Genocídio em Gaza: uma resenha

Por Leo Vinicius

 

Neste ano de 2024 foi publicada no Brasil pela Contrabando Editorial uma coletânea de artigos sob título Na Sombra do Holocausto: Genocídio em Gaza. Trata-se de um livro bastante atual, direto e esclarecedor sobre o que ocorre principalmente em Gaza, mas também na Cisjordânia, em termos de violações de Direitos Humanos e política. Com exceção de um artigo, escrito em 2020, todos os outros que compõem o livro foram escritos em 2023.

Em 214 páginas, os onze artigos que compõem o livro estão divididos em duas partes e um prefácio. E é o artigo do prefácio que dá título ao livro. Em Na Sombra do Holocausto, Masha Gessen nos envolve na teia em que hoje, guiado ou não por uma má consciência, faz do Estado alemão provavelmente o mais cego apoiador da política colonizadora, de limpeza étnica e genocida de Israel. A esse propósito vale atentar ao fato de que hoje, assim como sob o período de extermínio nazista, qualquer um, inclusive judeus, são reprimidos pelo Estado alemão se portarem cartazes escrito “Parem o Genocídio” [1].

A primeira parte do livro trata dos presos políticos palestinos. O artigo da Associação de Amparo aos Presos Políticos Palestinos trata das violações de Direitos Humanos após o 7 de outubro de 2023. Alguns dos subtítulos, que dão uma ideia do conteúdo, são: Prisões em massa; Violências, covardias e crueldades; Mortes durante detenções forçadas; Agitação online da extrema-direita para detenção de figuras públicas; Política da fome; Ataque dentro das celas; Negligência médica deliberada; Isolamento forçado e desaparecimentos; Violência contra crianças. O artigo seguinte na verdade é uma entrevista com Layan Kayed, uma estudante universitária palestina e militante de esquerda da Cisjordânia. Na entrevista o leitor poderá perceber que as táticas repressivas utilizadas contra os estudantes que lutam pelo desinvestimento em Israel nos campi dos EUA guardam impressionante semelhança com as táticas usadas contra os estudantes universitários na Cisjordânia, como o banimento de estudantes e pressões para que seja retirado o financiamento de universidades. Layan, no entanto, diferentemente dos estudantes nos EUA, ficou presa por 15 meses. Ela conta como o Estado colonizador procura fazer crer que a ameaça às mulheres viria dos próprios palestinos, sintetizando que “o colonizador-encarcerador sempre tenta nos fazer acreditar que o inimigo é a nossa sociedade, não a colonização sionista que está roubando nossa terra” (p. 78). Ela deixa claro também que os estudantes na Cisjordânia precisam enfrentar não apenas a repressão do exército israelense, mas também da Autoridade Palestina. Layan nos informa que nos próximos anos a população israelense irá igualar a população palestina na Cisjordânia, e termina a entrevista apontando algo que indica a importância do que ocorre na Palestina para o mundo, para além da barbárie e violação de Direitos Humanos produzidas pelo sionismo. Ela aponta que Israel não é um mero representante de interesses de potências ocidentais no Oriente Médio, “mas também um agente ativo da opressão em todo o planeta. Israel é um laboratório de armas, vigilância e tecnologia militares, que exporta para governos opressivos do mundo inteiro” (p. 93). Eu diria que, mais importante do que esse papel no mundo, Israel expande uma fronteira de normalização de violências e práticas a serem usadas por governos e Estados para lidarem com populações e grupos sociais etnicamente, politicamente e/ou economicamente inconvenientes.

O último artigo da primeira parte, de Soraya Misleh, é um grito pela liberdade de Islam Hamad, brasileiro-palestino preso em Israel. Soraya relata o calvário de Islam pelas prisões palestinas e israelenses e traz informações sobre a campanha brasileira para libertá-lo.

No primeiro artigo da segunda parte do livro, A catástrofe iminente e a urgência de detê-la, Gilbert Achcar traz apontamentos sobre a barbárie em andamento produzida por Israel. O segundo artigo é do historiador Rashid Khalid, que se pergunta no título Mudança de paradigma na guerra de em anos contra a Palestina?, e nos traz subsídios para tentar respondê-la.

