A grande transformação de Junho?

Por Militante na neblina

 

O texto a seguir foi apresentado na mesa “O que ler para entender junho?”, que fez parte do programa de debates sobre os 10 anos de junho de 2013. O evento ocorreu na Casa do Povo no dia 24 de junho de 2023.

Ao longo do último mês, muito se discutiu sobre os “legados de junho de 2013”. Inúmeras mesas, seminários e discussões se voltaram às consequências políticas de junho, seja no sentido de apontar o esgarçamento do pacto de 1988, para a formação de uma nova geração de militantes e para uma reanimação dos interesses pela “política”, ou mesmo no sentido de apontar que junho abriu uma fissura hoje ocupada pelo bolsonarismo. Tudo isso foi discutido das mais diversas formas, inclusive para denunciar os perigos de se ir para as ruas sob um governo de esquerda ou coisa do tipo.

De qualquer maneira, o tom geral dessas celebrações é “como tudo mudou depois de junho” — e o problema é que, assim, a discussão que se coloca segue os termos do argumento, sobretudo petista, do “ovo da serpente”. De um lado, tem um pessoal lunático dizendo que junho produziu o fascismo no Brasil, e trouxe transformações nefastas que resultaram no golpe contra a Dilma, na eleição do Bolsonaro, e por aí vai. De outro, para defender o legado de junho — o que de fato é necessário e legítimo — tem um pessoal enfatizando como junho trouxe transformações positivas para a política de esquerda: junho abriu uma onda de ocupações urbanas em São Paulo; junho levou ao limite o ciclo com o maior número de greves da nossa História; junho levou para a rua uma juventude que antes estava anestesiada pelos anos de conciliação petista, etc. E isso é verdade.

Mas para pensar no que junho deixou para nós, ou no que ainda resta de junho, parece fundamental pensar naquilo que junho não resolveu; naquilo que junho não transformou. Ou seja, naquilo que junho nos fez vislumbrar, naquilo que pareceu possível no momento da insurreição, mas que se perdeu por aí e hoje aparece sob as formas mais estranhas. Quando a insurreição acaba, e todo mundo volta para o trabalho e para a normalidade da exploração, parece que nada mudou. O chefe continua enchendo o saco, o transporte continua uma bosta, trabalhar continua sendo uma merda, e se bobear vai ficando cada vez pior. É aqui que temos que procurar junho, porque é aqui que junho foi gestado e porque é aqui que a revolta e as lutas ainda estão se gestando. Se nós acreditamos e defendemos que junho não acabou, e que a potência de junho podia muito mais do que derrubar a tarifa, nós temos que procurar entender como a revolta irrompeu, e pode voltar a irromper, do cotidiano de exploração que a gente sabe que continua aí, firme e forte.

A grande transformação de junho?

 

Então é com esse tipo de inquietação que nós pensamos a atividade militante nos últimos anos. Bom: junho aconteceu. Lá, foi possível vislumbrar um monte de coisa. Mas a normalidade aparentemente voltou. A conciliação dos governos petistas se esgarçou. A esquerda assumiu o posto de bastião da ordem democrática, tentando remendar os cacos de 1988. E uns caras começaram a aparecer ali, na extrema-direita, dizendo que vão destruir tudo que está aí.

E a luta de classes onde está? Onde está a revolta? Onde ela pode irromper?

São esses os problemas que tentamos investigar na nossa militância, e que orientam algumas reflexões reunidas no livro Incêndio.

E o cenário não é fácil. Porque o que a gente vem percebendo é que quem tem conseguido dialogar e se apropriar daquele sentimento de transformação total, aquela destruição de todas as estruturas, aquela disposição de ir para o tudo ou nada, o grito de foda-se que marcou aquelas semanas de junho, mas que não se realizou, é a extrema-direita. Hoje, quem consegue falar em revolução, em destruir tudo que está aí, é a direita, e de uma forma absolutamente distópica. Então de alguma maneira é essa a confusão que temos que encarar. O espírito de junho, ou, mais amplamente ainda, o espírito insurrecional que marcou o ciclo de global de revoltas inaugurado em 2008, está presente também ali onde um bolsonarista bota fogo no próprio corpo em um protesto contra o Alexandre de Moraes. Lembremos que a Primavera Árabe começou lá na Tunísia com um ambulante colocando fogo no próprio corpo.

A grande transformação de junho?

