Por Thiago Canettieri

Chico de Oliveira, em 2003, publicou seu ensaio “O ornitorrinco”. O texto saiu juntamente com uma reedição do clássico “Crítica da Razão Dualista”, que o autor publicou em 1972. De uma certa maneira, Chico atualizou sua leitura da formação nacional. O que ele descrevia em plena ditadura assumia novas formas com a promessa emplacada pelo primeiro governo de Lula, iniciado, também, em 2003. “O ornitorrinco” não é um ensaio qualquer: trata-se de uma interpretação sobre o Brasil, na qual soma-se um diagnóstico de época e um sonoro rompimento com o otimismo do petismo e os “direitos do antivalor” que se anunciava. Rapidamente o ensaio se tornou um clássico – uma importante chave interpretativa para se compreender o Brasil contemporâneo [1].

A meu ver, a questão central do ensaio é aquilo que Chico chamou de “Revolução Molecular-Digital”. Essa revolução chegou aos países periféricos-dependentes-colonizados com força sem alterar as desigualdades históricas, confirmando seu diagnóstico de 1972 quando escreveu que, por aqui, existia uma espécie de simbiose entre o arcaico e o moderno – se se quiser manter a nomenclatura, afinal, esta combinação indicava exatamente o sentido da modernização capitalista em países periféricos. Chico, em 2003, percebia que o desenvolvimento técnico-científico das forças produtivas num país como o Brasil abolia a forma molar da exploração industrial e garantiu sua dispersão molecular numa miríade de atividades mal-remuneradas e sub-empregadas e informais.

De forma quase premonitória, Chico afirmava em 2003 que com isso “os trabalhadores foram transformados numa soma indeterminada de exército da ativa e da reserva, que se intercambiam não nos ciclos de negócios, mas diariamente” [2]. Mudam de uma posição à outra não nos ciclos de negócios ou nos momentos de crise, mas durante a jornada diária de trabalho. Afinal, prossegue o autor, “a tendência moderna do capital” – já descrita por Marx e, desde então, cada vez mais desenvolvida – “é a de suprimir o adiantamento de capital: o pagamento dos trabalhadores não será um adiantamento do capital, mas dependerá dos resultados das vendas dos produtos-mercadorias” [3]. Qualquer semelhança com o trabalho plataformizado de entregadores e motoristas de aplicativo (entre tantos outros) não é mera coincidência. O app é um exemplo muito concreto desta “revolução molecular-digital” que alterou substancialmente a dinâmica social aprofundando desigualdades e dinâmicas de exploração e espoliação.

Chico de Oliveira, de maneira muito acertada, pensa sobre como as formas do trabalho na periferia do capitalismo, ou, mais especificamente, no ornitorrinco brasileiro, estariam se conformando como uma fusão da mais-valia absoluta e relativa. Segundo o autor: “na forma absoluta, o trabalho informal não produz mais do que uma reposição constante, por produto, do que seria o salário; e o capital usa o trabalhador somente quando necessita dele; na forma relativa, é o avanço da produtividade do trabalho nos setores hard da acumulação molecular digital que permite a utilização do trabalho informal”.

É nesse sentido que Chico apresenta a noção de um “trabalho sem forma”, se opondo, mesmo que não explicitamente, a um “trabalho com forma”. Enquanto este seria a expressão ideal de uma certa organização da mediação social historicamente determinada, com um certo ordenamento claro dos critérios desta socialização – salário, regulação pelo mercado, cidadania laboral -; aquela indica uma mediação social que ocorre fora destes critérios ou, se preferirmos, uma mediação social negativa – isto é, a constituição desta categoria se expressa negativamente, manifestando seu contrário: informalidade, precariedade, regulação por instituições violentas, ausência de cidadania, entre outros.

