Por Tiago Cordeiro
O ambiente virtual tem se tornado cada vez mais hostil nos últimos anos. A internet virou terra de ninguém, onde tornaram-se corriqueiros os ataques pessoais, promovidos de forma coletiva e articulada. Em algumas situações, chegam-se a resultados fatais, como o caso do boato que provocou a morte de Jéssica Canedo (do chamado Caso Choquei). Em outros episódios, grupos de interesses e partidos políticos atacam quem atrapalhe seus negócios ou interesses.
Ninguém está a salvo da prática de assassinato de reputações, incluindo intelectuais, jornalistas, influenciadores e qualquer um com voz ativa contra mazelas sociais e políticas. E isso tudo com a conivência da justiça que lentamente (ou raramente) reage diante destes fatos. Existe um descompasso entre a brutalidade das redes digitais e leis antigas, que já não dão conta da nova realidade social. Em caso recente, pesquisadores e ativistas culturais que promoveram estudos sobre a má aplicação de recursos públicos foram cancelados publicamente por agentes político-partidários, produtores e gestores culturais envolvidos em problemas na aplicação de verbas públicas de cultura.
No caso da Lei Aldir Blanc (LAB), criada para salvar trabalhadores do segmento cultural durante a pandemia, relatos de que as verbas assistenciais e emergenciais da cultura não chegaram na ponta vieram dos quatro cantos do Brasil. Com denúncias de que os recursos a LAB no Paraná não estavam chegando aos mais afetados pela crise provocada pela Covid-19, esperava-se que uma apuração realizada pela sociedade civil e pesquisadores ajudasse a melhorar a distribuição de recursos, unindo a classe afetada em busca de direitos.
No entanto, segundo o que pôde ser apurado, os autores do trabalho humanitário que visava o acolhimento aos mais necessitados viram-se diante de ataques pessoais, que segundo relatos e documentos, podem ter ocorrido com intenção de silenciar denúncias. Os atos de constrangimento foram se mostrando uma ação orquestrada que expôs fratura dentro do próprio campo político da esquerda. Seria um mal entendido? Segundo as fontes, se no início pareciam falhas de comunicação, cruzamentos de dados realizados posteriormente apontaram que não: grupos de interesses favorecidos muitas vezes em editais de cultura estavam por trás destes episódios. Agentes e gestores culturais usam da máquina sindical, político-partidária e governamental, contra representações setoriais, orgânicas e legítimas da cultura para tentar manter vantagens e abafar um caso complexo coberto na imprensa há 3 anos.
Os documentos elencados nesta reportagem, relacionados às denúncias da sociedade civil, foram obtidos através de dados sistematizados pelo GT de Direitos Humanos do Fórum de Cultura do Paraná. As vítimas entregaram em fevereiro de 2024 à Polícia Federal e ao Ministério Público Estadual do Paraná provas de dezenas de episódios, em mais de mil documentos com indícios de agressões e constrangimentos sofridos pelos denunciantes, com intenção de que se faça justiça ou, ao menos, que situações semelhantes não ocorram mais contra a sociedade civil no setor cultural. A reportagem selecionou alguns casos de cancelamentos ocorridos para exemplificar.
Antecedentes
Os casos de ataques contra denunciantes tiveram origem bem antes do contexto da Lei Aldir Blanc, começando aproximadamente no ano de 2005. Conselheiros e representantes setoriais de cultura, que não quiseram se identificar (a maioria das fontes pediu anonimato por receio de represálias) relataram que os membros dos casos citados nesta reportagem, também integraram vários movimentos e coletivos (fundados ou apropriados), como Faca (2013), Frente Acorda Cultura Curitiba (2015), Frente Única da Cultura – FUC (2018) e outros.
No ano de 2015, ocorreu um episódio em que lideranças do coletivo Frente Acorda Cultura Curitiba, como Ana Caldas (membro do jornal Brasil de Fato relacionado ao PT), João Paulo Mehl (atual coordenador do Comitê de Cultura do MinC no Paraná), Loa Campos (atual coordenadora do escritório do MinC no Paraná), Ulisses Galetto (que já foi secretário de cultura do PT de Curitiba), pediram direito de resposta ao Portal Vermelho, sobre um artigo publicado. Na ocasião, lançaram carta depreciativa contra seu autor, o pesquisador (e na época secretário de Cultura do PCdoB de Curitiba) Manoel J de Souza Neto, assinada de forma indevida em nome do Ministério da Cultura (MinC), como represália ao artigo, que revelava contradições na realização de um evento do Ministério da Cultura, que teria sido divulgado como atividade privada do coletivo Frente Acorda Cultura Curitiba.
