadores migrantes dentro da China tem sido a separação dos espaços de vida e de trabalho. Quase 300 milhões de pessoas foram deslocadas, indo para as cidades em busca de trabalho apenas para ter o acesso negado a infraestruturas que sustentam a vida, como habitação e saúde. Essa divisão foi aplicada através dos sistemas de avaliação baseados em pontos, permitindo a distribuição de recursos nominalmente públicos a pessoas detentoras de propriedade com altos níveis de educação. Em outras palavras, embora haja livre circulação de capitais e de força de trabalho na China, continuam a existir fronteiras internas massivas que restringem a reprodução social.
Às vezes, essas fronteiras invisíveis se manifestam fisicamente. Embora a deportação de pessoas que não são naturais das cidades (“custódia e repatriação”, no jargão oficial) tenha sido proibida após o assassinato pela polícia do migrante Sun Zhigang em 2003, as cidades ainda tomam medidas coercitivas para remover pessoas consideradas fora do lugar. Isso envolveu a demolição de escolas informais para crianças migrantes e até mesmo a destruição de comunidades inteiras de migrantes. O exemplo recente e mais espetacular de expulsão coercitiva de trabalhadores migrantes aconteceu em 2017, quando o governo municipal de Pequim usou um trágico incêndio como pretexto para despejos em massa e reconstrução de bairros da classe trabalhadora, deslocando quase 100.000 pessoas no processo.
Tais intervenções coercitivas surgem devido à dissonância entre um mercado de trabalho organizado nacionalmente e um bem-estar social organizado a nível regional, uma dinâmica que tem gerado explosões esporádicas de lutas sociais. Em minha pesquisa com trabalhadores migrantes em Pequim, Guangzhou e em outros lugares, frequentemente descobri que as pessoas estavam conscientes de como as cidades entrariam em colapso sem seu trabalho e incrédulas de que fossem recebidas nessas cidades como trabalhadores sem acesso à educação, moradia e saúde. Muitas vezes sem o apoio do Estado, essas comunidades esforçaram-se criativamente para satisfazer as suas próprias necessidades sociais.
Já na década de 1990, por exemplo, pequenos grupos de pais reuniam os seus limitados recursos para montar escolas informais, muitas vezes começando no quarto de um apartamento. Algumas dessas operações de ajuda mútua continuaram a crescer nos interstícios institucionais da cidade, oferecendo educação de baixo custo para crianças que têm o acesso negado ao sistema público. Sem apoio público, essas escolas certamente enfrentam limitações, uma vez que são obrigadas a depender dos pagamentos, enquanto atendem a uma comunidade pobre e da classe trabalhadora. Ainda assim, algumas conseguiram obter apoio financeiro de fundações e do governo, ao mesmo tempo em que alcançavam admiráveis históricos acadêmicos. Tais esforços não reverteram a maré de desigualdade educacional e econômica na China, mas permitiram, no mínimo, que milhões de trabalhadores migrantes vivessem na mesma cidade que seus filhos.
Alguns trabalhadores também encontraram soluções institucionais na procura de habitação a preços acessíveis nas cidades em expansão. Especialmente nas megacidades de “nível um” [tier one], como Xangai, Pequim, Shenzhen e Guangzhou, o custo da habitação é astronômico, e a compra de um apartamento está fora do alcance de quase todos, exceto de um pequeno número de migrantes rurais que vieram para a cidade. Esses trabalhadores frequentemente encontram habitações em “vilas na cidade” – terras formalmente designadas como rurais que foram cercadas pela cidade nas últimas décadas de urbanização vertiginosa. As comunidades locais que mantêm os direitos de utilização dessa terra construíram habitações informais de custo relativamente baixo. Tal como acontece com as escolas informais, existem limitações reais: na ausência de apoio público, a habitação é muitas vezes de má qualidade, com acesso deficiente a infraestruturas físicas e sociais. Ainda assim, essa habitação permite o acesso dos migrantes ao mercado de trabalho urbano que, de outra forma, seria bloqueado pelos elevados custos de moradia.