Pareceria extemporâneo alguém afirmar isso em 2003, afinal, um operário industrial acabava de sentar na cadeira de Presidente da República. Não foi por menos que Chico foi muito criticado – isso é pessimismo. Mas como diria Saramago: não se trata de pessimismo, o mundo que é uma merda.

Muito rapidamente, a tese do ensaio de Chico foi se mostrando mais extensa do que normalmente se supôs. Lula em seu primeiro governo e depois durante o governo de sua reeleição logrou produzir instâncias participativas e formas de inclusão cidadã no país – mas estas já ocorriam não mais sob o signo do “trabalho com forma”.

Nesse período, apesar da histórica formalização do emprego e da baixa recorde na taxa de desemprego (4,6% em dezembro de 2012), olhar somente para esses dados nos faz perceber erroneamente a questão. É preciso qualificá-los. Quase 95% dos novos empregos criados na primeira década do século XXI não ultrapassaram 1,5 salário-mínimo. Em 2014, quase a totalidade dos novos postos de trabalho estavam nessa faixa de renda. Nessa mesma década, a taxa de rotatividade do trabalho aumentou cerca de 10%, em especial entre aqueles que ganham menos. Em 2009, entre os trabalhadores que recebiam até 1,5 salário-mínimo, essa taxa foi de 86%, um aumento de 42% em comparação com 1999. Além disso, entre 1996 e 2010, aumentou a taxa de terceirização do trabalho em uma média de 14% ao ano. A maior parte desses empregos foi gerada no setor de serviços, especialmente aqueles mais precários. Também nesse período se observou o aumento de acidentes de trabalho e de formas de adoecimento derivadas da atividade laboral. Consolidou-se, assim, o processo de degradação do trabalho [4]. Assim, mesmo com o boom de criação de empregos, a classe trabalhadora vacilava entre o improvável acesso ao emprego formal estável e a inevitável viração cotidiana.

Este processo, desde então, não cessou de se aprofundar, afinal, diz respeito a uma dinâmica interna do próprio capitalismo. Em sua ânsia por mais acumular, o capital dissolve suas próprias formas de mediação social constituídas historicamente. Assim, o trabalho entra em um processo irreversível de erosão [5].

Seja como for, um de seus efeitos foi a dissolução da identidade política e de reconhecimento baseada no trabalho. Esta foi constituída muito solidamente ao longo do século XX, mas, mesmo assim, se desmanchou no ar. Como notou o Grupo de Militantes na Neblina, analogamente à estrutura social de um “trabalho sem forma” se produziu uma “luta de classe sem forma”.

A política foi convertida pelo Partido dos Trabalhadores em um instrumento de gestão. O projeto de cidadania, reduzido a acesso ao consumo, só foi possível financiado pela economia extrativa violenta e alavancado por capital fictício.

Vale lembrar que Paulo Arantes já havia decifrado está esfinge ainda em seu nascedouro. Enquanto muitos viam uma promessa de “refundação nacional” baseada no pacto lulista – expectativa compartilhada de setores da esquerda institucional com a revista liberal The Economist, e, por que não, com Barak Obama, entre outros – Paulo dava a letra: “Ao prometer consumo, prometem guerra civil”. Uma entrevista de junho de 2003 [6]. Vendo a coisa vinte anos depois, parece premonição, mas não é bola de cristal – e sim uma boa análise de conjuntura. Muitos achavam que era apenas um prazer sádico de jogar creolina no chantilly alheio, mas parece que o diagnóstico estava mais acertado do que se gostaria.

A degradação do trabalho com forma decorrente deste processo é, também, a degradação de uma política de transformação social – sobretudo enquanto esta insiste anacronicamente a se vincular a forma social caduca do trabalho. Chico já apontava a perda da musculatura de iniciativas sociais capazes de fazer frente ao movimento cego do capital. Os movimentos, sindicatos, partidos de esquerda agora eram co-gestores da crise, sócios minoritários da administração do colapso nacional – até começarem a falhar.