Não foi a primeira vez que agentes da base de cultura utilizaram do Partido dos Trabalhadores de Curitiba para lançar carta de repúdio contra o pesquisador em sua página (depois retirando o conteúdo do ar). Segundo fontes, o episódio (em 2008) não ocorreu por ele ser opositor da agenda da esquerda ou ter feito algo contrário à classe trabalhadora. Mas por ter feito questionamentos junto ao Fórum Nacional de Música do fato de uma cadeira representativa do setor musical na comissão de cultura da Câmara dos Deputados ter sido uma indicação de partido e não do setor profissional. O conteúdo localizado revela, de um lado, ataques pessoais de grupo político-partidário e, de outro, a defesa dos interesses do setor da música.
Em um outro caso, do Movimento de Artistas Impedidos de Tocar nas Ruas de Curitiba (2019), grupos político-partidários agiram novamente contra o pesquisador, que naquela ocasião era emissário do Conselho Federal da Ordem dos Músicos do Brasil (CF-OMB) em defesa dos artistas que estavam sendo presos na cidade de Curitiba. Um ator circense (conforme áudio de testemunha recebido pela reportagem), teria recebido uma cesta básica do hoje vereador e dirigente do PT de Curitiba Angelo Vanhoni, para ficar do lado do partido e contra o pesquisador. O circense acabou por fazer uma ameaça com uma bomba falsa durante audiência na Câmara de Vereadores de Curitiba, causando transtorno em diversas pessoas presentes, que imaginavam se tratar de um explosivo real. Devido a algumas falas terem sido fora do microfone, o áudio completo do evento pode ser conferido aqui e aqui. Diante dos fatos, conclui-se que o Partido dos Trabalhadores de Curitiba acabou por retirar o direito dos artistas de rua na capital paranaense, cooperando com a gestão de direita do prefeito Rafael Greca (na época DEM, hoje PSD).
Em outro episódio, foi realizado um evento chamado Festival da Resistência (pela Casa da Resistência, comitê eleitoral da cultura do PT de Curitiba), em um espaço cultural de um proprietário notadamente de extrema-direita. O fato gerou críticas em uma lista chamada curiosamente de Bar da Esquerda Festiva. Um militante responsável pela segurança do comitê, Luis “Gringo”, lançou ameaças de agressão contra as críticas, dizendo que danificaria os dentes de Souza Neto, entre outros comentários semelhantes. As mesmas práticas, conforme observado, são recorrentes.
Ainda que muitas das iniciativas e movimentos culturais citados acima fossem legítimos, acabavam sendo desviados por apropriação de movimentos sociais com interesses financeiros ou político-eleitorais, que aplicavam medidas excessivas contra seus opositores. Isso acarretava conflitos e esvaziamento da causa social, levando ao desmonte de movimentos. Segundo o ex-membro de colegiado setorial do CNPC, o ilustrador Jyudah, ano após ano os mesmos indivíduos se reagrupavam sob coletivos com novos nomes, após repetirem as mesmas práticas prejudiciais às causas públicas e sociais. “É um pessoal partidarizado que está no espaço público de cultura há tempos. Os principais articuladores estavam nas jornadas de junho de 2013, mas há relatos de que alguns já atuavam bem antes. Depois foram vistos em diversos outros movimentos e coletivos até os dias de hoje. Não concordo com esse tipo de envolvimento político na cultura. É desejável que o campo da disputa cultural na cidade aconteça por artistas e não por militantes político-partidários”, questiona.
Conforme a documentação geral revela, existe um padrão de conflito e forma de tratamento distintos entre agentes político-partidários e representantes da cultura, em que:
Do lado dos blocos no poder se intensificam discursos de unidade e obediência partidária, e que do contrário acaba resultando em ataques políticos e pessoais para desacreditar ou afastar lideranças não alinhadas com o poder que criticavam a má aplicação dos recursos de editais. Não discutem entidades, leis, normas, orçamento, atos e consequências com as entidades por via institucional, impessoal e isenta. Mas, ao contrário, discutiam os indivíduos e até suas vidas pessoais, de forma depreciativa, para se desviar do foco do interesse público.
Do outro lado, da sociedade civil da cultura que não se submete aos gestores, partidos ou grupos de interesses, a postura não contempla ataques pessoais conforme pode ser lido na documentação localizada, sendo falas voltadas à cobrança da boa aplicação dos recursos públicos, controle social, aplicação de leis, e defesa da inclusão social, da diversidade cultural e cotas. Portanto, lutas por direitos e cidadania.
