Por Jan Cenek

A ficha demorou para cair porque sou devagar e desconfiado. Na verdade, a ficha só caiu 25 anos depois, quando os telefones móveis haviam substituído os orelhões. O fato é que os moleques de Guarulhos eram talentosos, engraçados e necessários! Quem estava no Brasil no final de 1995 e no começo de 1996 com certeza ouviu os Mamonas Assassinas [1], banda de rock escrachado, que carregava nas paródias e no pastiche. Lá vem o alemão para Lá vem o negão. Cabeça de bagre para Cabeça de dinossauro. Toca-fica Roadstar instalado no jumento Celestino. Guitarra, baixo, bateria, teclado, voz e alegria. Muita alegria: uma alegria transbordante e contagiante. Heavy metal com pagode, sertanejo, vira, baião e brega. Muito brega. O que ajuda a explicar o sucesso mamônico. O brega é uma das matrizes constitutivas da cultura brasileira. No final dos anos 1970, a banda britânica The Cure gravou Boy’s don’t cry. No meio dos anos 1990, os Mamonas Assassinas gravaram Bois don’t cry – “provavelmente o título mais cretino já dado a uma música no Brasil, e um dos mais maravilhosos também” [2] –, com um verso sensacional que dialoga com Brasil profundo, da música brega, da dor de corno, de Reginaldo Rossi, Waldick Soriano e tantos outros: “Ser corno ou não ser / Eis a minha indagação”. Em 1994, o vocalista dos Mamonas Assassinas, Dinho, estava na Bahia com o pai. Nas rádios baianas tocava Mesa de Bar, de Reginaldo Rossi. Dinho disse para o pai [3]: “Gostei desse troço. Também vou fazer uma música de corno, só que mais fácil de tocar e de cantar.” Mais que isso, os Mamonas fizeram “música de corno” não pela sofrência em si, mas para se divertir e divertir com o sofrimento e a carência.

Eram tempos de isolamento social, eu ria sozinho ouvindo versos escritos 25 anos antes: “O meu nome é Dejair / Facinho de confundir / Com João do caminhão”. Na época especulava-se sobre um possível chifre concedido ao ex-presidente autoproclamado “imbrochável”. Os versos soavam proféticos. Há muita alegria, muito humor, muito escracho politicamente incorreto e muita qualidade nos Mamonas Assassinas. Tudo saborosamente misturado. Piadas e gracejos não sobrevivem décadas se forem fracos. Mas, se ressuscitassem no tempo presente, os cinco moleques de Guarulhos seriam imediatamente cancelados pelo moralismo carola. Dá para imaginar, hoje, um homem cantando “você é uma besta mitológica com cabelo pixaim parecida com a Meduza” para uma mulher, para Uma arlinda mulher?

Os Mamonas Assassinas dominaram a televisão e o rádio. Venderam milhões de discos. Para quem costuma desconfiar das unanimidades, como eu, era estranho ver adultos e, sobretudo, crianças se divertindo com a banda. Ainda mais porque eram versos como “Imaginem o tamanho que é / O pinto de um elefante” e “No mundo animal / existe muita putaria / Por exemplo, os cachorros / que comem a própria mãe, sua irmã e suas tias.” Ouvi versos como esses cantados em festas de família, certamente não fui o único. Havia também a antológica canção Robocop gay, que as famílias dançavam e cantavam pensando no tio musculoso que ainda não tinha saído do armário: “Ontem eu era católico / Hoje eu sou um gay”. Sempre completando com: “Abra sua mente / Gay também é gente”. Minha hipótese é que a alegria, a espontaneidade e a irreverência dos garotos de Guarulhos cativaram as pessoas e, sobretudo, as crianças: apesar do deboche e da linguagem chula. Primeiro e único princípio mamônico: fazer piada com tudo e com todes [4], inclusive e principalmente de si próprio. A história até podia ter acabado, mas por que não fazer piada com tudo e com todes?

