Por Eduardo Souza Cunha [1]

As cenas iniciais de Zona de Interesse já dão o tom do longa-metragem. Durante quase três minutos, o espectador vê apenas o lento apagamento do título do filme, seguido de um completo breu. O que resta a acompanhar é o som, que nos leva a um aumento da tensão. Prestes a se tornar incômoda, ela diminui quando escutamos cantos de pássaros e passamos à cena seguinte de uma família repleta de crianças e bebês divertindo-se na beira de um rio. Nesse início, destacam-se dois enunciados do filme. Trata-se, primeiro, de um aviso: para notar o essencial não basta estar atento apenas ao olhar, mas também ao que foi invisibilizado. O segundo ponto é uma mostra da aproximação entre o angustiante e o familiar e da ambígua relação entre o intimidante e a intimidade, sensações que nos acompanham até o final.

Dirigido por Jonathan Glazer, o longa-metragem aborda o Holocausto sem mostrar uma cena explícita dos campos de concentração. O enfoque está no cotidiano da família Höss, habitante de uma luxuosa casa que divide muros com Auschwitz. Durante todo o filme, nosso olhar nunca é direcionado para o lado de lá do muro cinzento; observamos apenas o lado de cá, a pequena mansão com seu amplo quintal, incluindo jardim e piscina. A vida mais que confortável da família vem da posição do pai Rudolf, o chefe da administração de Auschwitz a partir de 1940. Sob seu comando, o campo de concentração se tornou um eficaz sistema de extermínio, chegando ao ponto de ser ampliado a três campos. Sua trajetória foi notada pela Inspetoria de Campos de Concentração da SS, que promove Höss a um cargo em Berlim em 1943, obrigando-o a se afastar da sua esposa Hedwig, que decide permanecer ao lado de Auschwitz com os cinco filhos. O retorno de Rudolf ocorre no ano seguinte, quando ele chefia a matança de mais 400 mil judeus húngaros em um período de dois meses na chamada “Operação Höss” [2].

O Holocausto está presente ao longo de todo o filme, mas sempre no pano de fundo. O enredo foca em cenas banais do dia a dia na casa: jantares de família, crianças brincando, adolescentes se beijando, o controle de Hedwig sobre o trabalho doméstico, a visita da sua mãe, Rudolf colocando seus filhos para dormir e assim por diante. É nos detalhes que o Holocausto aparece, como em sons de tiros e gritos ou no fogo dos fornos crematórios que clareia a madrugada. Glazer explicitou suas intenções. “Há um filme que você vê e há um filme que você ouve”, disse o diretor inglês. Em Zona de Interesse, deixar o Holocausto para além do vísivel é representar a invisibilidade produzida pelo nazismo para seguir seus crimes hediondos. Aliás, essa intenção está presente até mesmo no nome do filme, baseado no livro homônimo escrito por Martin Amis. “Zona de Interesse” ou “Área de Interesse do Campo de Concentração de Auschwitz” era o nome dado à área de cerca de 40 km² que circundava os três campos e onde circulavam somente pessoas autorizadas, criada para encobrir as execuções em massa. A tranquila vida dos Höss só é possível por meio desse processo de invisibilidade.

Nesse sentido, o filme traz uma nova representação da tese da “banalidade do mal”, de Hannah Arendt. Para isso, Glazer não tratou o nazismo como algo excepcional, fora do tempo histórico. “Eu queria humanizá-los, queria desmantelar a ideia de que são anomalias, quase sobrenaturais”, afirmou em entrevista ao New York Times [3]. Para isso, uma das estratégias foi espalhar dezenas de câmeras na casa onde se passou a filmagem. As câmeras rodavam simultaneamente e os atores não sabiam o que estava sendo filmado, de que ângulo ou de que local. Assim, produziu-se uma humanização a partir da trivialidade das cenas. A humanização dos nazistas presente no filme não é em nada negligente com seus crimes. Está claro que o cotidiano da casa dos Höss está vinculado com a desumanização presente do outro lado do muro. Afastando-se de interpretar o nazismo como uma anomalia, a decisão de mostrar o dia a dia dos Höss produz identificações com a nossa própria banalidade, fazendo-nos pensar que o convívio muro a muro com o horror não apenas foi possível, como ele é hoje em dia.

