Por Jan Cenek
Até o presente momento, não precisei me exilar devido ao avanço da extrema direita nem fui atingido diretamente pelas mudanças climáticas, mas já tive que fugir do barulho para não enlouquecer. Aluguei uma casa distante para ter um pouco de tranquilidade sonora: ler, escrever e trabalhar minimamente em paz. Por tudo isso às vezes penso que o barulho é o grande problema da humanidade. Mais que o capitalismo, que insiste em não morrer; mais que a extrema direita, que avança sem cessar; mais que as mudanças climáticas, que provocam desastres ambientais.
O barulho é onipresente e onipotente: atravessa paredes, mesmo as grossas, como as dos conventos. Aviões cruzando o céu. Helicópteros levando capitalistas. Guardas-noturnos apitando na madrugada. Coletivos transportando pessoas. Caminhões carregando entulho. Sirenes anunciando ambulâncias e viaturas. Construções infinitas que só servem para produzir ruído. Cães latindo por princípio. Maritacas escandalosas. Casais brigando. Bebês chorando. Televisores ligados 24 horas por dia. Gente idiota ouvindo música ruim a todo volume. E, sobretudo, motocicletas infernizando a vida dos seres vivos. Não há som mais irritante do que o emitido pelas motocicletas.
Contra o barulho existem apenas alternativas parciais: protetores auriculares, janelas antirruído, isolamento acústico, voltar às cavernas. Já tentei quase todas e nenhuma funcionou a contento. Certa vez constatei, abismado, que equipamentos de proteção individual próprios para trabalhadores que utilizam britadeiras não são capazes de bloquear o barulho do trânsito, apesar das paredes e janelas que me separavam da rua. Cheguei a me viciar em ventiladores, não devido ao aquecimento global, mas pelo som constante, que abafa minimamente o escândalo dos aviões, helicópteros, busões, caminhões, ambulâncias, viaturas, cães, maritacas, pessoas e, sobretudo, motocicletas. Mais de uma vez tive tosse causada pelo uso excessivo e “desnecessário” — mas inevitável — de ventiladores.
Mesmo morando numa casa afastada, não escapei totalmente do barulho. As motos ficaram mais distantes, ouço-as de longe, num volume minimamente tolerável. Mas sempre há algum vizinho chato que liga o som alto no final de semana, como se fosse absolutamente incapaz de suportar a solidão, como se pedisse socorro. Geralmente, ligam o som e ouvem baixo durante curtos espaços de tempo, talvez por saberem que estão incomodando, mas depois perdem a vergonha, aumentam o volume e tiram a paz de toda a vizinhança.
Porque me irrito profundamente com o barulho, sempre gostei da última frase do príncipe Hamlet: o resto é silêncio (the rest is silence). Se o resto é silêncio, desconfio que não ser seja um alívio: “Morrer; dormir; só isso. E com o sono — dizem — extinguir as dores do coração e as mil mazelas naturais” [1]. Extinguir, também, o barulho. Quem morre está livre do barulho, creio! A morte é um estado silencioso. Desconfio que seja exatamente por essa razão que as pessoas escutam música no volume máximo e mantêm televisores ligados 24 horas por dia. O silêncio lembra que vamos morrer. Mas o que para alguns é desesperador, para outros, como o poeta Homerinho, é um alívio: “depois do fim, o silêncio: finalmente!”
Jorge Luis Borges [2] fez ressalvas às últimas palavras do príncipe Hamlet. Haveria algo de fingido nelas, como se fossem do autor e não do personagem, como se Shakespeare estivesse mais preocupado com seu ofício de poeta do que com o personagem real, como se quisesse impressionar. Para Borges, há algo de fingimento nas últimas palavras de Hamlet, haveria nelas uma “ressonância falsa”. Um homem envenenado e à beira da morte não diria “o resto é silêncio”. Pode ser. Mas as palavras do príncipe realmente impressionam e seduzem. Ainda mais porque o mundo foi tomado pela ditadura do barulho.
