Por Raquel de Azevedo
A anedota a respeito do período que liga os populistas russos aos bolcheviques é que as duas grandes perguntas russas são: a quem culpar e o que fazer. A primeira é o título de um romance de Alexander Herzen, a quem Lênin atribui o notável feito de ter erguido a bandeira da revolução na Rússia tzarista. A combinação das perguntas de Herzen e Lênin constitui uma boa definição de análise de conjuntura e, mais precisamente, de análise econômica. Minha hipótese é que os esforços da equipe econômica de Lula nos primeiros seis meses de governo, em particular em relação à aprovação do Novo Arcabouço Fiscal e à modificação da política de paridade internacional de preços do petróleo, indicam uma avaliação ruim a respeito de quem é a culpa e, consequentemente, uma atuação frustrante.
De Fernando Haddad a Simone Tebet, a defesa do novo regime fiscal que substituirá o Teto de Gastos de Michel Temer se orienta pelas garantias de cumprimento das metas de resultado primário que reduzam o ritmo de crescimento do endividamento e criem as condições para a redução da taxa de juros na economia brasileira. Por sua vez, o fim da política de preços dos combustíveis iniciada quando Pedro Parente assume a presidência da Petrobras em 2016 se destina, em grande medida, a conter a inflação e igualmente pressionar o Banco Central a reduzir a taxa de juros. Não se trata de discordar da necessidade de uma reorientação da política monetária na economia brasileira, mas de notar que o diagnóstico da crise brasileira talvez seja outro. A partir da análise de uma amostra das principais empresas listadas no Ibovespa, o economista Leonardo Segura Moraes e eu identificamos que o auge da crise da economia brasileira na década passada se deu nos anos de 2014 e 2015, quando a taxa de lucro se reduz aos níveis mais baixos do período. A partir de 2016, a economia brasileira se caracteriza por uma recuperação crescente da taxa de lucro, porém, sem crescimento. A amostra de empresas listadas no Ibovespa que compõe o setor de produção de meios de produção e mais particularmente aquelas vinculadas à produção de energia e à atividade mineradora, como Petrobras, Eletrobras e Vale, não voltam a ampliar os investimentos produtivos. A Petrobras estabelece inclusive um programa oficial de desinvestimento. É possível identificar esse fenômeno da recuperação da lucratividade com ausência de crescimento através da persistência, desde o auge da crise em 2014 e 2015, de uma desproporção entre os setores de produção de meios de produção e de produção de meios de consumo.
Como é possível conceber recuperação de lucratividade sem crescimento? Ora, identificamos um aumento significativo da taxa de exploração entre 2016 e 2021, o que exige que recordemos que além do Teto de Gastos, Temer também foi responsável pela Reforma Trabalhista. Exige também que recordemos que o papel estratégico da Petrobras na economia brasileira não se resume a ser ferramenta de redução da inflação. Desde a criação da empresa em 1953, os preços dos derivados do petróleo só apresentaram um caráter nacional, isto é, só refletiram custos de produção domésticos, quando foram acompanhados de esforços de ampliação, em território nacional, do setor de refino, produção e exploração. É claro que a criação de um fundo de estabilização para financiar as oscilações dos preços no mercado internacional do petróleo também poderia cumprir, ainda que de maneira precária, essa tarefa de, como disse o próprio Lula, abrasileirar os preços dos combustíveis. A questão é que o peso da Petrobras na economia brasileira é inequivocamente maior, especialmente no que diz respeito ao enganche de seus gastos nos demais setores e ao papel que a empresa cumpriu historicamente como ferramenta de política anticíclica. O que ainda queremos da Petrobras além da redução da inflação?
É difícil conceber um programa de transição energética na economia brasileira que não seja guiado pela Petrobras, especialmente considerando seu efeito multiplicador nos demais setores e a possibilidade de atuação anticíclica da empresa. Poderíamos pensar o aspecto contraditório desse uso estratégico da Petrobras através daquilo que Matteo Mandarini e Alberto Toscano denominaram de “planejamento para o conflito”. Originalmente, os autores criaram o conceito para designar o tipo de planificação econômica inaugurada pela Nova Política Econômica (NEP), formulada em 1921 pela União Soviética. Por se tratar de um sistema misto, afirmam Mandarini e Toscano, que permitia a existência da propriedade privada desde que sob o controle do Estado, o resultado não era a neutralização das relações antagônicas da sociedade, mas a possibilidade de dar-lhes uma retaguarda institucional. Assim como a noção de “planejamento para o conflito” ajuda a caracterizar as várias etapas do desenvolvimentismo brasileiro (de 1930 até o fim da década de 1970), o conceito é válido para pensar o conjunto de efeitos, na economia brasileira, das mudanças no regime climático. A diferença é que, neste segundo caso, a necessidade de acomodação de conflitos já não viria de uma condição de atraso — corolário da modernidade — que se expressa nos limites da industrialização na periferia. Em um contexto em que, além da condição periférica, é preciso considerar os efeitos das mudanças climáticas, planejar para o conflito significa ser capaz de operar, por exemplo, sobre os desequilíbrios intersetoriais provocados pelas quebras de safra agravadas pela redução na cobertura florestal no norte e no centro-sul do país. Isso significa que a inflação pode, de fato, se tornar um problema. Mas ela virá de outra parte.
Não há como conceber transição (não só energética) sem uma retomada do controle da Petrobras. Insisto, não só dos preços, mas do controle. O diagnóstico de que o problema da economia brasileira é a taxa de juros só tem reforçado a incapacidade de atuação do Estado, o que não parece ser uma boa aposta nessa quadra histórica.
As artes que ilustram o texto são da autoria de Shirin Neshat (1957-).