Olhando da frente para trás, é fantástico pensar que existiu uma banda tão escrachada no meio dos anos 1990. Era uma possibilidade não realizada e depois sufocada de um país e de uma cultura. Os Mamonas Assassinas não duraram um ano, foram liquidados num acidente aéreo meses depois do sucesso. O que fariam se não tivesse morrido? Difícil imaginar. Difícil manter a qualidade do primeiro disco, apesar da maior parte das canções ter sido composta a toque de caixa, como se fossem piadas preexistentes devidamente musicadas. Vale registrar que o sucesso dos Mamonas Assassinas teve muito a ver com o produtor Rick Bonadio, que percebeu que o caminho dos artistas passava pelo deboche e pela alopração. A primeira banda dos moleques de Guarulhos, Utopia, fazia rock dos anos 1980 nos anos 1990. Estava deslocada no tempo e no espaço e, por essa razão, condenada a ser apenas uma “banda mundialmente conhecida em Guarulhos”, mais precisamente no Parque Cecap. Mas se eles investissem no que tinham de melhor – a alegria, o humor, o escracho e o deboche –, a coisa seria diferente. Não deu outra. Trocaram o nome da banda, trocaram definitivamente a seriedade pela alopração, fizeram estrondoso sucesso.

Curiosamente, mamona é o aumentativo de mama. Na capa do único disco da banda se veem os moleques e grandes peitos siliconados, espécie de prenúncio da siliconização cultural que viria depois. Tudo muito igual, sem movimento e naturalidade, sem coragem e ousadia, sem espontaneidade e graça. Tudo muito comercial e kitsch. Por aí se pode pensar a força dos Mamonas Assassinas. Exemplificando. Legião Urbana nos anos 1980: “Quando nascemos fomos programados / a receber o que vocês / nos empurraram com os enlatados / dos USA / das nove às seis / Desde pequenos nós comemos lixo / comercial e industrial / Mas agora chegou a nossa vez / vamos cuspir o lixo em cima de vocês”. Mamonas Assassinas nos anos 1990: “Eu queria um apartamento no Guarujá / Mas o melhor que eu consegui foi um barraco em Itaquá / Você não sabe como parte o coração / ver seu filhinho chorando, querendo ter um avião / Você não sabe como é frustrante / ver sua filhinha chorando por um colar de diamante / Você não sabe como eu fico chateado / ver meu cachorro babando por um carro importado”. Esse cuspir o lixo de volta com humor contagiante e escrachado, com alegria e espontaneidade, misturando rock com brega, sem piedade e moralismo, é o que explica a força das canções mamônicas. Disseram o que as pessoas queriam dizer e ouvir, alopraram tudo e todes, inclusive eles próprios. Muitas flatulências são ouvidas nas canções dos Mamonas Assassinas: é a digestão malfeita das fast foods ingeridas nas praças de alimentação dos Chopis Centis. É o lixo comercial e industrial regurgitado com humor. Não que eles rechaçassem o consumo, eram moleques que queriam “subir na vida”, compraram carros importados e outras mercadorias de luxo assim que puderam. Mas perceberam que o caminho para o sucesso passava por cuspir lixo comercial e industrial de forma bem humorada. Nos shows o público se empolgava com as canções engraçadas. O produtor insistiu que o caminho para o sucesso passava pelo deboche e pela alopração, que era o que eles tinham de melhor. Então compuseram um disco musicando piadas e causos a toque de caixa. Assim divertiram e alegraram todo um país.

Em 1994, os moleques de Guarulhos cantaram a primeira versão de Robocop Gay (chamava-se Demerval, o Machão) para o público em um comício político de um candidato do PT. Os presentes caíram na gargalhada. O tecladista, Júlio Rasec, registrou [5]: “Nos shows, as composições humorísticas começavam a ganhar cada vez mais espaço, e o grupo notou que o nome Utopia já não podia mais ser usado. Depois de exaustivas pesquisas e testes de laboratório, obteve-se Os Mamonas Assassinas”. 30 anos se passaram. Fico imaginando o que aconteceria se alguém cantasse, hoje, versos à la Mamonas Assassinas num comício político de esquerda: “Você pode ser gótico / Ser punk ou skinhead / Tem gay que é Muhamed / Tentando camuflar / Allah, meu bom Allah”…