De lá para cá a situação brasileira degringolou ainda mais – chegou a um “fim de linha”. Em 2018 aconteceu a eleição de Jair Messias Bolsonaro e muitos foram pegos com a calça na mão. Como isso seria possível? Bom, a chave d’O ornitorrinco ajuda a destrancar, também, este calabouço, eu acho.

Paulo Arantes, num texto comentando exatamente a atualidade do ensaio de Chico, escreve:

Nossa primeira tarefa para levar essa investigação a cabo começaria pela morfologia, pela anatomia dessa nova reencarnação do Ornitorrinco: onde está a patinha dele espalmada, onde está o bico de pato, onde está o rabo de pato, onde está o ferrão do macho, tudo aquilo que é descrito na epígrafe do Chico. Onde é que eles estão? Teremos assim uma fusão patológica ou teratológica de um bico militar, uma patinha miliciana, uma mama teocrática da qual escorre leite e os filhotes são alimentados, e um ventre dilatado que é o fisiologismo, chamado “centrão” – fisiologismo juntando com milícias, militares, teocracia e uma família reinante delinquente.

O que é esse monstro? Como ele foi gerado? Ora, ele foi gerado no ventre do Ornitorrinco: trata-se do Ornitorrinco 2.0, não há a menor dúvida. Chico diagnosticou isso. Ele só não imaginava que fosse possível que esse mecanismo de controle de populações pudesse sair do controle. Acontece que esse controle de populações é tão forte que ele se reconfigura. Por mais monstruosa que seja a configuração atual, ela é uma espécie de decalque demoníaco da forma anterior do Ornitorrinco.

Ao longo da pandemia de COVID-19, acompanhamos greves selvagens dos entregadores de aplicativo – essa expressão tão clara como o sol de meio-dia do chamado “trabalho sem forma”. Contudo, é importante notar, como faz o Grupo de Militantes na Neblina, que essas lutas nada acumulam.

Saídos da gestão de Bolsonaro, um governo petista parece um alívio. Quantos não se regozijam com os ares civilizados que agora sopram de Brasília? Isso, contudo, é uma ilusão. Não há solução a vista do ponto de vista social para essa catástrofe que não passe pela superação da forma social do valor que, mesmo decadente, se perpetua como critério superior da socialização. Nesse contexto, a massa de pessoas estropiadas, espoliadas, esfoladas continuará crescendo. Essa dinâmica continuará a erodir as bases das instituições desenvolvidas para e pela modernidade, dando lugar a uma dinâmica de circulação da violência. Ou seja, é bem provável que o processo social a que chamamos de bolsonarismo continuará a se aprofundar, independentemente do governo eleito. Os efeitos da crise continuarão a se acumular em uma pilha de destroços no horizonte. A dinâmica cega do capital continuará seu curso autodestrutivo, a dissolução do trabalho não será revertida simplesmente por atos de benevolência de quem veste a faixa presidencial no turno vigente.

Imaginar esse “Ornitorrinco 2.0” num governo “Lula 03”. Embora eu não tenha muitas ideias sobre isso, espero que este texto sirva para indicar a possibilidade desta chave de leitura ser ainda pertinente. As transformações do ornitorrinco apontam para o processo perene de erosão das formas sociais, algo que passa completamente fora da alçada de qualquer governo. Ainda mais quando um governo só pode prometer memórias de um passado recente – “make Brasil 2003 again”, como se o horizonte de expectativas ideal fosse retornar 20 anos. Contudo, já em 2003 as contradições de um país em fim de linha já estavam suficientemente expostas.