Na pandemia os recursos emergenciais não chegaram aos mais necessitados
Em março de 2020, com a chegada da pandemia de Covid-19, a classe artística paralisou atividades voluntariamente com intenção de evitar a propagação da doença. No entanto, a emergência sanitária mostrou-se longa e toda atividade não-essencial foi proibida. Sob pressão da classe e de parlamentares de oposição ao governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), foi promulgada a Lei Aldir Blanc (LAB), que disponibilizou recursos emergenciais para os fazedores de cultura impedidos de trabalhar.
No Paraná, apenas agentes político-partidários representando segmentos privilegiados, de classes dirigentes, especialmente do teatro, audiovisual e produção, residentes das áreas nobres da capital, foram chamados para discutir junto ao governo estadual e à prefeitura de Curitiba os rumos dos recursos de setores sociais e profissionais de todos os 399 municípios do estado.
Eles se articularam sob nomes como Rede Coragem, Fórum Emergências Culturais do Paraná, Rede Livre, Frente Movimento, TEM – Teatro em Movimento, SATED-PR, entre outros, que segundo fontes são formados por pessoas do mesmo círculo, que fazem parte da base de cultura do Partido dos Trabalhadores de Curitiba e do comitê Casa da Resistência. Coincidentemente ou não, são nomes que se repetem de forma recorrente entre os maiores vencedores de editais, segundo estudo acadêmico.
Inicialmente, a classe imaginou, diante de notícias na imprensa, que seria promovida uma lei assistencial que beneficiaria a todos que foram prejudicados. Mas a árdua disputa por normas inclusivas ou excludentes, ainda na fase da regulamentação, no Conselho Estadual de Cultura do Paraná (CONSEC), revelou que nem todos estavam no mesmo espírito humanista que a situação demandava.
No segundo semestre de 2020, o conselheiro estadual de cultura Leonardo Ferreschi criou o grupo de WhatsApp chamado Música e Músicos – PR, com a intenção de discutir a LAB e a cultura no contexto da pandemia. Porém, quando houve questionamentos sobre quem poderia participar das reuniões para formulação de editais, que ocorreram a portas fechadas, foram feitos ataques pessoais contra aqueles que questionaram e queriam uma formatação mais justa e transparente das regras. Posteriormente, se constatou que o grupo onde ocorreu o conflito era coordenado por pessoas que integravam as demais organizações políticas já citadas.
Injustiçados querem justiça
Ao ver que as regras favoreciam quem as fez, conselheiros estaduais de cultura e entidades e movimentos como a Ordem dos Músicos do Brasil (CF-OMB), SEPED-PR e o Fórum de Cultura do Paraná(FCP) passaram a cobrar mais lisura e transparência no processo da LAB. Como, por exemplo, em reunião na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) em julho de 2020 e uma Assembleia do FCP em fevereiro de 2021. Porém, sem levar em conta representações setoriais e territoriais, os mesmos grupos político-partidários e de gestores locais que discutiram as regras conseguiram impor suas vontades na regulamentação estadual da LAB. O mesmo aconteceu na esfera municipal da capital Curitiba. O CF-OMB chegou a lançar uma nota de repúdio, solicitando o fim da animosidade de partidos e movimentos que impediam a defesa da classe em diversas ocasiões.
A Rede Coragem, relacionada à Rede livre e Fora do Eixo (FdE), chegou a lançar uma carta com informações contraditórias e com intenção de causar dano ao pesquisador Manoel J. de Souza Neto, um dos emissários das entidades que estavam pedindo justa distribuição das verbas, para que pudessem alcançar o maior número possível de fazedores de cultura que perderam sua única fonte de renda com a pandemia.
Assim se proliferam os ataques contra aqueles que pediam transparência e equidade no uso dos recursos. Percebeu-se que havia nestas ações uma parceria entre o coletivo Rede Coragem, um agrupamento político-partidário, e a diretoria do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado do Paraná (Sated-PR), que assumiu a gestão ao final de 2020, com forte presença de integrantes da base de cultura do PT de Curitiba e alguns do PCdoB, além de aliados dos blocos no poder. O SATED-PR afirmou em resposta que agia em defesa de seus associados. Porém, demais segmentos criticaram em documentos o corporativismo que prejudicava outros setores. Testemunhas deste caso que foram consultadas frisaram que também são de esquerda e que seus partidos não fazem parte dessa situação, sendo ações de agentes específicos que deveriam responder isoladamente pelos seus atos.