Eu havia me mudado para uma casa distante fugindo do barulho. Depois que estava razoavelmente instalado. Organizei o escritório onde leio, escrevo e trabalho. Ocupei uma das paredes com a estante que comprei para montar minha pequena biblioteca organizada em três seções: ensaios, ficção e poesia. Já disseram, acredito que foi Alberto Manguel, que uma boa maneira de conhecer um homem é pela biblioteca dele. Agrupei os livros por ordem alfabética nas três seções. Concluído o trabalho, notei que dispunha de cerca de um metro entre o topo da estante e o teto do escritório. Resolvi preencher o espaço. Coloquei três coleções de CDs em cima da estante. Noel Rosa, Jazz e Música Clássica. Posicionei um rádio ao lado. Coloquei também uma pequena fonte que comprei há tempos, com ilusão de que som das águas cobrisse o insuportável barulho do tráfego. Decorei o espaço com pílulas que na verdade são versos de poetas consagrados e um presente que recebi de grandes amigos, uma pequena escultura de resina com Dom Quixote, Sancho Pança, Rocinante e um burro. Ao lado deles, posicionei uma grande caixa de som, que ganhei, mas ainda não usei, apesar da legítima vontade de vingança contra vizinhos barulhentos, cães chorões e maritacas escandalosas.
Na estranha composição que montei sem perceber os efeitos de imediato, Dom Quixote e Sancho Pança cavalgam sobre os livros. O escudeiro está montado no burro, tem os braços abertos e as mãos espalmadas, com os dedos apontados para baixo, como se não estivesse entendendo alguma coisa. Sancho olha para a esquerda, na direção do cavaleiro. Dom Quixote está montado no Rocinante, tem o peito projetado para a frente, como se estivesse cheio de ar, carrega o escudo num braço, a espada no outro e olha desconsolado para a direita, por cima do escudeiro, como tivesse avistado uma ameaça terrível. Ao lado de ambos, à direita da pequena escultura de resina eu havia posicionado a grande caixa de som que não cheguei a usar. O escudeiro parece não compreender, mas o cavaleiro olha desconsolado para a caixa de som que tem três vezes o tamanho dele, como se fosse um gigante invencível. O semblante desconsolado do meu pequeno Quixote de resina sempre me fascinou e intrigou, mas ganhou ainda mais força e sentido quando posicionei o cavaleiro perto da caixa de som. Dom Quixote parece querer arremessar escudo e espada para longe, tapar os ouvidos e fugir: como se soubesse de antemão que a batalha contra o barulho é uma luta definitivamente perdida.
Notas
[1] William Shakespeare. Hamlet. Porto Alegre: L&PM editores, 2010. p. 67
[2] Jorge Luis Borges. Os escritores: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 217.
Já pensei muitas vezes sobre barulhos, pois ele significo, quem sabe, a fronteira entre as diversas fases que marcaram minha vida.
Minha infância foi tumultuada pela obrigação do silencio, pois meu pai trabalhava à noite e seu sono era sagrado, portanto silenciada a minha sede por existir, como criança afoita pela alegria de ser.
Já na adolescência, ao escolher minhas listas de rock and roll, fui gostar logo de Led Zepellin, com suas guitarras e vocal marcado pela altura de volume, sim, eu gostava de cantar com a banda num tom mais elevado que o de Robert Plant, parancompensar.
Já na fase adulta, eu sempre coloquei as músicas que mais me agradavam para tocar no volume máximo quando limpava a casa, era a forma terapeutic de aguentar o “tranco” me divertindo, dabçabdo e cantando junto com os colisões.
Até que me mudei para perto de u.a coa co.unidade na qual há competições entre os bares e carros com equipamento de som cujas potências são testadas para ver quem possui mais eficácia. E eu passando entre essa desregulada, destemperado, desorganizada, tresloucada e correndo para fugir desesperadamente disso tudo.
Sim, eu adulta em outro momento ainda ouço música alta para faxinas a casa, mas não suporto por nenhum segundo o barulho de duas caixas de diferentes sons a competir quem tem a caixa mais potente.
O barulho infernal das cidades contrasta com a mudez do universo. Nas grandes cidades já não nos lembramos mais como é o som do silêncio. O silêncio é assustador, você tem razão. Me lembro da abertura do filme de Herzog, “O enigma de Kasper Hauser”, o vento no milharal ondulante e a pergunta: “Esses gritos assustadores ao redor são o que chamam de silêncio?”. Lembra o que queremos esquecer, que estamos sozinhos e que o silêncio eterno nos espera.