O fenômeno mamônico passa pelo empanturramento mercantil e pela falta de perspectivas da geração Cola-Cola num tempo em que rir ainda era possível. Anos 1980: “Somos os filhos da revolução / Somos burgueses sem religião / Somos o futuro da nação”. Anos 1990: Somos os filhos da contrarrevolução / Somos proletários com religião / Num país sem futuro. Se não há nada a fazer, se não há espaço para utopias (nem para bandas de rock com esse nome), por que não fazer piada com tudo? Algumas comparações aleatórias para exemplificar. Chico Buarque em 1971: “Todo dia eu só penso em poder parar / Meio-dia eu só penso em dizer não / Depois penso na vida pra levar / E me calo com a boca de feijão”. Mamonas Assassinas em 1995: “Quando eu estou no trabalho / Não vejo a hora de descer dos andaime / Pra pegar um cinema, ver o Schwarzenegger / e também o Van Damme”. Rimar andaime com Van Damme não é qualquer coisa, é o tal empanturramento mercantil regurgitado com humor. Chico Buarque novamente: “Todo dia ela faz tudo sempre igual / Me sacode às seis horas da manhã / Me sorri um sorriso pontual / E me beija com a boca de hortelã”. Mamonas Assassinas outra vez: “Mas a pior de todas é minha mulher / Tudo que ela olha, a desgraçada quer / Televisão, micro-ondas, micro system, microscópio / Limpa-vidro, limpa-chifre e facas Ginsu”. Quando estava escrevendo ouvi muitas vezes as canções dos Mamonas, acabei decorando o trecho anterior. Cantarolei os versos perto de um garoto de 10 anos. Ele caiu na gargalhada. Fiquei espantado. Perguntei se ele sabia o que era micro system? Não sabia. Facas Ginsu? Não sabia. Conhecia os Mamonas Assassinas? Não conhecia. Então por que estava rindo. Porque é engraçado – respondeu gargalhando. Ponto para os cinco moleques de Guarulhos. Cativaram e continuam cativando a criançada. Com Aldir Blanc e João Bosco, no final dos anos 1970, os boias-frias sonhavam com bife a cavalo e batata frita. Com os Mamonas Assassinas, no meio dos anos 1990, nos Chopis Centis, a juventude comia “uns bicho estranho com um tal de gergelim”, apesar de ainda preferir aipim. O disco homônimo dos Mamonas Assassinas é a cara do Brasil dos anos 1990. Ainda era possível rir das desgraças individuais e coletivas. A sacada dos moleques de Guarulhos era justamente essa: riam e faziam rir das desgraças individuais e coletivas. Como estamos em tempos de moralismo carola, inclusive em pessoas e organizações progressistas, melhor registrar: não existe libertação sem riso, impossível separar uma coisa da outra, quem não consegue rir das desgraças individuais e coletivas não se liberta delas – vale para a dor de corno, para o capitalismo, para tudo e para todes. É por essas e outras que moleques como os de Guarulhos são fundamentais e necessários. O riso é libertário e revolucionário.

Os Mamonas Assassinas registraram um verso ontologicamente escrachado na canção 1406 que, diga-se de passagem, era um canal de televendas: “Eu sou cagado, veja só como é que é / Se der uma chuva de Xuxa, no meu colo cai Pelé” [6]. Há um verso da canção Lá Vem o Alemão que imagino um pouco diferente, para dialogar com Vira-vira: Só de pensar que nós dois éramos três / Eu, você e o português; onde se canta “Só de pensar que nós dois éramos dois / Eu feijão, você arroz / Temperados com Sazon”.

O vocalista, Dinho, aprendeu a cantar aos sete anos no coral infantil de uma igreja evangélica [7]. Já a primeira versão da aloprada canção Vira-vira foi composta pelo então catequista, Júlio Rasec, para ironizar o padre português da paróquia que frequentava [8]. A irreverência e a zoeira dos Mamonas Assassinas passaram por igrejas, o que é interessante e faz pensar. Além disso, Dinho e Júlio eram apreciadores de música caipira. O pai do baixista e do baterista, os irmãos Samuel Reoli e Sérgio Reoli, cantava música caipira. É esse caldo de cultura temperado com deboche, irreverência e alegria – mais um filho de japoneses nascido em Itaquaquecetuba, Bento Hinoto, arrebentando na guitarra – que forjou os Mamonas Assassinas. Meros consumidores de enlatados não fariam um disco genial como o que eles fizeram. Dinho foi um humorista dos bons, imitava as principais personalidades da época: Leonel Brizola, Sílvio Santos, Gil Gomes, Maguila, Lula. Chegou a trabalhar como animador de comícios políticos de um candidato do PT. Os demais integrantes do Mamonas tiveram vários empregos precários. Todos conheceram a dureza do neoliberalismo.