É aí que mora o infamiliar no Holocausto. Em 1919 Freud abordou esse afeto no ensaio Das unheimliche [4]. Ao longo do texto são apresentadas três partes nas quais se busca analisar a sensação angustiante surgida da ambígua relação entre o estranhamento e a identificação. Na primeira parte, há um panorama etimológico do termo unheimlich, originado do oposto heimlich. Na ampla gama de possibilidades de significados – não à toa é um dos textos de Freud com maior variedade de traduções – nota-se quatro eixos de oposição entre o familiar (heimlich, referente ao doméstico, o universo íntimo, o próximo, o que é compartilhado por poucos e ao humano) e o infamiliar (unheimlich, referente à rua, o universo público, o distante, o que é revelado a todos e a falta de vida) [5]. Freud nota que os dois polos dentro dessa polissemia têm uma relação instável entre si, sendo comum um significado originado em um deles deslizar para a cadeia significante do outro. Essa instabilidade, que muitas vezes desemboca na separação turva entre o familiar e o infamiliar, é o tema da segunda parte do ensaio. A abordagem passa para uma análise de obras literárias, cujo centro é ocupado pelo conto O Homem de Areia, do escritor alemão E.T.A. Hoffmann. Não é trivial que a seleção das obras tenha como foco a literatura de horror. Freud destaca que a inquietação nascida diante de algo novo e intimidador é, na verdade, o reconhecimento de algo íntimo que foi recalcado gerando, ao mesmo tempo, um distanciamento e uma aproximação.

A ambiguidade entre o intimidador e o íntimo é produzida no longa-metragem dirigido por Glazer. Saímos do filme nos perguntando: “como pode alguém ter uma vida normal lado a lado da barbárie?”. O estranhamento, porém, é apenas superficial. Consideramos um absurdo, pois nos esforçamos para relegar o nazismo e sua tecnologia de extermínio ao esquecimento. Lidamos com o nazismo a partir de uma operação de recalcamento e, quando ele vem à tona, tratamos como se fosse algo estranho, algo estrangeiro. Dentro da ideologia da democracia – que nada mais é do que uma democracia de mercado – o nazismo é considerado um período excepcional, um parêntese no curso da história. Contudo, um olhar atento nos faz observar que o nazismo foi um processo constituinte do nosso presente.

Talvez o melhor analista da relação entre o nazismo e a democracia de mercado tenha sido o alemão Robert Kurz. Em seu ensaio de 1993 sobre o novo radicalismo de direita, Kurz parte do princípio de que os movimentos de extrema-direita do final do século XX não são anomalias ao sistema democrático, mas sim emergem de uma incubação própria da formação da democracia e, nessa formação, o nazismo teve papel central. Frente às reminiscências de formas econômico-sociais não-capitalistas, o nacional-socialismo foi um elemento importante para a modernização liberal. No caso específico da Alemanha, cuja sociedade da República de Weimar manteve características dos tempos do guilhermismo, foi o nazismo que enquadrou a sociedade nos termos abstratos da liberdade e da igualdade, essenciais para o sistema produtor de mercadorias.

Sobre a modernização capitalista, essencial para a democracia de mercado, promovida pelo nazismo, Kurz afirma: “O Estado nacional-socialista impulsionou a igualdade ao transformar o “povo” em massa de iguais sem rosto diante do “Führer” e funcionalizou democraticamente a hierarquização, isto é, a livrou de todo privilégio de nascimento feudal-patriarcal, de oligarquias locais, estruturas especiais inchadas etc. […] O nacional-socialismo promoveu ao mesmo tempo a liberdade, ao alargar o sistema de relações do indivíduo nesse grande espaço abstrato, dissolvendo a velha cultura de estamentos e classes com seus vínculos pessoais no totalitarismo do partido único” [6]. Esse processo histórico, conclui o autor, leva à “roupagem” que moldou a democracia do século XX: “Com isso, trabalho, povo, e nação formam as costuras centrais da “roupagem” da coerência sistêmica, na qual a sociedade tem de “crescer”: o último e mais dinâmico estágio desse crescimento foi a época de guerras mundiais e crise econômica até a metade do século XX. Essa “roupagem” serviu como uma luva apenas no curto verão da prosperidade fordista do pós-guerra; mais tarde, na nova época de crise iniciada no fim dos anos 1970, a sociedade arrebentou as costuras, sobrando apenas farrapos” [7].

Pode-se fazer a objeção de se tratar de um caso específico à Alemanha. Essa visão estreita não percebe que o nazismo esteve ligado historicamente com o desenvolvimento econômico da Europa. Em relação ao passado, ele não foi um raio em céu azul: fez parte de um longo processo histórico que nos remete aos séculos de colonização, nos quais formou-se o progresso dos impérios a partir dos seus holocaustos coloniais. E, diante do que veio a seguir, a influência mais nítida do nazismo está na remodelação das técnicas repressivas, utilizadas em conflitos militares da Guerra Fria, em particular contra os movimentos de descolonização.