Genocídio em Gaza: uma resenha

O artigo mais longo da segunda parte é de Daphna Tier, Por que a classe trabalhadora israelense não é uma aliada. Esse artigo de Daphna é fundamental para todo e qualquer militante socialista que busque transformações por baixo e à esquerda (aliás, buscar transformações por baixo e à esquerda deveria fazer parte da própria definição de ser socialista). Daphna Tier escreve uma espécie de atualização do já clássico artigo de 1971 The Class Nature of Israeli Society [2], escrito por três militantes socialistas israelenses. Naquele longo artigo, Haim Haneghi, Moshe Machover e Akiva Orr procuram mostrar, basicamente, que a classe trabalhadora israelense tem seus interesses atrelados ao colonialismo do Estado, o que tem tornado improvável, como mostra a história, o antagonismo à política sionista e uma aliança de classe com o proletariado palestino. Daphna aponta que, com o neoliberalismo e o rebaixamento das condições econômicas dos trabalhadores israelenses, e com a mudança do Estado de bem-estar social para uma economia de guerra, a dependência dos trabalhadores israelenses em relação à ocupação aumentou. A conclusão em forma de analogia é de que “tal como o presidiário, é improvável que os palestinos encontrem aliados nos guardas e nas comunidades, cujos sustentos dependem da prisão. A negação da liberdade para uns é a pré-condição da subsistência de outros” (p. 145).

Em Raça, Palestina e Direito Internacional, Noura Erakat, Darryl Li e John Reynolds nos lembram e nos informam, por exemplo, que em 1975 foi aprovada uma Resolução na ONU reconhecendo o sionismo como uma forma de racismo. Em A Solução Sinai, Lina Attalah apresenta discursos e práticas israelenses que apontam para uma política de expulsão dos palestinos de Gaza e de destruição da estrutura civil após o 7 de outubro. Em Fábrica de assassinatos em massa: inteligência artificial e a destruição industrializada de Gaza, Yuval Abraham detalha, por exemplo, como a política alargada de destruição de alvos civis e de tolerância a ataques com mortes de civis palestinos por Israel difere da sua política anterior a outubro de 2023. A inteligência artificial utilizada por Israel no massacre, por sua vez, cria alvos ininterruptamente, levando a um processo que eu veria analogia com os processos de gamificação e de produção just-in-time tão presentes nos processos de produção e de trabalho pós-fordistas. O artigo de Yuval Abraham pode nos levar a refletir se não estaríamos vendo, em tempo real e às claras, um holocausto na era pós-fordista. As fábricas de extermínio do período de racionalização fabril taylorista desapareceram, porque a fábrica se difundiu e se confundiu com o próprio território das cidades. Se a cidade é a fábrica no pós-fordismo, a cidade é a fábrica de extermínio; o extermínio é produzido no território, just-in-time. Os trens não saem do Gueto para a fábrica-campo de extermínio. O Gueto já é o local da produção do extermínio, junto com o extermínio do próprio Gueto.

O artigo que encerra o livro, de autoria de Sarah Lazare e Maya Schenwar, se chama A violência de Israel jamais trará “segurança” às pessoas, incluindo os judeus. As autoras ressaltam a oposição de judeus às políticas de Israel e defendem a posição de que numa sociedade militarista baseada no etnonacionalismo nunca haverá segurança, a qual só poderá ser uma consequência de uma libertação coletiva que inclua os palestinos.

Na Sombra do Holocausto: Genocídio em Gaza é um livro que merece e deve ser lido e circulado. Feito para informar e para fomentar uma prática antagonista à barbárie estabelecida e em curso: a colonização, o apartheid, a limpeza étnica e o extermínio (estes últimos com imagens em tempo real de bombardeio a campos de refugiados, com crianças queimadas vivas e bebê decaptado). No último dia 6 de junho a secretária-geral de uma organização que está a anos-luz de ser radical, a Anistia Internacional, disse em uma conferência que: “A gravidade das violações cometidas, o fato de as testemunharmos todos os dias… a frágil justificativa das democracias ocidentais, tudo isso alerta para um possível colapso total da ordem baseada em regras” [3]. O véu da hipocrisia dos Estados liberais e das classes dominantes se rompeu, e mais uma vez a única maneira de combater a barbárie estabelecida é pela luta e solidariedade dos de baixo.

Genocídio em Gaza: uma resenha

Notas:

[1] Ver, por exemplo essa entrevista com uma ativista judia que mora na Alemanha: https://www.youtube.com/watch?v=PtlS1ba6PJ8

[2] O artigo pode ser lido aqui: https://newleftreview.org/issues/i65/articles/haim-haneghi-moshe-machover-akiva-orr-the-class-nature-of-israeli-society.pdf

[3] Ver: https://www.middleeasteye.net/news/war-gaza-may-be-curtain-call-international-order-amnesty-chief-warns

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Mona Hatoum (1952-).

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