Notas

[1]  São várias as apropriações do ensaio de Chico para pensar o Brasil de hoje. Para citar apenas algumas: Isadora Guerreiro, colunista deste site é uma das herdeiras deste pensamento. O importante texto Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro utiliza “O ornitorrinco” como um instrumento interpretativo para fenômenos recentes. Ludmila Costhek Abílio lê o fenômeno da uberização a partir da mesma chave. Cibele Rizek interpreta as mutações da vida urbana pensando a partir do “O ornitorrinco”. Paulo Arantes, recentemente, em uma homenagem ao pensamento de Chico de Oliveira, pensou a transformação do Ornitorrinco em uma outra coisa (um monstro; um ornitorrinco 2.0).
[2] Francisco de Oliveira, Crítica da Razão Dualista – O Ornitorrinco (Boitempo, 2003, p.136).
[3] Idem.
[4] Estas informações estão compiladas nos livros de Márcio Pochmann, O mito da classe média: capitalismo e estrutura social (Boitempo, 2014); Ricardo Antunes, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (Boitempo, 2018); Ruy Braga, A rebeldia do precariaddo: trabalho e neoliberalismo no Sul Global (Boitempo, 2017). Contudo, apesar da crítica à gestão petista, as interpretações destes autores parecem indicar uma certa expectativa com a restituição do lugar político de um “trabalho com forma”, algo que, eu diria, seria improvável – para não dizer impossível.
[5] Esta é a tese da corrente teórica “crítica do valor”. Em outros textos (neste site e em outros lugares), eu tento aprofundar nessa direção.
[6] Vale conferir a entrevista completa, disponível aqui: https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u49895.shtml

3 COMENTÁRIOS

  1. De como o ornitorrinco se depara com a economia dos conflitos sociais #1

    Um dos pontos chaves em “O Ornitorrinco” é a referência a uma “nova classe social”:

    • 《 É isso que explica recentes convergências pragmáticas entre o PT e o PSDB, o aparente paradoxo de que o governo de Lula realiza o programa de FHC, radicalizando-o: não se trata de equívoco, nem de tomada de empréstimo de programa, mas de uma verdadeira nova classe social, que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e economistas doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT. A identidade dos dois casos reside no controle do acesso aos fundos públicos, no conhecimento do “mapa da mina”. 》

    • 《 […] seu “lugar na produção” é o controle do acesso ao fundo público, que não é o “lugar” da burguesia. Em termos gramscianos também a nova classe satisfaz as exigências teóricas: ela se forma exatamente num novo consenso sobre Estado e mercado sustentado pela formação universitária que recebeu, e por último é a luta de classes que faz a classe, vale dizer, seu movimento se dá na apropriação de parcelas importantes do fundo público, e sua especificidade se marca exatamente aqui; não se trata de apropriar os lucros do setor privado, mas de controlar o lugar onde se forma parte desse lucro, vale dizer, o fundo público. 》

    Em “Economia dos Conflitos Sociais” temos o conceito da classe capitalista dos gestores:

    • 《Defino a burguesia em função do funcionamento de cada unidade econômica enquanto unidade particularizada. Defino os gestores em função do funcionamento das unidades econômicas enquanto unidades em relação com o processo global. Ambas são classes capitalistas porque se apropriam da mais-valia e controlam e organizam os processos de trabalho. 》

    • 《A classe burguesa e a classe dos gestores distinguem-se: a) pelas funções que desempenham no modo de produção e, por conseguinte; b) pelas superestruturas jurídicas e ideológicas que lhes correspondem; c) pelas suas diferentes origens históricas; d) pelos seus diferentes desenvolvimentos históricos.》

    Em meio à atual neblina, e com a pilha de destroços se avolumando em direção ao céu, o presente artigo questiona:

    • 《O que é esse monstro? Como ele foi gerado? Ora, ele foi gerado no ventre do Ornitorrinco: trata-se do Ornitorrinco 2.0, não há a menor dúvida.》

    • 《Imaginar esse “Ornitorrinco 2.0” num governo “Lula 03”. 》

    Em 2003, Chico de Oliveira ironizava:

    《Olhando de outro ângulo, o ornitorrinco apresenta a peculiaridade de que os principais fundos de inversão e investimento são propriedades de trabalhadores. É o socialismo, exclamaria alguém que ressuscitasse das primeiras décadas do século XX. 》

    Já não há sequer lugar para ironia em 2023, pois o futuro do Capitalismo chegou. Para disto se certificar, basta navegar pela web e andar pelas ruas. E tanto numa quanto nas outras estamos aprisionados nos labirintos do fascismo contemporâneo.