Irregularidades aparecem e agentes envolvidos ficam coléricos
Com os resultados dos editais no fim de 2020, o dinheiro realmente não alcançou todos que precisavam e as irregularidades foram aparecendo. A primeira a ser notada foi a de servidores públicos entre os premiados, o que seria vedado por lei e confirmado em auditorias do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) e da Controladoria-Geral da União (CGU) por ser uma verba assistencial.
Entre eles estava a liderança histórica da base de cultura do PT de Curitiba, o músico e técnico de som Ulisses Galetto, identificado como aliado das organizações citadas, com cargo de professor na Unespar, uma universidade estadual, e que em processo administrativo foi requisitado a devolver os recursos recebidos indevidamente. Pois, sendo funcionário público, teria recebido recursos emergenciais da Lei Aldir Blanc, uma violação da legislação. Procurado pela reportagem, Ulisses Galetto se manifestou: “Não faço parte de qualquer movimento organizado. Por isso, desde logo é preciso dizer que não agi, sozinho ou coletivamente, para criar obstáculos a quaisquer investigações ou apurações sobre a aplicação de valores da Lei Aldir Blanc”.
Também comentou sobre um processo da Polícia Federal, do qual não apresentou detalhes nem numeração que permitisse apurações. “Estou muito tranquilo em relação à minha participação nos editais da Lei Aldir Blanc porque a Polícia Federal sugeriu na última semana que o meu caso fosse arquivado, por entender que não existiu dolo de minha parte e que não causei prejuízos ao erário”. Galetto, que é tido como um especialista em leis de incentivo, com doutorado com o tema Lei Rouanet, ainda afirma que sua conduta, segundo a PF, teria sido guiada “por equívocos na interpretação das normativas, não configurando conduta ilícita, mas sim um conjunto de circunstâncias passíveis de equívoco interpretativo”. Este depoimento foi colhido em 20/1/2024. A reportagem solicitou o documento comprovando esta informação, mas ele se recusou a responder. No entanto, em processo administrativo na SEEC-PR, ele foi condenado a devolver R$ 20 mil.
Em outro caso, ocorrido no extinto bar Gilda, em 2019, em Curitiba, ele fez agressões verbais e tentou atingir fisicamente o cientista político Manoel J. de Souza Neto, ex-secretário municipal de cultura do PCdoB de Curitiba. Souza Neto recebia ameaças por sua atuação política há mais de uma década. Segundo relatos e documentos localizados em diálogos do FNM (Fórum Nacional de Música), tentativas de promover diálogos entre os envolvidos esbarravam em demasiada influência partidária do PT de Curitiba em assuntos que eram setoriais da música, gerando conflitos. Galetto acordou em juízo com a restrição legal de se aproximar a menos de 200 metros de Souza Neto. Ambos os citados recusaram-se em comentar o episódio.
Os problemas não se restringiram apenas aos partidos, mas também aos sindicatos. O método de gerar constrangimentos, segundo as fontes e documentos, mudou para estratégia de redução das denúncias e cooptação. A ex-membro da coordenação do Fórum de Cultura do Paraná, Eloah Petreca, assumiu trabalho remunerado no Sated-PR em meio à crise entre organizações. A partir daí ela passou a produzir dossiês com denúncias sem embasamento contra seus antigos aliados. Em conversas de WhatsApp teria vazado documentos que estavam em sigilo, acessados pelo próprio SATED-PR.
Em outra ocasião, teria acessado senhas antigas do Facebook, do coletivo ao qual participou no passado (sem autorização) para atacar outro dos pesquisadores que pediu apuração do caso da Lei Aldir Blanc, Gehad Hajar, também presidente do SEPED-PR, entidade que partiu em defesa dos excluídos e vitimados pela pandemia.
Para o jurista Gehad Hajar, um dos atingidos por grupos de interesses, “qualquer ataque feito contra quem age em prol do controle social, é na verdade um ataque que favorece a anomia, o caos social. Existe uma coisa interessante dentro da teoria da ação social: o ‘paradoxo do desvio’. Aquele que promove o controle social é obrigado a cumprir as leis em primeiro lugar. Assim, estes que atacam o controle social descumprem as leis em primeiro lugar, pela forma como fazem”.
Em respostas às cartas de Petreca, o FCP emitiu notas públicas em que desmentiu o que chamaram de acusações falsas e boatos de redes sociais, das quais sequer existiam alguma atribuição de atos que se configurem em alguma tipificação legal. Petreca não respondeu às solicitações da reportagem.