Essas táticas de sobrevivência são legalmente precárias, sendo, portanto, expostas aos caprichos das autoridades locais em relação à reconstrução. Mas, repetidas vezes, vimos migrantes exigirem o direito de permanecerem nas cidades chinesas. Em Pequim, por exemplo, pelo menos setenta e seis escolas para crianças migrantes foram demolidas entre 2010 e 2018. As demolições das escolas geraram frequentemente ações coletivas de confronto, incluindo petições a funcionários do governo, bloqueios de estradas e até mesmo a autoimolação dos pais. Explosões de distúrbios como esses conseguiram frequentemente alcançar vitórias, evitando planos de demolição e obtendo matrículas para crianças em escolas públicas, mesmo enquanto a exclusividade das megacidades ricas da China avança.
As comunidades migrantes também lutaram contra os despejos de habitações informais em Pequim no outono de 2017. A sua resistência não só gerou uma onda de simpatia generalizada por parte dos cidadãos urbanos, mas também uma solidariedade substancial entre classes. Habitantes de Pequim de todas as classes sociais se organizaram através de redes de ajuda mútua para fornecer alojamento temporário, roupas e alimentos para as dezenas de milhares de pessoas que foram desalojadas. Acadêmicos proeminentes assinaram uma carta denunciando os despejos. No contexto de uma liberdade acadêmica drasticamente reduzida sob o comando de Xi Jinping, tal carta trazia um grande risco, bem como um peso simbólico. De forma menos altruísta, mas ainda assim significativa, algumas das empresas que dependiam de trabalhadores migrantes apressaram-se para organizar habitações temporárias. Uma ampla coalizão surgiu quase que da noite para o dia para resistir a um Estado urbano dotado da maquinaria biopolítica que quer reorganizar a vida humana como bem entende. As lutas dos migrantes para aproximar o trabalho e a vida assumiram um caráter novo e ainda mais urgente nos anos seguintes.
O surto inicial de COVID-19 e o subsequente lockdown em Wuhan revelaram muito sobre o regime de gestão populacional do Estado. Como meticulosamente documentado por Chuang em Contágio Social (2021), o sucesso da medida não pode ser atribuído a um Estado centralizado onipotente. De fato, foi precisamente a incapacidade e a irracionalidade do Estado que permitiram, em primeiro lugar, a propagação do vírus. Ao contrário, durante o surto inicial surgiram densas redes de ajuda mútua, facilitando a circulação de bens essenciais em toda a cidade e região, permitindo assim que a maioria das pessoas ficasse em casa. Embora o Estado tenha eventualmente se comprometido a erradicar o vírus, a chave para o sucesso em Wuhan foi as capacidades de coordenação do Estado combinadas com iniciativas de baixo para cima.
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Nos dois anos e meio desde o seu início, a pandemia remodelou drasticamente a mobilidade humana. No nível mais geral, a era da COVID-19 alargou o fosso de mobilidade entre, de um lado, o capital e as mercadorias, e do outro, a força de trabalho e as pessoas. Sem dúvida, a circulação de mercadorias foi abalada por aquilo a que se chamou, de forma um tanto imprecisa, crise da cadeia de suprimentos. Ainda assim, enquanto a imigração global e as viagens internacionais caíram acentuadamente devido à pandemia, o comércio global atingiu um novo recorde de US$ 28,5 trilhões em 2021. O comércio da China com os Estados Unidos aumentou 25% em 2021, enquanto o superavit comercial global chinês atingiu um recorde de US$ 676,6 bilhões. Ao mesmo tempo, a China impôs novos controles radicais sobre a mobilidade das pessoas, tanto nacional quanto internacionalmente.
A abordagem da China para gerir o movimento humano durante a pandemia não pode ser vista isoladamente do resto do mundo. Durante a maior parte de 2020 e 2021, funcionários do governo e a mídia comemoraram o fracasso catastrófico da maioria dos outros países — especialmente dos Estados Unidos — em evitar a mortalidade em massa. Muitos chineses justificadamente orgulharam-se e apoiaram ativamente os esforços do Estado para conter o vírus, permitindo assim um elevado grau de normalidade na vida cotidiana. A narrativa de Xi sobre o “grande renascimento da nação chinesa” em contraste com o declínio do Ocidente foi impulsionada pelas respostas díspares à pandemia.