  2. Deixo aqui umas e outras coisas sobre Francisco de Oliveira, e sobre certos aspectos mais conceituais do artigo.

    A tese dos “capitalistas de fundos de pensão” do Francisco de Oliveira, exposta em “O Ornitorrinco”, nem é tão original assim.

    Há, em primeiríssimo lugar, a bem conhecida referência ao “Economia dos Conflitos Sociais” do João Bernardo, que circulava em meios próximos ao CEBRAP e ao próprio Francisco de Oliveira desde 1991 pelo menos na edição da Cortez.

    Além dessa, em 1976 Peter Drucker já dizia a mesma coisa, rigorosamente a mesma coisa, sobre os fundos de pensão nos EUA num livrinho publicado no Brasil pela Atlas com o título “A Revolução Invisível” (“The Unseen Revolution: how pension fund socialism came to America” – https://libgen.rs/book/index.php?md5=C3FE8B0BA0179568DDD717B71517B8B6).

    As experiências brasileira e estadunidense têm origem em contextos históricos distintos, arranjos institucionais diferentes, mas conduzem a resultados muito parecidos: fundos previdenciários oriundos de trabalhadores servindo como base material para a ascensão econômica, social e predominantemente política de seus gestores enquanto classe social separada.

    Tenho minhas dúvidas se o Francisco de Oliveira teria realmente “passado reto” por essas duas referências básicas, publicadas no Brasil décadas antes de “O Ornitorrinco” e bem conhecidas tanto de cebrapianos quanto de gente próxima. Digo que “tenho dúvidas”, porque tenho certeza de que Francisco de Oliveira “passou reto” por outras referências semelhantes, ainda mais antigas e infelizmente sem publicação no Brasil, que nem vale a pena trazer ao debate.

    Aliás, nem a tese do “trabalho sem forma” é assim tão nova. Num livro mal-amanhado chamado “O Elo Perdido: classe e identidade de classe”, publicado pela Brasiliense em 1987 (https://libgen.rs/book/index.php?md5=7F6F59A8B40E95D072C6A1D8AAE768C7), Francisco de Oliveira chegou a conclusões muito parecidas, analisando uma formação social que só existiu na cabeça dele.

    Neste livro, cujo mau conteúdo foi produzido como parte de um projeto da UNESCO, Francisco de Oliveira quis tomar a classe trabalhadora na Bahia como uma espécie de “paradigma” do desenvolvimento das classes sociais em regiões de desenvolvimento industrial retardatário, mas tomou a Salvador do século XIX e início do século XX pela Bahia como um todo (mencionando aqui e ali outras regiões, desde que pela pena de Jorge Amado), tomou os “ricos” como motor do desenvolvimento (relegando à mais absoluta passividade tanto a multidão escravizada quanto quaisquer outras classes sociais do período) e não foi capaz de enxergar ali… nada.

    Para Francisco de Oliveira, não existia na Salvador dos séculos XIX e início do século XX senão “uma divisão social do trabalho pouco desenvolvida […] em retrocesso mesmo. Predominância do quê, na divisão social do trabalho em Salvador? Salvo as atividades diretamente ligadas ao setor capitalista, uma gota d’água no oceano, o resto da cidade vive de ‘expedientes’. É a circulação do excedente nas mãos da oligarquia financeira, e seus gastos suntuários, que alimenta a vida de ‘expedientes’. E, no limite, o suntuário e o ostentário utiilizam-se do vasto excedente de mão-de-obra para realçar o suntuário. Quem, na oligarquia financeira e nos seus agregados, gente do poder, funcionários de mais que meia-tigela, burocracia do capital e dos serviços, das escolas de medicina, direito e engenharia, não terá entre cinco e dez empregados domésticos? Menos que isso é sinal de pobreza… dos ricos” (p. 35).