O artista visual e educador Lauro Borges (que já foi coordenador do FCP), em reunião online do Sated-PR no início de 2021, foi alvo de cancelamento por parte da diretoria do sindicato. Foram séries de ofensas e acusações em uma assembleia, sem direito à defesa. Ele teve seus registros retidos como profissional na área de teatro durante o conflito (2021 – 2023). Borges era um dos que questionavam a lisura do processo da LAB no Paraná e em Curitiba. “Na época eu estava mediando (como a maioria dos colegas) um diálogo entre pessoas conhecidas para defender a classe envolvendo consenso acerca da LAB 1”, comentou.
Reportagens saem, clima se acirra
Em 2021, com base em denúncias e reclamações encaminhadas ao Fórum de Cultura do Paraná, CF-OMB, SEPED-PR, membros do Consec e outras fontes, em parceria com o Observatório de Cultura do Brasil (que sistematizou documentos da Lei Aldir Blanc) e o jornalista Rodrigo Juste Duarte foram publicadas as primeiras reportagens de uma longa série sobre as irregularidades no Le Monde Diplomatique Brasil. A série revelou, entre outros temas, que os agentes envolvidos em alguns dos casos documentados receberam de 4 até 8 prêmios dos recursos que eram assistenciais e emergenciais, o que significaria então uma grande falha dos órgãos de cultura do estado e do município, fatos confirmados em auditorias do TCE-PR e CGU.
Segundo observações obtidas por meio de relatórios do GT de Direitos Humanos do FCP, os ataques se intensificaram como consequência das assembléias, denúncias e cobertura de imprensa que se seguiram. Os documentos apontam que as tentativas de constrangimentos vinham, em sua maioria, de premiados com recursos públicos e agentes político-partidários, que acusavam os denunciantes, membros do mesmo campo político de esquerda, de serem bolsonaristas, entre outras acusações, segundo membros do FCP, sem cabimento. Entre os ataques mais frequentes estavam comentários pessoalizados (com argumento ad hominem) e ameaças em postagens do FCP, do Observatório de Cultura do Brasil e até de perfis pessoais. Houve também caso de imputar falsamente centenas de processos judiciais ao pesquisador Souza Neto. Os acusadores utilizaram informações referentes a um advogado homônimo, que tampouco respondia a processo, mas que apenas era citado defendendo seus clientes com informações publicadas no Jus Brasil.
De agentes político-partidários de esquerda, passando aos premiados repetidas vezes nas verbas assistenciais e emergenciais, sindicatos, até o poder público de direita, os citados na imprensa e em auditorias tentaram abafar o caso, atacando as matérias do Le Monde Diplomatique Brasil, estudos e relatórios. Muitas vezes tratavam como fake news, ou ódio à cultura, mas sem apresentar qualquer fato ou prova destas falsas acusações, em um ataque à imprensa, à liberdade de expressão e ao jornalismo. Uma situação que o jornalista Rodrigo Juste Duarte pretende comunicar ao Sindicato dos Jornalistas. Ele comentou que uma situação caótica como esta faz lembrar de Tim Maia, que afirmou certa vez: “Este país não pode dar certo. Aqui traficante se vicia, prostituta se apaixona, cafetão sente ciúmes e pobre é de direita.”
Outra prática relatada foi a exclusão sistemática de mais de 40 fóruns de discussão de políticas culturais. Uma prática que configura censura e interdição do debate sobre as irregularidades ocorridas entre 2020 e 2023, como na expulsão imotivada do I Fórum Emergências para silenciar críticas ao uso excludente das verbas da LAB.
Na rede social Facebook, houve até um caso de ameaças de agressão física, quando um militante conhecido como Luis Gringo, responsável pela segurança de comitê eleitoral e da Casa da Resistência, que atua com as organizações citadas, afirmou em uma postagem do presidente do Sated-PR Adriano Esturilho, que um dos denunciantes do caso da LAB, “vai passar a tomar sopa de canudinho”, se referindo a retirar os dentes do pesquisador Manoel J. de Souza Neto e não teria sido a primeira vez que fez ameaças semelhantes. Algo despropositado, segundo as testemunhas consultadas, já que as denúncias não eram contra o PT, mas contra o uso dos recursos da Lei Aldir Blanc, em Curitiba, Paraná, nas gestões do Prefeito Rafael Greca (na época DEM-PR, hoje PSD-PR) e do Governador Ratinho Júnior (PSD-PR), ambos aliados de Bolsonaro (PL-RJ). Luis Gringo não foi localizado para comentar os casos.