Mas a herança do nazismo não se restringiu ao aparato repressivo. Ele também serviu para inspirar estratégias de gerenciamento utilizadas até hoje em grandes corporações. Não à toa enxergamos uma familiaridade no modo como Rudolf Höss lida com o seu trabalho. Parece ser um mero executivo preocupado pela eficiência dos seus projetos sob sua responsabilidade. É assim em uma reunião para discutir a adoção do modelo de fornos crematórios giratórios, logo no início do filme, e em uma reunião com seus superiores, onde os supervisores de campo de concentração estão juntos. Vemos no personagem um engajamento autêntico na busca pela qualidade no trabalho que nos faz lembrar o comentário de Christophe Dejours: “se o sistema nazista de produção e administração funcionava é porque os trabalhadores e o povo contribuíram em massa com sua inteligência e engenhosidade para torná-lo eficaz. Se eles tivessem observado rigorosamente a disciplina, o sistema teria sido paralisado” [8]. Trata-se da busca pela eficiência em busca de recompensas, aliada ao medo da repressão, alimentando as motivações subjetivas para se vincular a um sistema de extermínio e, assim, soterrando qualquer vínculo com a alteridade. Um sombrio mecanismo de coerção, mas também de produção de consenso. A inquietude gerada por esse sistema coloca uma questão à nossa frente: essa máquina de horror nos parece bem próxima. O “zelo no trabalho” mobilizado pelo nazismo para impossibilitar o reconhecimento do sofrimento causado ao outro também existe no nosso cotidiano, agora remodelado pelo neoliberalismo.

O horripilante está em perceber que o estranhamento sentido em relação ao cotidiano da família Höss é, no fundo, uma identificação com o nosso tempo. Constatar o infamiliar, nesse caso, é um importante movimento para deixar de ver o nazismo como um ponto fora da curva histórica e passá-lo a enxergar como um ponto dentro da trajetória que nos trouxe até aqui, em Gaza e em tantos outros lugares hoje. Podemos passar da pergunta “como isso foi possível?” para “como isso é possível?”.

REFERÊNCIAS

Reportagens

“Rudolf Höss, o comandante encarregado de Auschwitz cuja vida familiar é retratada no perturbador filme ‘Zona de Interesse’” de Santiago Vanegas, publicada na BBC: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw8ze62e898o

“How Do You Make a Movie About the Holocaust?” de Giles Harvey, publicada no NY Times: https://www.nytimes.com/2023/12/19/magazine/movies-holocaust-zone-of-interest.html

Livros

Christophe Dejours, A banalização da injustiça social, Editora FGV, 2010

Sigmund Freud, O Infamiliar, Editora Autêntica, 2019

Robert Kurz, A democracia devora seus filhos, Ed. Consequência, 2020

Notas

[1] Membro da Biblioteca Terra Livre, professor de História da rede pública e doutorando em História pela USP.

[2] Ver a reportagem “Rudolf Höss, o comandante encarregado de Auschwitz cuja vida familiar é retratada no perturbador filme ‘Zona de Interesse’” de Santiago Vanegas, publicada na BBC: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw8ze62e898o

[3] Ver a reportagem “How Do You Make a Movie About the Holocaust?” de Giles Harvey, publicada no NY Times: https://www.nytimes.com/2023/12/19/magazine/movies-holocaust-zone-of-interest.html

[4] Diante de uma variada gama de possibilidades, seguiremos aqui a opção adotada pela coleção das Obras Incompletas de Sigmund Freud da Editora Autêntica de traduzir unheimlich pelo neologismo infamiliar. Destacamos um trecho da justificativa do editor e dos tradutores: “Com infamiliar logramos manter a morfologia o mais próximo possível do original alemão, conservando a presença do prefixo de negação (“in-”, em português/Un-, em alemão) como marca do “recalque”. Com isso, impede-se, mas ao mesmo tempo conserva-se, em certa medida, o reconhecimento do que há ali de “familiar/conhecido/doméstico”. Certamente a sensação provocada por algo infamiliar, uma vez que sua familiaridade foi esquecida, recalcada, provoca “inquietação”, “estranheza”, mas, ao mesmo tempo, a sensação de algo bastante íntimo, próximo, familiar”. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares e Gilson Ianinni em nota de Sigmund Freud, O Infamiliar, Editora Autêntica, 2019, p. 117.

[5] Leitura proposta por Christian Dunker em Animismo e indeterminação em “Das Unheimliche”. Ver Sigmund Freud, O Infamiliar, Editora Autêntica, 2019, p. 199-218.

[6] Robert Kurz, A democracia devora seus filhos, Ed. Consequência, 2020, p. 44.

[7] idem, p. 46.

[8] Christophe Dejours, A banalização da injustiça social, Editora FGV, 2010, p. 57.

As imagens que ilustram o artigo são cenas do filme “Zona de Interesse” (2023), de Jonathan Glazer.

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