 

Claro que não é a mesma coisa, mas é um tipo de disposição de quem não aguenta mais, que tem a ver com o que aconteceu em junho, e que tem a ver com a continuidade e com o aprofundamento da exploração. Obviamente que não devemos todos nos autoimolar. Mas talvez seja a disposição de dizer que não dá mais que a gente precise rastrear. Que não dá mais para ficar se ferrando todo dia no trabalho; que não dá mais para ter que se desdobrar para arranjar uma grana, para então se virar mais um pouco para aí, talvez, arranjar um ganha-pão; que não dá mais para ficar se fodendo no transporte, e ainda pagar para se foder.

Foi quando os entregadores de aplicativo disseram que não dava mais para ganhar uma miséria para trabalhar o dia inteiro correndo risco de morrer atropelado que o Breque dos Apps virou uma possibilidade; foi quando os estudantes disseram que não dava mais para se foder na mão do Alckmin que as ocupações de escola tomaram São Paulo; e foi também quando os caminhoneiros disseram que não dá mais para rodar na estrada dia e noite, longe da família, com fretes cada vez menores que a circulação de mercadorias foi interrompida no Brasil.

Às vezes a revolta aparece sob formas que nos interessam claramente; às vezes aparece sob formas ambíguas, confusas, como na greve dos caminhoneiros; e às vezes aparece sob formas completamente destrutivas, que talvez não nos interessem tanto, mas que certamente nos dizem alguma coisa sobre o fim de linha em que a gente se encontra.

Ao mesmo tempo, tem um outro problema que junho nos colocou, e para o qual ainda não temos respostas: o que fazer quando a revolta irrompe? No mundo inteiro pipocaram insurreições, que por vezes foram “vitoriosas” — com a derrubada da tarifa, ou a derrubada do governo, etc. —, e por vezes não. Em todo caso, sobra o sentimento de que era possível fazer mais. Ou de que a coisa desandou. Ou de que uma potência se perdeu. Ou de que era melhor não ter feito nada porque o que sobrou foi uma guerra civil. E ainda assim essas revoltas continuam sendo os grandes momentos em que é possível imaginar a revolução. Que revolução, e como, ninguém sabe. E é isso que a gente tem que caçar.

A coisa é confusa, o cenário é tenso, e não temos respostas. Mas o fato é que tem um monte de gente por aí chegando no limite, e querendo dizer que simplesmente não dá mais. Eis o legado de junho que deveríamos buscar, com todos os seus dilemas, suas dúvidas e contradições.

A grande transformação de junho?

As artes que ilustram o texto são da autoria de Rene Magritte (1898-1967).

3 COMENTÁRIOS

  1. Ainda que o espírito do texto seja interessante, por aquilo que ele recusa, há um problema de fundo.
    Quem escreve o texto parece ver no desespero o maior motor da insurreicao. E talvez o seja. Em todo caso, que tipo de revolucoes ocorrem movidas pelo desespero?
    Me pergunto se essa forma de expor as coisas nao estaria escondendo o fato de que estes momentos sao efetivamente aproveitados por militantes (de esquerda ou de direita). E a questao que surge entao é se tentamos transformar o desespero em outra coisa, ou se a estrategia se baseia em difundir e generalizar o sentimento de desespero pela sociedade.
    Vou somar apenas um jogo com as imagens que esta militancia escolheu. Quando estamos na estrada rodeados pela neblina… abaixamos a velocidade, ou vamos para a faixa da esquerda seguir de perto um carro que passa a toda velocidade ao nosso lado?

  2. Acho que o texto/ a intervenção tem o valor de nos lembrar que as causas que levaram a Junho (e à potência de Junho) estão aí, atuantes: a exploração do trabalho e as formas de opressão. Que a mobilização para a luta social pode até vez ou outra ser assimilada para a direita e a favor da manutenção da exploração capitalista, mas que isso não deve nunca nos levar a temer a mobilização, pois a insatisfação (e o desespero) são justos e pedem respostas práticas. Face a isso, o texto traz um programa: monitorar as tretas, fomentar e somar naquelas com potencialidade de radicalização.

  3. O que o texto deixou de encarar é o dilema que vem de antes,e que junho escancarou: Qual Organização é necessária quando as Revoltas irrompem, sobretudo fora da coordenadas da esquerda institucional/eleitoral e afins,de que tecido as revoltas necessitam para criar seu próprio continum?

    Se junho deixou a revolta entre o barranco e a canoa, portanto,com as lutas tendo as pernas esticadas muito além da própria capacidade de manter-se, é porque a Questão da Organização segue sem respostas.

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