Nos bastidores da cultura local, circularam várias frases configurando boicote aos que apontassem incongruências nos editais e na aplicação da LAB, pedindo princípios fundamentais como transparência, processos mais simples ou cotas raciais. Uma das frases mais faladas era de que tais pessoas nunca mais trabalhariam com cultura em Curitiba. Entre os argumentos mais usados pelos que se mostraram desfavoráveis ao debate também estavam: “quem não teve mérito não venceu”, “são invejosos, que não ganharam verbas dos editais”, “são redes de bolsonaristas”, entre outros comentários semelhantes depositados contra a própria esquerda.
Em um grupo de WhatsApp com maioria de assessores políticos de vários partidos (inclusive funcionários na ALEP-PR), Manoel J. de Souza Neto sofreu vários ataques à sua reputação, tentativas de chantagem e até oferta de propina, onde lhe foi exigido parar com as apurações do caso da Lei Aldir Blanc. Entre os ataques mais graves, estavam uma ameaça de utilizar a imagem dele em montagens sexuais com conteúdo impróprio, e uma infame tentativa de inventar escândalos de filho inexistente não assumido e agressão contra uma ex-namorada inventada para a ocasião. Estas duas últimas vindo de um mesmo número de telefone, relacionado a um assessor parlamentar (de um deputado relacionado a Comissão de Cultura) ligado aos grupos responsáveis pelas outras situações relatadas. Segundo apurações, as tais mulheres acusadoras (e um “Manoelzinho”) nunca existiram. O grupo solicitava o fim das apurações, porque aliados seriam afetados na apuração: “pare com isso, porque vai pegar companheiro”.
A documentação analisada aponta que integrantes destes grupos de interesse tentavam criar um clima de terror psicológico (a técnica “choque pesadelo” do FDE) contra quem integrava pesquisas e movimentos que pediram as apurações nas contas públicas.
O Império Contra Ataca: ataques estatais e sindicais contra os movimentos sociais, imprensa e o controle social
As estratégias de silenciamento mudaram ligeiramente após a comprovação da CGU de que ocorreram irregularidades foram reveladas na imprensa. O Fórum de Cultura do Paraná propôs um pacto de boas práticas assinado por 15 organizações e entidades da cultura. Somente SATED-PR e grupos aliados não assinaram. Mas, em seguida, em um período de fragilidade do Fórum, por crise de coordenação, ex-integrantes do FCP, de mesmo partido da direção do SATED-PR (PCdoB), se valeram da situação e promoveram uma assembleia virtual fake utilizando o nome do Fórum de Cultura do Paraná (sem autorização do verdadeiro Fórum) para deslegitimar os trabalhos feitos anteriormente de apuração do caso da LAB.
Como resultado, lançaram um documento assinado por membros do próprio Sated-PR (liderança também da Rede Coragem), que puxaram a reunião sob nome do Fórum de Cultura do Paraná de forma irregular, e um dos itens era justamente que não ocorressem mais denúncias. A assembleia foi realizada em abril de 2023. Isso ocorreu pouco tempo após um dos organizadores abrir ações na Justiça para tentar silenciar as denúncias (mas as ações não prosperaram). No mesmo período um inquérito foi aberto na Polícia Civil para apurar as agressões e uso indevido de estrutura sindical.
Curiosa é a forma localizada de como reagem os órgãos de cultura diante de ações de ampliação do controle social e da democracia. Ao invés de dialogarem com os órgãos fiscalizadores dando soluções aos problemas, a documentação localizada aponta para medidas contrárias aos que fizeram questionamentos ou denúncias.
A Fundação Cultural de Curitiba (FCC), diante dos questionamentos feitos pela OMB à má aplicação da Lei Aldir Blanc, lançou em seu site informação desconexa relacionada ao pesquisador Manoel J. de Souza Neto, de que as denúncias enviadas ao MP teriam sido arquivadas (Notícia de Fato nº 0046.21.053633-3), quando na realidade foram declinadas para outros órgãos, e confirmadas pelo TCE-PR e CGU. Ao ser solicitado que respostas fossem institucionais voltadas à OMB e com os fatos reais, a FCC recusou o pedido de direito de resposta.
Já a SEEC-PR também partiu para os ataques contra a sociedade civil ao lançar uma plataforma que deveria se chamar, segundo o SNC, de Sistema Estadual de Informações e Indicadores Culturais, assumindo o nome do Observatório da Cultura em seu projeto estatal, mesmo nome da organização social Observatório da Cultura do Brasil que promove controle social e críticas à falta de políticas públicas de cultura no estado, causando confusão na opinião pública. Após denúncia feita sobre o ocorrido, o órgão desconversou.
