Por Jan Cenek

VISÃO 2011

I
casal de velhos saltando
de mãos dadas
da ponte de safena
(os corpos boiando
de mãos dadas
no mar de rosa)

II
santa na igreja
com fio dental
e pentelhos de fora

III
jovem nu
na fila da hóstia
com piercing no rabo
(abaixo as rimas fáceis)

IV
cachorro de rua
se esfregando
na estátua depilada

V
contadores anarquistas
trepando com livros contábeis
no escritório subterrâneo

VI
homem se masturbando
com alicate
na ceia de natal

VII
a brisa lambendo
o clitóris da manhã

CHOVIA MERDA NO MEU CORAÇÃO

bebê corre com fone de ouvido
na praça de alimentação do shopping popular da avenida Aricanduva
a mãe compra a prazo
o pai secretamente deseja as formas ecléticas do manequim inanimado

pastor flerta pelo aplicativo de relacionamento
estudante aprende inglês no site de pornografia
propaganda customizada anuncia ereções absolutas

garotas lacram as vaginas
com linha de pesca
à espera do homão da porra

garotos se masturbam coletivamente
e ejaculam álcool gel
na plateia do programa de auditório

poetas babosos negociam suas poesias-mercadoria em saraus-leilão
prótese de silicone salva patricinha de bala perdida na marginal do Tietê
mercado de pintos postiços supera o de perucas
startups planejam lucrar com a venda de vibradores para senhoras católicas

roqueiros tatuados com borboletinhas e pombinhas da paz
furúnculo no cu peludo de um deus careca

antropofagia neoliberal
hambúrguer de carne proletária
servido nas corretoras de valor da avenida Faria Lima

governo do estado de São Paulo cede o pico do Jaraguá às forças armadas estadunidenses
para lançamento de foguetes nucleares caralhudos

supremo tribunal federal aguarda resultado de pesquisa de opinião
para decidir se sonho erótico é crime
ministério da justiça lança consulta pública
sobre a legalidade do sexo oral

tropa de choque da PM garante a segurança e empresta cassetetes
para a suruba semanal da grande burguesia
na casa de cristais flutuantes
sobre as águas paradas do rio Pinheiros

as cinzas reagrupadas do poeta Roberto Piva sapateiam na Praça da República
com Parkinson
com raiva
e com razão

Nota

Roberto Piva (1937 – 2010) foi um poeta paulistano. Não foi exatamente um poeta da cidade. Foi um poeta na cidade. Que é como ele se definiu. Percorria São Paulo caminhando. São Paulo se espalha na poesia dele. Além da cidade, outros poetas e filósofos estão presentes nos poemas de Roberto Piva: Nietzsche, Heidegger, Dante, Artaud, Trakl, Crevel, Pasolini, Sade, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Piva foi grande leitor. Há rastros e vestígios de leituras do poeta na poesia e nos textos que escreveu. Nos dois poemas acima tentei orbitar a poesia de Piva. Visão 2011 para Visão 1961. Chovia merda no meu coração para Chovia merda do teu coração e Chovia no teu coração de merda. Poetas babosos e foguetes nucleares caralhudos estão no poema manifesto O século XXI me dará razão. Enfim, a melhor definição da poesia de Piva é do próprio Piva: “minha poesia sempre consistiu num verdadeiro ATO SEXUAL, isto é, numa agressão cujo propósito e a mais íntima das uniões.”

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