Por Jan Cenek
A poesia de Ferreira Gullar transporta para tardes que passaram, mede a velocidade da noite, contempla o lento apodrecer das frutas no cesto, reivindica os legumes que ficaram por vender, reconstrói diálogos perdidos em cozinhas e alpendres, fotografa cenas desaparecidas ou não identificáveis a olho nu. O cinema de Silvio Tendler recorta e costura acontecimentos, constrói abrigos contra o esquecimento, conduz por onde a luz é pouca. Do encontro do poeta com o cineasta surgiu a série Há muitas noites na noite [1], cinebiografia do Poema Sujo e do próprio Gullar.
O Poema Sujo foi escrito em Buenos Aires entre maio e outubro de 1975, durante o exílio do poeta. Gullar havia escapado da ditadura empresarial-militar brasileira e do golpe que derrubou Allende no Chile, achou que não escaparia dos militares argentinos, que ensaiavam os primeiros passos de mais uma ditadura. Como havia pessoas sendo torturadas e desaparecendo, como ficou sem passaporte e não podia deixar o país, Gullar imaginou que morreria na Argentina. Quis, então, pôr no papel tudo que tinha para falar, como num testamento. Dizem que quando alguém se aproxima da morte passa-lhe o filme da vida pela cabeça. O Poema Sujo é mais ou menos isso, o filme da vida do poeta, mistura memória e invenção. Curiosamente, Gullar se refugiou na sua cidade natal, São Luís, nas primeiras décadas do século XX, e não em Moscou, Santiago, Rio de Janeiro, Lima ou Buenos Aires, cidades em que morou nos anos 1970. As cenas e imagens do Poema Sujo são de São Luís: as “formigas brotando aos milhões”, o “coito em pé na calçada escura do Quartel”, “a vida a explodir por todas as fendas da cidade” [2]. Como se não bastasse o voo panorâmico sobre São Luís, como se não bastasse o passeio guiado por mangues e becos da cidade, o Poema Sujo ainda gerou duas canções: Bela Bela (com Milton Nascimento) e Trenzinho do Caipira (versos para serem cantados com a Bachiana nº 2, Tocata, de Villa-Lobos). Duas pérolas.
Gullar é um poeta orgânico, seus versos descascam, trocam de cor como a matéria que apodrece. Folhear um livro do poeta é como manejar uma composteira, os versos têm cheiro. Exemplo: “uma goiabeira/ que em certas épocas cheirava escandalosamente/ feito moça” [3]. Nos anos 1950, Gullar foi do Maranhão para o Rio de Janeiro, se aproximou do concretismo e do Partido Comunista. Depois se afastaria de ambos. Nos anos 1970, Gullar se exilou para escapar da ditadura empresarial-militar brasileira. Foi inicialmente para a URSS, depois Chile, Peru e Argentina, onde escreveu o Poema Sujo.
Tenho a sensação de que a poesia Gullar quase secou nos anos 1950, alguns poemas publicados em O vil metal (1954-1960) e os Poemas concretos/neoconcretos (1957-1958) destoam do restante da obra, não são sensuais nem orgânicos. Em entrevista para a Gazeta do Povo, Gullar comentou a desintegração da linguagem nas artes plásticas, penso que o mesmo vale para a poesia, inclusive a dele nos anos 1950 [4]: “se eu decidir usar a minha linguagem verbal para não dizer as coisas, e sim para brincar com as relações entre as palavras, vou desintegrar a linguagem no final. Vira o caos. E foi isso o que aconteceu com a arte dita contemporânea. Costumo brincar, de um modo sarcástico, que esta arte é a Caninha 51, porque como ela não tem linguagem, é só uma boa ideia.” Gullar chegou a afirmar que o concretismo é a arte de quem não tem nada para dizer. Já os concretistas aplicaram-lhe sovas bem dadas. O fato é que a poesia de Gullar é sensual e orgânica, enquanto a poesia concreta é mineral e inorgânica. É natural que tivessem divergências e se desencontrassem.
