Por Arthur Moura [*]

Disputa política, propaganda e agitação

“Certa vez o Fantástico fez uma reportagem para me destruir. Eu fui lá e fiz um funil, coloquei duzentos mil e faturei vinte milhões. O UOL soltou uma reportagem minha. Aí eu prometi: vamos fazer um milhão com a notícia. Eles colocaram: Marçal, mentor de milhões ou manipulador? Eu peguei a notícia e fiz 2.5 milhões. Ou seja, não é o que fazem com você. É o que você faz com o que fizeram com você. É só você não ter vergonha na cara e continuar fazendo aquilo que você sabe fazer de melhor: converter energia.” Pablo Marçal

A tragédia do Rio Grande do Sul, histórica pelas proporções da destruição promovida, superou a trágica inundação de 1941 que na época deixou as ruas alagadas por 40 dias. Esse tipo de evento atualiza, da pior forma possível, as consequências de um modo de produção que tem na natureza a principal fonte de extração das riquezas essenciais para a manutenção de um modelo industrial voraz, que desde a Revolução Industrial nunca cessou sua ganância em aumentar os lucros da classe dominante. Ou seja, novidade não existe. O ineditismo está nas proporções e desdobramentos das tragédias que estão ocorrendo pelo mundo, que não se limitam aos fenômenos naturais, mas a guerras e conflitos de todas as ordens, configurando um verdadeiro clima de tensão e instabilidade social. Essa tensão generalizada é vista pelo senso comum de maneira simplista como uma polarização entre esquerda e direita, quase sempre representados em partidos políticos que tem à frente determinados nomes que representam os interesses e valores dos setores em disputa. Esses conflitos, no entanto, são notadamente resultados das históricas lutas de classes. Em suma, a tragédia do Rio Grande do Sul deve ser entendida dentro de um contexto histórico e mundial de contradições geradas pelo modo de produção capitalista e todo o seu sociometabolismo.

Essa tragédia gerou intensa disputa pelo socorro às áreas atingidas. A rápida mobilização popular não esperou nenhum tipo de ajuda do Estado, já que a urgência para resolver ou minimamente reparar os danos fala mais alto. As pessoas têm sede, fome e estão sem casa. Muitos animais estão morrendo afogados ou de fome. Nesse contexto, as principais forças políticas buscam, a partir das suas capacidades, intervir na dura realidade de tragédias diárias, mas também ações solidárias exemplares que ao mesmo tempo em que promovem um alívio estimulam a organização em torno dos irmãos atingidos pelas fortes chuvas, comprovando na prática a morosidade das instâncias burocráticas. Prevendo a inércia das forças do Estado, o setor privado penetrou rapidamente nessas regiões a fim de estimular e acelerar os esforços de salvamento e assistência imediata à população afetada, criando automaticamente um clima favorável em torno de empresários, artistas, youtubers e políticos de direita e extrema-direita ricos, classificando assim este setor como os verdadeiros heróis da nação.

Mesmo diante de toda a histórica disparidade social, a riqueza vem sendo concentrada cada vez mais nas mãos de poucos e é justamente nos períodos de crise que a classe dominante mais se favorece. No Brasil há inúmeros milionários e bilionários que se tornaram referência de sucesso e determinação, ainda que a riqueza seja oriunda de estelionato e outras práticas comuns como a famigerada corrupção. Como a concentração de riqueza é algo obsceno, a ideologia em torno da prosperidade é vendida em todos os tons, capturando pessoas fragilizadas diante de sucessivas crises, desejosas de melhorar sua condição de vida. A internet, por sua vez, é ocupada por conteúdos produzidos por esses sujeitos que geram adeptos de todas as idades dispostos a compactuar com os valores liberais e religiosos de lideranças que promovem esse tipo de orientação ideológica conservadora, transformando o indivíduo no principal responsável pelo sucesso ou fracasso de suas ações.

O contexto social do Brasil desde a crise estrutural do capital de 2008 vem tomando uma forma cada vez mais definida politicamente, seguindo parâmetros históricos já bastante conhecidos, no entanto atualizado segundo o próprio desenvolvimento do capital e do papel dependente do Brasil na economia mundial capitalista. Historicamente, o Brasil responde a um processo de desenvolvimento intimamente atrelado ao latifúndio e à concentração de riqueza aberrante, sendo esse fator decisivo para a própria conformação política do país concretando uma classe dominante intransigente com relação aos seus interesses. O trabalhador, por sua vez, teve papel primordial nos setores produtivos sendo força sem a qual nenhuma atividade seria possível, desde agrícolas a industriais, comerciais e até mesmo segurança, já que a massa que forma as forças repressivas é oriunda dos setores mais pauperizados. Todo esse panorama é também palco de intensas lutas que começam desde a invasão em 1500, se estendendo por todo o período colonial com a escravidão, sendo a força que colocou o Brasil como importante polo exportador de café, açúcar, algodão, minérios, entre outros. Essa dinâmica de superexploração da força de trabalho sedimentou as bases da exploração capitalista no Brasil e as consequentes desigualdades.