Mas, na primavera de 2022, o vírus sofreu uma mutação e as vacinas nacionais tornaram-se quase inúteis na prevenção da infecção (embora, com três doses, ainda sejam altamente eficazes contra a hospitalização e a morte). A China, e talvez a Coreia do Norte, foram deixadas como os últimos refúgios da política de “zero COVID-19”.
Quando os casos começaram a surgir em Xangai, em março, poucos puderam antecipar a catástrofe social que estava prestes a se desenrolar. Seguindo o manual de “zero dinâmico”, a resposta inicial não foi um lockdown ao nível da cidade, mas sim uma quarentena mais direcionada nas unidades administrativas ao nível comunitário. Em 28 de março, o governo anunciou um lockdown em estágios, começando na parte leste da cidade antes de se expandir para os distritos ocidentais. Os moradores foram instruídos a esperar apenas alguns dias de lockdown. Mas, à medida que os dias se tornavam semanas, o lockdown zelosamente implementado produziu todo o tipo de sofrimento humano. Problemas de saúde mental induzidos pelo isolamento levaram a suicídios; sistemas alimentares rigidamente controlados e muitas vezes mal coordenados entraram em colapso, deixando as pessoas sem sustento adequado; os cuidados de saúde para outras doenças foram suspensos.
Uma distinção fundamental entre Wuhan e Xangai é que, durante o lockdown mais recente, o Estado insistiu que as pessoas continuassem a trabalhar. Esforçar-se por manter a circulação de capitais enquanto desmobiliza radicalmente a força de trabalho é um desafio, mas as autoridades de Xangai estavam dispostas a tentar. A principal arma político-espacial em seu arsenal era o circuito fechado. Não totalmente diferente da “bolha” da NBA de 2020, o circuito fechado foi inicialmente implantado nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim em 2022 para permitir que pessoas de todo o mundo se reunissem sem aumentar as taxas de infecção na sociedade em geral. A estratégia consistia em manter as instalações o mais próximo possível de serem hermeticamente fechadas, permitindo apenas a entrada de itens essenciais, como alimentos e medicamentos, evitando ao mesmo tempo que quase todas as pessoas saíssem do circuito. Esta estratégia permite que o capital circule, reduzindo ao mínimo a mobilidade humana.
Com a implementação do lockdown em Xangai mais tarde naquela primavera, tornou-se evidente que a lógica do circuito fechado havia vazado da Vila Olímpica para a política mais geral. Em 11 de abril, o governo de Xangai emitiu uma “lista branca” contendo 666 empresas que poderiam reabrir apesar do amplo lockdown (outras 342 empresas foram adicionadas em maio). Entre os listados estavam a Gigafactory da Tesla e a Quanta, uma das fornecedoras mais importantes da Apple. A fabricação em circuito fechado exigia que os trabalhadores entrassem na fábrica e permanecessem lá — comendo, dormindo e trabalhando apenas dentro do terreno da planta. Quando os trabalhadores foram trazidos para o circuito, eles não tinham como saber quando seriam autorizados a sair. Em vez de trabalhar em casa, estes trabalhadores foram chamados a viver no trabalho.
Enquanto isso, o regime de trabalho em casa que os trabalhadores de colarinho branco tiverem que suportar era, em essência, um circuito fechado organizado ao nível do domicílio familiar. Diferentes comunidades passaram por lockdowns de diferentes intensidades a partir de março, mas nos casos mais extremos, não era permitido que as pessoas saíssem de seus apartamentos. Os alimentos chegavam por canais governamentais, as chamadas “compras em grupo” (ou seja, membros de uma única comunidade que compravam grandes quantidades de produtos) ou serviços de entrega online que estavam disponíveis de forma intermitente para aqueles que podiam pagar. A saída do circuito fechado domiciliar era rigorosamente policiada e exigia permissão oficial. Em alguns casos, funcionários zelosos literalmente construíram paredes em frente às portas dos apartamentos para controlar o movimento dos moradores. Os cidadãos urbanos, muitos deles ricos, enfrentaram escassez de alimentos e ansiedade, pois foram instruídos a continuar com seus empregos, cuidado de crianças e outras formas de trabalho enquanto viviam praticamente em prisão domiciliar.