    Mais ainda: a expressão ideológica das classes sociais daquele período na Bahia (ou Salvador, porque Francisco de Oliveira nunca se decide se está a falar de uma ou da outra) seria “síntese de uma divisão social do trabalho abortada, resultando dela uma sociedade onde a maior parte dos dominados na ciade do Salvador, são, rigorosamente, não-explorados: vivem às custas dos banquetes da oligarquia, que por sua vez se alimenta do excedente produzido no cacau, no tabaco.” (pp. 37-38)

    Pior: na Bahia sequer existiria a força de trabalho enquanto mercadoria, pois “se antes, no largo período impressionisticamente assinalado, a re-presentação se dissolve na impossibilidade de discriminar para chegar à globalidade – que não é pluralidade – da ‘baianidade’, é porque a mercadoria ‘força de trabalho’ não existe: na maior parte dos casos, o trabalho não se perfaz socialmente; mesmo quando se autoproduz, mesmo quando formas de auto-subsistência urbana se afirmam, o que existe é uma espécie de troca, materialmente fundada, por certo, até possível de quantificar-se – um balaio de peixes por dez acarajés – mas não se trata de igualdade.” (p. 39)

    “OK”, alguém dirá, “é o diagnóstico de uma formação social pré-capitalista”. Mas há dois problemas nisso:

    (1) Formações sociais pré-capitalistas são muitas, e a que vigia em volta das ilhas de capitalismo era o escravismo colonial; entretanto, a impressão que Francisco de Oliveira passa é a de inexistência de qualquer coisa antes do capitalismo.

    (2) Em 1983 o debate acadêmico sobre o escravismo colonial (e outras formações sociais pré-capitalistas na América Latina) estava avançado o suficiente para permitir a Francisco de Oliveira construir uma argumentação em torno da passagem do escravismo colonial para o capitalismo, reconhecendo alguma agência à multidão escravizada e àqueles cujo trabalho era explorado sob as formas mais “avançadas” e urbanas da escravização (como a escravidão de ganho, espécie de protoassalariamento em meio ao escravismo). Mas Francisco de Oliveira preferiu rejeitar qualquer agência social e política a esta multidão escravizada, e transmitiu esta mesma falta de agência aos trabalhadores (em sua maioria ex-escravos) das últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX. Colocou toda a vida social e econômica de milhões de sujeitos sob a forma do “favor” e do “expediente”, argumentando que se trata de um período “impressionisticamente assinalado”.

    Com estes problemas de base, não é de estranhar o recurso ao conceito de “trabalho sem forma” por Francisco de Oliveira e seus seguidores. Quando não está diante do trabalho industrial acompanhado por direitos sociais típicos do “welfare state”, mesmo capenga como o nosso, Francisco de Oliveira não sabe o que fazer. Recorre a figuras esquisitas: o “favor” e o “expediente”, naquela obra sociológica mais antiga; e o “trabalho sem forma”, em “O Ornitorrinco”. Neste último, aliás, ele descreve a forma do “trabalho sem forma”, mas segue dizendo que não há “forma” na forma descrita. Além de erro lógico (não existe forma sem conteúdo, mesmo quando a forma é o próprio conteúdo), isto demonstra severas limitações no aparato conceitual, que se tornou incapaz de descrever adequadamente a realidade. A realidade curto-circuitou aquilo que deveria se prestar a descrevê-la analítica e criticamente.

  3. Nem o trabalho é sem forma, nem as lutas são sem forma. E se “as lutas não acumulam”, mesmo com conteúdos tão realistas, talvez o problema e a explicação para a falta de acúmulo esteja justamente na forma.

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