Já as lutas populares, o Partido Comunista e, sobretudo, o Centro de Cultura Popular (CPC) [5] alimentaram uma arte que secava, mas engajou-se e se reposicionou. É sintomático que o poeta inicie seu primeiro livro da fase pós-concreta com um poema intitulado Meu povo, meu poema, que começa com os versos: “Meu povo e meu poema crescem juntos/ como cresce no fruto/ a árvore nova” [6]. Gullar escreveu poesia da melhor qualidade nos anos 1960, como quando reconstrói a captura do Che na quebrada do Yuro [7]. Fez arte engajada, mas sem perder a qualidade, se não jamais, ao menos quase sempre. O poema até podia ser político, mas devia ser sobretudo poético. Gullar pegou o trem da revolução com sua poesia, mas não seguiu viagem até o fim, era mais artista do que revolucionário. Tivesse que escolher entre uma coisa e outra, provavelmente ficaria com a arte. Ainda que casual e inconsciente, o engajamento nas lutas populares foi uma solução de continuidade para uma poesia que secava. Ou, dizendo de outra forma: o poeta não se engajou nos movimentos populares com a intenção deliberada de revigorar sua arte, as coisas aconteceram naturalmente. As lutas dos anos 1960 adubaram a poesia de Gullar, garantiram-lhe temas e matéria orgânica, mas o poeta pagou um preço alto. É aqui que o cinema de Silvio Tendler conduz por onde a luz é pouca.
Apesar da ótima poesia engajada que escreveu, apesar da atuação política, apesar do exílio, Gullar compunha um segmento jocosamente denominado “esquerda festiva”. Eram mulheres e homens com militância política e boêmia. Ocorre que, por um conjunto de circunstâncias trágicas e cômicas, o poeta foi colocado como dirigente estadual clandestino do Partido Comunista, mesmo sem sê-lo de fato. Resultado: acabou empurrado efetivamente para a clandestinidade quando um militante torturado entregou a informação. Na série de Tendler, é o próprio Gullar quem esclarece que nunca foi dirigente, sua indicação foi parte de uma manobra partidária para barrar o avanço de setores mais à esquerda. Em entrevista concedida à Biblioteca Pública do Paraná, Gullar deu mais detalhes: “Fui eleito para impedir que o Marighella e o Mário Alves empurrassem o partido para a luta armada. Eu, que era contra pegar em armas, achava aquilo uma maluquice, aceitei fazer parte da chapa para neutralizar a influência deles.” O poeta e os familiares pagaram caro pela manobra partidária.
No exílio, Gullar passou pela escola de formação de quadros da URSS. Foi para o Chile e teve que fugir depois do golpe de Estado que assassinou Allende. Passou pelo Peru, não se adaptou e foi para Argentina, onde deu de frente com mais um golpe e mais uma ditadura.
O Poema Sujo foi escrito em Buenos Aires. Mas as cenas e imagens remetem a São Luís. O exílio se tornara insuportável. Gullar afirma que escreveu como quem vomita palavras, como se fossem os últimos versos, o último suspiro. O poeta não retrata diretamente as lutas de seu tempo, prefere se refugiar em espaços, imagens e cenas ocorridas em São Luís, décadas antes: “O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade” [8]. No auge de seu engajamento, correndo risco de ser sequestrado ou morto, o poeta se definia como “combatente clandestino aliado da classe operária” [9]. O adjetivo “aliado” diz muito, Gullar não se colocava como parte da classe operária, definia-se apenas como “aliado”. O Poema Sujo transcorrer em São Luís do Maranhão também é sintomático. Parece um exílio do exílio, uma fuga da fuga, uma tentativa de recomeçar.
Ainda em Buenos Aires, Gullar declamou o Poema Sujo num encontro em que estava presente o poeta Vinicius de Moraes, que trouxe o texto gravado para o Brasil. A fita circulou antes do poema ser impresso, distribuído, lido, comentado e, finalmente, lançado sem a presença do autor, num ato político contra a ditadura empresarial-militar brasileira.