Viver no trabalho e trabalhar em casa sobrepôs os espaços de produção e reprodução social, com efeitos deletérios. Mas muitos residentes pobres e da classe trabalhadora de Xangai não se encaixam em nenhum desses circuitos fechados. Eles vivem principalmente em habitações informais e trabalham em empregos informais. Muitos vivem em “aluguéis em grupo”, muitas vezes excedendo a ocupação legal, como forma de garantir moradia no mercado imobiliário exorbitantemente caro de Xangai. Outros residem em habitações autoconstruídas que não têm legitimidade legal. Essas populações, que residiam fora da competência do Estado, muitas vezes não recebiam distribuições adequadas de alimentos durante o lockdown, lhes restando comprar seus próprios alimentos enquanto enfrentavam o aumento dos preços. O desafio de comprar alimentos no mercado foi agravado pelo fato de que os trabalhos dessas pessoas — trabalhadores da construção civil, cozinheiros e garçons, trabalhadores domésticos e profissionais do sexo — foram fechados pelo lockdown, o que normalmente significava que tinham pouca ou nenhuma renda. A maioria desses trabalhadores também são migrantes rurais que foram para as cidades, sendo impedidos de deixar Xangai para voltar para suas cidades natais durante o lockdown. A consequência foi uma crise de subsistência iminente para vastas áreas da subclasse da megacidade.
Os lockdowns, uma política que preservou com sucesso a vida nos dois primeiros anos da pandemia, transformaram-se em intervenções que desconsideram as consequências mais amplas na sociedade e na saúde pública. A estratégia “zero COVID-19” não pode ser descartada de imediato, uma vez que a China tem baixas taxas de vacinação entre os seus idosos e instalações médicas e seguros de saúde lamentavelmente inadequados, particularmente para os trabalhadores migrantes. Permitir que o vírus se propagasse sem controle resultaria, na verdade, em mortes em massa. Mas a estratégia não considera as necessidades sociais da população, enquanto expõe os migrantes e outros trabalhadores informais a situações de extrema precariedade e crises de subsistência. O Estado perdeu a boa vontade de uma sociedade que sabe que essas medidas já não são para o bem público, pois as pessoas são solicitadas a continuar trabalhando para o capital no circuito fechado das suas casas, escritórios ou fábricas.
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Os protestos heroicos dos cidadãos de Xangai nos permitem, a partir de tais formas sombrias e totais de controle, traçar uma trajetória potencial de libertação social. Esse impulso foi sinalizado pela primeira vez por um motim que ocorreu em 5 de maio na Quanta Computer, um fornecedor da Apple. Embora os detalhes do evento ainda sejam confusos, sabemos que centenas de trabalhadores lutaram com guardas e ultrapassaram um posto de controle fora da fábrica. Alguns relatos afirmavam que os trabalhadores estavam fartos das medidas rigorosas de prevenção do vírus e tinham sido informados de que não poderiam regressar aos dormitórios. Outros mencionavam que eles queriam sair para poder comprar as suas próprias provisões, talvez insatisfeitos com o que lhes tinha sido entregue na fábrica. Mais tarde, em maio, houve outro confronto violento quando um grupo de trabalhadores acusou os gerentes dos dormitórios em uma disputa salarial. Semanas de vida no trabalho levaram os trabalhadores a um extremo. Eles precisavam escapar do circuito.
A resistência aberta dos trabalhadores de colarinho branco que estavam em esquemas de trabalho em casa foi mais silenciosa, uma vez que a possibilidade de ação coletiva pública foi excluída pelo lockdown. Ainda assim, surgiram inúmeras formas de resistência. Lamentar e cantar em prédios altos de apartamento foi uma maneira dos moradores se solidarizarem coletivamente, embora alguns tenham se deparado posteriormente com drones voadores ordenando-os a “controlar o desejo de sua alma por liberdade”. Um vídeo chocante relatando os principais eventos do lockdown em abril com curtas vinhetas de áudio capturou a imaginação de milhões, que o repostaram com tanta frequência que superou temporariamente o poderoso aparato de censura da China. Apareceram inúmeros vídeos curtos de pessoas em suas casas e na frente de seus apartamentos recusando os mandatos de morte social dos arrogantes Grandes Brancos, incluindo, é claro, a heroína de noventa e cinco anos.