A vantagem dos ricos, ao utilizarem a tragédia para promoverem atuação política e social, é não só mostrar agilidade e determinação, mas provar que na prática os ricos têm muito mais relevância social que o Estado e suas instituições, inclusive o exército, que passou, incrivelmente, a ser criticado pela direita. É importante associar que essa crítica que agora se dirige às forças armadas resulta de uma insatisfação com as mesmas devido ao seu não posicionamento diante da suposta ditadura promovida pelos ministros do STF, demonizados em figuras como Alexandre de Moraes, que, por sua vez, incrivelmente tornou-se símbolo e bastião mor da democracia e dos valores civilizatórios (ainda que o STF seja estrutura fundamental da dominação burguesa no Brasil). O exército, por não ter acatado o clamor do povo por uma ditadura militar, é agora, num momento tão decisivo, desprezado e exposto a chacotas, ridicularizado, sendo os civis (auxiliados pelos milionários) força responsável pelos resgates e assistência de todas as ordens aos afetados. E não precisa dizer que os ricos se mostram muito mais preocupados com tudo o que está acontecendo do que a esquerda (presa em pautas inócuas e risíveis), bastante representada na figura simbólica do PT (e setores identitários) e seus representantes, que são vistos como pequenos e incapazes de promover qualquer mudança.

A propaganda favorável aos ricos produzida no contexto de tragédias é infinitamente mais eficaz do que qualquer polêmica entre fulano ou sicrano, processos, investigações ou CPI´s, matérias jornalísticas, manifestações ou até mesmo eleições. A propaganda e o marketing, ainda que custem uma verdadeira fortuna (só Pablo Marçal mobilizou aviões, carretas, força de trabalho, tecnologia que somam muitos milhões de reais), são posteriormente duplamente compensados, primeiramente em lucros ainda maiores (já que estamos falando de capitalistas, não há como negar que o dinheiro faz parte de um investimento e não vai ser simplesmente perdido) e poder, representado, curiosamente, em posições-chave no Estado. O raciocínio passa a ser: ora, se Pablo Marçal com seus próprios recursos foi capaz de fazer tanto pelo Rio Grande do Sul, imagina como presidente, tendo ao seu dispor toda a máquina. Ele certamente será um bom gestor e fará mais do que a esquerda. Ou… se se fala tão mal de Luciano Hang, por que só ele nos ajuda nesses momentos tão difíceis? Toda propaganda negativa produzida por adversários políticos é convertida em comprovação prática de idoneidade. Outro ponto fundamental na intervenção dos ricos nas tragédias é recuperar a sua credibilidade, já que devido ao seu modo particular de intervir na sociedade, muitos escândalos são produzidos, o que acaba por enfraquecer suas imagens, geralmente construída como pessoas imaculadas, verdadeiras, incorruptíveis. A intervenção positiva dos ricos em tragédias como a do Rio Grande do Sul torna constrangedor qualquer tipo de questionamento de suas posições políticas ou interesses de classe, processos ou investigação de qualquer ordem, sendo os que promovem esse tipo de atuação inimigos que devem ser igualmente combatidos e expostos à perseguição, livrando a população do Rio Grande do Sul de uma segunda tragédia: a intervenção de setores da esquerda.

Esse jogo perigoso é meticulosamente arquitetado e somente alguém muito desatento interpretaria a intervenção dos milionários e bilionários apartados de interesses privados. Como se trata de propaganda positivada, as ações são filmadas e narradas construindo com isso toda uma leitura do que está acontecendo, tendo força o suficiente para polemizar com grandes emissoras de TV e o governo, desestabilizando importantes organizações que dão as cartas na política nacional. A força econômica, no entanto, é demonstrada em ações pontuais, não afetando em nada a riqueza e os lucros exorbitantes dos empresários solidários, provando que a força do capital é mais determinante que as avaliações produzidas pela mídia corrompida. Trata-se, portanto, não de uma intervenção social, mas política objetivando a defesa de um projeto de sociedade conservador, reacionário, sendo canalizado por partidos políticos da extrema-direita. Se os ricos estivessem tão interessados em promover mudanças eles não negariam ajuda a outros problemas sociais tão sérios quanto o que aconteceu recentemente no Rio Grande do Sul. A pobreza, a exclusão social, a falta de moradia e alimentação adequada, por exemplo, poderiam ser resolvidos em tempo recorde caso as estruturas que hoje estão concentradas nas mãos de poucos fossem disponibilizadas aos necessitados.

Toda essa mobilização da direita em torno da tragédia do Rio Grande do Sul tem como finalidade produzir agitação política, que a princípio se reflete na internet em redes virtuais em polêmicas entre os ricos, a mídia, o governo, setores da esquerda ou até mesmo de quem pensa a resolução do problema colocado por outras vias. Esse processo também ajuda a fundamentar o projeto político da direita, que ao politizar a tragédia disputa a interpretação dos fatos a partir do seu viés ideológico e de classe.

A questão não é se os ricos ajudam ou atrapalham em episódios como este. Essa formulação gera interpretações muito ambíguas, já que é óbvio que qualquer ajuda é necessária e bem-vinda. A questão central é pensar a função dessas intervenções por parte da classe dominante, que para se justificar enquanto classe e se perpetuar no poder abrirá mão de valores éticos fundamentais, transformando a tragédia numa ótima oportunidade de negócios.

[*] Doutorando em História Social – PPGHS (FFP-UERJ)

2 COMENTÁRIOS

  1. Por conta desse uso político do desastre e da propaganda ideológica dos ricos, vamos ver uma avalanche de privatizações no RS, e não acredito que fazer a defesa do controle estatal seja uma estratégia eficiente para fazer frente e conter essa novo desastre que se avizinha.

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