O Musin/Fonoteca da Música Paranaense (acervo de 400 mil documentos) administrado por membros do FCP e do Observatório da Cultura do Brasil, também tem sido alvo de ataques. O projeto foi premiado pela SEEC-PR, ainda assim os documentos da existência do museu simplesmente desapareceram do sistema estadual de museus COSEM (há cerca de 8 anos, durante o governo Beto Richa, PSDB-PR), e o órgão na atualidade (do Governo Ratinho, PSD-PR, aliado de Bolsonaro, PL-RJ) responde de forma evasiva sobre o caso, o que segundo as fontes são exemplos de nítida retaliação, pelos pedidos de informações e denúncias relacionadas à Lei Aldir Blanc e verbas de editais.
O Ministério da Cultura não ficou atrás. O núcleo de pesquisadores, que estava estudando problemas nas políticas culturais, atuou em debates em grupos governamentais relacionados às Leis Aldir Blanc, Paulo Gustavo e PNAB, geridos por servidores em cargos comissionados, conselheiros e consultores terceirizados do MinC, que ao verem publicação de notícias e pesquisas, excluíram na véspera do Natal de 2023 (sem justificativa) a conta institucional do Observatório de Cultura do Brasil dos grupos de WhatsApp.
Como agravante, parte do núcleo que promoveu as exclusões de grupos virtuais é próxima aos grupos de interesses locais envolvidos nas outras situações relatadas, já que as lideranças locais têm cargos e projetos relacionados ao Ministério. Não é a primeira vez que o MinC ataca o pesquisador e ex-membro do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), Manoel J. de Souza Neto. Em caso ocorrido em 2016, quando questionou recursos do site do CNPC alocados em um projeto chamado Lab Cultura Digital (contratos CU 121 2015 e TED 08 2015 UFPR/MinC), ele foi afastado do cargo sem processo administrativo, promovendo um verdadeiro tribunal de exceção, o que ficou revelado no MS 22.794.
Considerando a aproximação dos agentes envolvidos nestes ataques, foi sugerido pelas testemunhas de que se tratam de ataques coordenados, visando silenciar a sociedade civil.
Diante do panorama apresentado, cabe um questionamento. Se as pessoas envolvidas nestes casos ocupam cargos em órgãos públicos (secretários de partidos, conselheiros, representantes regionais do MinC, representantes de comitês de cultura, entre outros) levanta-se a hipótese de que, apesar dos comportamentos considerados questionáveis destes agentes, seus partidos e os órgãos públicos aos quais estão ligados não estariam em desacordo. Portanto, denota um possível apoio institucional (ou até suporte) informal para este clima de agressões e constrangimentos promovidos contra a sociedade civil.
A ausência de políticas culturais acaba virando caso de polícia
Com o avanço das investigações e com os ataques sofridos, chegou-se à motivação. Cruzamentos de documentos apontaram acúmulos de premiações não só em indivíduos, mas em coletivos e agrupamentos familiares conectados aos grupos de interesses e suas bases político-partidárias.
O estudo aponta que integrantes faziam parte dos mesmos grupos que atuaram na negociação das regras dos editais, sendo depois favorecidos, e hoje ocupam, inclusive, cargos regionais relacionados ao MinC, e ainda são atuantes na base partidária de cultura do Partido dos Trabalhadores de Curitiba e outros (uma pequena fração da militância, e não o partido inteiro). Todo material das agressões foi encaminhado às autoridades, reunindo milhares de documentos e indícios dos casos entregues por vítimas no decorrer de uma década.
Entre as denúncias encaminhadas ao MP em 2021, a Notícia de Fato 004621103908-9 se tornou o inquérito 0013860-08.2023.8.16.0013 na Polícia Civil para, a princípio, investigar ações de agrupamentos contra indivíduos que faziam apurações da aplicação de recursos da LAB 1. “A PCPR está investigando o caso e realizando diligências a fim de esclarecer o fato e concluir o inquérito policial. Testemunhas estão sendo ouvidas e darão auxílio no andamento das investigações”, informou a assessoria de comunicação da Polícia Civil do Paraná.
Corre também na Polícia Federal o inquérito IPL 2021.0027295 para averiguar ameaças e constrangimentos promovidos por dirigentes de classe, contra membro da CF-OMB responsável por acompanhar a aplicação da LAB. Sobre o andamento deste inquérito, a reportagem procurou pela Comunicação da Superintendência Regional da PF no Paraná, que informou que não estava autorizada a ceder informações sobre o inquérito, mas sugeriu que “busque se habilitar na própria Justiça Federal , via Sistema E-Proc, para ter acesso diretamente ao inquérito, na hipótese de que não esteja coberto por algum grau de sigilo, o que é também da competência da JF estipular.”