Aqueles fora dos circuitos fechados também tinham suas demandas e formas de resistência. Os arredores de Xangai testemunharam distúrbios por comida, já que muitos trabalhadores migrantes sem trabalho situados em moradias informais passaram semanas sem renda ou acesso às entregas de suprimentos fornecidas pelo governo. Em pelo menos um caso, as pessoas confiscaram a carga de um caminhão de vegetais, jogando o conteúdo livremente para a multidão reunida.
Embora as lutas pela sobrevivência biológica e social sejam naturalmente moldadas pelas particularidades do lockdown, há um fio coerente que as conecta às ações pré-COVID-19 protagonizadas por migrantes marginalizados: a demanda pela relativa proximidade entre os espaços de vida e de trabalho. Antes da COVID-19, os migrantes rurais tinham vindo à cidade à procura de trabalho assalariado como meio de sobrevivência, pois simplesmente não conseguiam satisfazer as suas necessidades permanecendo nas fazendas. Mas, dado o regime de cidadania subnacional da China, os esforços para realocar a reprodução social para a cidade enfrentaram constantes obstáculos e expulsões. As comunidades migrantes esforçaram-se então por construir um mundo social, incluindo escolas e habitações, relativamente próximo dos seus espaços de trabalho. O lockdown de Xangai representa o inverso espacial, enquanto expressa a mesma lógica política. Em vez de separar os espaços de trabalho e de vida, o circuito fechado colapsa os dois, de modo que todos os processos de reprodução devem acontecer dentro do local de trabalho. A proximidade relativa entre trabalho e vida significa que os dois não devem estar dentro dos mesmos limites. O circuito fechado separa os trabalhadores de qualquer vida social significativa e os reduz à simples força de trabalho. Mas os trabalhadores resistiram a esse esforço para impor o controle ditatorial sobre o movimento corporal enquanto lhes é exigido produtividade para o capital. As pessoas não seriam mantidas vivas apenas como força de trabalho viva para o patrão.
O exemplo mais dramático de resistência coletiva ao circuito fechado eclodiu no outono. Nos meses após o desastre de Xangai, lockdowns esporádicos em resposta aos surtos de COVID-19 continuaram em cidades como Pequim, Chengdu e Shenzhen. À medida que os danos à economia começaram a pesar, espalhou-se a esperança de que o governo pudesse considerar um novo caminho a seguir. Circularam rumores de que, após assegurar um terceiro mandato sem precedentes como líder da China no Vigésimo Congresso do Partido em outubro, Xi se sentiria confiante o suficiente para traçar um curso diferente para o controle da pandemia. Esses rumores logo se revelaram ilusórios, pois o Congresso viu Xi enfatizar novamente o compromisso inabalável com a política de zero COVID-19.
Talvez mesmo antes da conclusão do Congresso, o vírus começara a circular na metrópole de Zhengzhou. A capital provincial de Henan abriga a maior montadora de iPhones do mundo, com mais de 200.000 trabalhadores na instalação de propriedade da Foxconn. Essa fábrica é imensamente importante para a economia regional, já que os seus produtos representam 60% das exportações de toda a província. Após surtos na cidade e, em seguida, dentro da própria fábrica, a Foxconn implementou o circuito fechado e os trabalhadores foram impedidos de sair da planta. Assim como em Xangai, o governo e os patrões não podiam permitir que esse elo crítico na rede de produção da empresa mais valiosa do mundo vacilasse, mesmo quando a cidade caminhava em direção a um lockdown.