É esse conhecer o mundo precarizado e a viração por dentro que faz pensar num paralelo. Vai parecer provocação e realmente é. Os Mamonas podem ser pensados com uma banda de rock dos anos 1980 que se adaptou bem aos anos 1990. Mas é mais que isso. Os moleques de Guarulhos tinham um quê de Adoniran Barbosa: pelo humor, pela irreverência e, sobretudo, por inventar um estilo que era a única possibilidade de encaixar o que eles sabiam fazer. Não tiveram a força poética do bardo, mas eram engraçados e irreverentes. Fizeram o que precisava ser feito: piada. Isso num tempo em que a periferia tinha se expandido, que os boias-frias começavam a ser transformados em motoboys e o sotaque nordestino havia substituído o italiano nas ruas de São Paulo. Adoniran, meados dos anos 1960: “Nós fumos, não encontremos ninguém / Nós vortemos com uma baita duma raiva”. Mamonas Assassinas, meados dos anos 1990: “A gente fomos no shoppingui / Pra mode a gente lanchar”. Nada mais genuinamente brasileiro do que o verso “Mina, seus cabelo é da hora” cantado com sotaque nordestino por uma banda de Rock formada num conjunto habitacional de Guarulhos.

Um acidente aéreo liquidou os Mamonas Assassinas em 02 de março de 1996. O que fariam se tivessem mais tempo de vida? Impossível saber. O certo é que seriam cancelados pelo moralismo carola, só isso. Conseguiriam manter a pegada do primeiro disco. Dificilmente. Teriam esgotado o estoque de piadas no primeiro disco e nos shows que fizeram? Talvez. Mas quase 30 anos depois, olhando com olhos de hoje, os Mamonas são atuais porque a sociedade consumista e careta, que eles alopraram, continua a mesma. Há muitos enlatados por cuspir. Há muitas piadas por fazer. Mais que isso, considerando o puritanismo que impera no país, os Mamonas Assassinas são ainda mais engraçados. Demorei para perceber porque desconfio das unanimidades. O fato é que os caras eram talentosos, engraçados e necessários. Por isso adultos e, sobretudo, crianças se divertiam com eles. Passados quase 30 anos, acho que entendi o que houve. É que ninguém representou tão bem o Brasil dos anos 1990, nem muito menos com tanta espontaneidade e tanta alegria quanto aqueles cinco moleques de Guarulhos.

Notas

[1] De acordo com a Wikipedia, o disco Mamonas Assassinas é o que mais vendeu em um só dia no Brasil, 25 mil cópias em 12 horas; é também recordista mundial como o disco que mais vendeu em menos tempo, 3 milhões de cópias antes de completar um ano de lançamento.

[2] Eduardo Bueno. Mamonas Assassinas: blá, blá, blá. Porto Alegre: L&PM editores, 1996. p. 99.

[3] Ibidem.

[4] Alguém pode dizer, com razão, que o pronome neutro todes não existia no tempo dos Mamonas Assassinas. É verdade, mas não resisti.

[5] Ibidem, p. 67.

[6] De acordo com o autor da biografia citada na nota 2, o tal verso ontologicamente escrachado teria sido dito por um secretario de Lula num comício realizado no Sul do país. O secretario confirma que disse, mas não a autoria, teria ouvido de alguém e repetido. Em 1994, o vocalista e principal letrista dos Mamonas Assassinas, Dinho, avisou o secretario de Lula que usaria a frase numa canção.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

1 COMENTÁRIO

  1. Lembro de uma repórter questionar os Mamonas sobre a improvável repetição do sucesso no segundo disco. A resposta do vocalista também foi antológica: “nós pensamos nisso e por isso lançamos o segundo disco primeiro”. Mas confesso que pouco depois dos moleques, eu, que tinha presenteado minha mãe com o CD, havia me deixado levar por um círculo muito próximo de conhecidos, entre eles um querido amigo já partido desta para sabe-se lá onde, que encaravam a zoeira dos Mamonas de forma unívoca, sem ambiguidades, ou pelo menos como exclusiva expressão de preconceito, ignorância e machismo irrefletido – que de fato também era. Como só muito depois o politicamente correto viria a ser polícia dos costumes nos meios progressistas, jamais saberei, se, mudado drasticamente esse contexto, esse amigo teria reconsiderado seu código de conduta e prudência, “uma velha solteirona rica e feia cortejada pela impotência” num dos provérbios do inferno de William Blake, para ao menos não ser inteiramente tragado pela vida e suas mundanas demandas, no decurso das quais normalmente se atenua a agitação interior e o espírito se converte em tumba da revolta.

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