Procurada pela reportagem, a entidade SATED-PR, em sua mensagem informou ser favorável às auditorias sobre a LAB, mas não foram localizadas quaisquer medidas do sindicato neste sentido. O SATED-PR manifestou-se: “a respeito das citadas matérias, ao mesmo tempo em que contam com apontamentos gerais que consideramos procedentes, por vezes divulgam informações falsas e distorcidas sobre a atuação do sindicato e de alguns de seus membros.”
No entanto, o depoimento diverge do fato de diversos associados do sindicato serem apontados nos relatórios de auditorias do TCE-PR e CGU, além de ações judiciais a que esta reportagem obteve acesso, demonstram que foram fabricadas, visando intimidar os denunciantes do caso da Lei Aldir Blanc, tanto que não resultaram favoráveis ao SATED-PR. Embora tenha afirmado que haveria informações falsas e distorcidas e de, em ação judicial, ter se referido às reportagens como “fake news”, a entidade ou seus dirigentes não questionaram e nem fizeram pedidos de direitos de respostas, assim como não especificaram discordâncias em nenhuma das cerca de 27 reportagens publicadas sobre o tema, informou o Jornalista Rodrigo Juste Duarte, autor da série do Le Monde Diplomatique Brasil.
Em depoimento dado à reportagem, João Paulo Mehl, atual coordenador do Comitê de Cultura do MINC no Paraná (projeto agraciado com R$ 1,4 milhão de reais pelo MINC), também coordenador da Rede Livre (da qual integra a Rede Coragem, Fora do Eixo, Mídia Ninja e Soy Loco Por Ti), afirmou que ganhou uma ação de calúnia e difamação contra o pesquisador Manoel J. de Souza Neto. Porém a apuração dos documentos, revela que o relato não corresponde aos fatos, visto que a ação 0003102-67.2023.8.16.0013 na realidade não foi acatada em juízo como calúnia e difamação à pessoa física de Mehl (tese afastada), tornando-se jurisprudência conforme publicado pela Justiça no site Jus Brasil. A ação, que teve continuidade, refere-se a ação de uma de suas empresas, citada em uma publicação que fazia críticas sobre os usos dos recursos do MinC e da UFPR nas verbas do site do CNPC, pedindo explicações sobre dinheiro repassado através de um convênio. A ação não teve continuidade, por acordo de transação penal, ofertado pelo Ministério Público, que entendeu que o pesquisador apenas estava cobrando o bom uso de verbas públicas.
Consultado, o pesquisador Manoel J. de Souza Neto não deu depoimento, e informou que os documentos, ações judiciais e inquéritos são autoexplicativos, que foram lidos por grupos das entidades aos quais faz parte, que se manifestaram oficialmente conforme a documentação entregue, e que o MP o orientou a não mais comentar estes casos em redes sociais e confiar mais nas autoridades judiciais.
O jornalista Rodrigo Juste Duarte, que testemunhou os casos ao acompanhar o caso da Lei Aldir Blanc de dentro, numa observação participante, se mostrou surpreso com os ataques à sociedade civil. “Como jornalista que fez cobertura do caso da Lei Aldir Blanc e de casos anteriores, acompanhei de perto movimentos sociais compostos por pessoas que apenas estavam fazendo o controle social sobre recursos de políticas públicas, sempre de uma forma ética e íntegra, cobrando questões públicas de forma impessoal. Testemunhei, em resposta, agentes políticos, gestores e captadores de recursos cometendo agressões de cunho pessoal e moral, até com calúnias e ameaças para abafar o caso. Vi até mesmo pessoas que eu considerava tomando estas atitudes contra membros da comunidade civil, e isso foi uma surpresa negativa. Na minha visão, soavam como ataques à democracia e ao bom uso da coisa pública”.
Mesmo com os encaminhamentos à Justiça, as cicatrizes ficaram. Muitas vozes que poderiam atuar no aprimoramento das políticas públicas foram silenciadas com medo de represálias. O Fórum de Cultura do Paraná, que é um movimento que age na defesa dos direitos sociais e culturais da população do estado, segue com crise de coordenação após inúmeros ataques recebidos. Diversas entidades de classe, sindicatos e movimentos pararam de se manifestar diante de casos, como da Lei Paulo Gustavo (LPG) que passa por grave crise no estado. A consequência é que não se fiscalizam, cobram, debatem, ou se discutem políticas culturais no Paraná, pois todos têm medo de abrir a boca. As disputas dos setores culturais paranaenses deixariam ruborizada Catherine Millet, autora de “A Vida Sexual Catherine M.”.