No entanto, a Foxconn hesitou, e começaram a surgir relatos de queixas graves dos trabalhadores. A empresa abriga a maioria dos trabalhadores em dormitórios dentro do complexo – o que é útil para vigilância mesmo em condições não-pandêmicas — e o controle sobre os movimentos dos trabalhadores tornou-se ainda mais esmagador no final de outubro. À medida que as infecções se espalhavam dentro da fábrica, os trabalhadores temiam, com razão, que a permanência dentro do circuito aumentaria a sua exposição a infecção. A quarentena no local foi pessimamente gerida, e as pessoas que adoeceram relataram que lhes foram negados cuidados adequados ou mesmo alimentos suficientes para comer. Os trabalhadores estavam ansiosos e com raiva e, tal como aconteceu na Quanta durante a primavera, eles correram contra as barricadas montadas nas saídas. Centenas, talvez até mesmo milhares de trabalhadores saltaram os muros e se espremeram entre as brechas na cerca para fugir para suas cidades natais. Devido aos controles regionais instalados durante a pandemia, não havia ônibus ou outras opções de transporte disponíveis, e os fugitivos da Foxconn tiveram que caminhar quilômetros ao longo de estradas e campos. Essa deserção em massa forçou a Foxconn a ceder e permitir que os trabalhadores saíssem e, em alguns casos, funcionários das cidades rurais de onde os trabalhadores vinham organizaram o transporte de ônibus.
Apanhados em meio ao fogo cruzado da logística just-in-time continuamente otimizada da Apple e da caprichosa demanda do Estado pela desmobilização quase total das pessoas, independentemente do custo humano, os trabalhadores simplesmente pularam a cerca e fugiram. Mais uma vez, vimos trabalhadores recusando o impulso distópico de fechar o circuito do movimento humano em meio à circulação acelerada de capital. Embora uma situação de empobrecimento geral provavelmente os aguardasse nas aldeias, no mínimo esses fugitivos haviam garantido sua dignidade e autonomia corporal.
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O regime de gestão populacional da China é único, tanto pela intensidade das suas práticas limítrofes internas quanto pelo fato de grande parte da população subjugada ser constituída por cidadãos nacionais da raça dominante. O estado chinês aperfeiçoou muitas de suas práticas em contextos coloniais mais racializados, como Xinjiang e Tibete — mas essas estratégias biopolíticas de controle estão sendo cada vez mais implantadas na metrópole. Em todos os casos, no entanto, vemos exigências irreprimíveis pelo direito ao movimento corporal, estabelecimento de uma comunidade duradoura e processos básicos de reprodução social, e pelo direito de existir como mais do que um mero trabalhador.
As lutas do povo chinês para situar vida e trabalho em locais relativamente próximos devem ser vistas no interior de um contexto global mais amplo de resistência aos regimes capitalistas de fronteira. Um grupo crescente de ativistas e estudiosos mostrou como as fronteiras funcionam como uma tecnologia de controle espacial para a manutenção de regimes de exploração e expropriação racializada. Controlar o movimento de certas pessoas serve para manter as relações globais de dominação. Os Estados Unidos e a UE exportaram controles de mobilidade ao delegarem as patrulhas fronteiriças a países do Sul Global, ao mesmo tempo que internalizaram a fronteira através de todo o tipo de policiamento, vigilância, encarceramento e programas formalizados de convite a trabalhadores migrantes temporários [guest worker programs]. Na melhor das hipóteses, a crescente demanda por acabar com as fronteiras baseia-se na convicção de que os seres humanos devem poder circular livremente e possuir os direitos políticos e sociais que lhes permitam florescer em qualquer espaço que ocupem. As aspirações e as lutas na China são parte integrante das demandas dos trabalhadores migrantes e das pessoas despossuídas em todo o mundo para abolir a lógica das fronteiras e escapar ao circuito fechado do capital.
ELI FRIEDMAN é Professor Associado e ocupa a cadeira de Trabalho Internacional e Comparado na Universidade de Cornell. Seu livro mais recente é The Urbanization of People: The Politics of Development, Labor Markets, and Schooling in the Chinese City. Traduzido do INGLÊS por Marco Túlio Vieira. As imagens que ilustram o artigo são de Nuno Alberto.