Assim como há muitas noites dentro da noite, há diversos registros de entrevistas e vídeos sobre e com Ferreira Gullar, mas nenhum mostra o homem e o artista de tão perto quanto a série de Silvio Tendler. Um exemplo é a revelação meio kafkiana meio rocambolesca sobre o processo aberto pelos militares brasileiros contra o poeta, Tendler expõe a questão no último capítulo da série.
No final da vida e distante da revolução, Gullar assinou colunas na mídia empresarial e concedeu entrevistas em que sustentou argumentos discutíveis [10]. Mas o tempo e o desaparecimento do poeta separarão as colunas de jornal e as entrevistas da poesia de primeira. Neste ponto Tendler recorta e costura acontecimentos, constrói abrigos e alerta os precipitados. A série Há muitas noites na noite serve como para-raios. O colunista é um cachorro morto, fácil de chutar, que, por isso, nem aparece; mas o poeta é grande, sua poesia está entre o que se escreveu de melhor. O Poema Sujo é um dos maiores da poesia brasileira (em todos os sentidos). A sacada do cineasta é justamente filmar a cinebiografia do poema, porque os versos são o melhor elogio e a melhor defesa do poeta.
Se é verdade que as lutas sociais dos anos 1960 adubaram uma poesia que murchava, como suspeito, é também verdadeiro que a participação política do poeta custou caro: a família fugindo de país para país, filhos adoecidos, separações, prisões, torturas, suicídio de amigos. O tempo urgia e rugia na fuça do poeta. Gullar revela que, provavelmente, só escreveu o Poema Sujo porque estava exilado, mas, se pudesse escolher, preferiria não ter escrito. Teria se engajado nas lutas populares se soubesse o preço que pagaria? Se é verdade que ao se engajar politicamente Gullar renovou sua arte é também verdadeiro que tal aproximação lhe foi pesada. Tendler capta bem essa dimensão, alertando críticos superficiais e linchadores de plantão. Entre o sujeito que foi da “esquerda festiva” para a direita fim de festa, há um crítico de arte respeitável, um perseguido político e, sobretudo, uma poesia de primeira qualidade. Ao reapresentar o Poema Sujo, seu autor e sua história, Tendler separa o colunista do artista e coloca Gullar entre os grandes. Partindo do verso do poeta, o cineasta comprova e alerta: há muitas noites dentro da noite!
Notas:
[1] O título da série de Tendler é um verso adaptado de Gullar. O poeta escreveu “Numa noite há muitas noites”. O cineasta adaptou para “Há muitas noites na noite”. Devido à força do poema Dentro da noite veloz e do livro homônimo, optei por “Há muitas noites dentro da noite”.
[2] Ferreira Gullar. Toda a poesia. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. p. 236.
[3] Ibidem, p. 305.
[4] Entre 1954 e 1960, Gullar escreveu os poemas reunidos em O vil metal. Entre 1957 e 1958, Gullar escreveu Poemas concretos/neoconcretos. A partir de 1962, com Romances de cordel e Dentro da noite veloz, o engajamento do poeta adubou-lhe os versos.
[5] Ferreira Gular era presidente do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1964. Logo após o golpe empresarial-militar, com a destruição do CPC, entrou para o Partido Comunista.
[6] Ibidem, p. 155.
[7] Ibidem, p. 195.
[8] Ibidem, p. 290.
[9] Ibidem, p. 241.
[10] Neste site há uma referência a um argumento discutível do colunista Ferreira Gullar sobre o uso de veículos blindados (“Caveirões”) pela polícia (ver aqui e aqui). Em entrevista para a revista Veja, em 2012, Gullar expôs outros argumentos discutíveis: “O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produz a riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora. É bobagem. Sem a empresa, não existe riqueza. Um depende do outro. O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas”; “A capacidade criativa do capitalismo é fundamental”.
Sempre bom acompanhar seus textos, parabéns pelo conteúdo. Eu conheci Gullar em 1998, mas não me aprofundei.
Depois dessas panorâmicas mostradas por você vou me debruçar sobre ele para enxergar o poeta com mais precisão.
Sempre interessante acender o pavio do interesse literário, obrigada por mais essa.
Gullar ou José Ribamar Ferreira, cujo trixará Sarney (94 anos) ainda vive, vendia mal sua imagem de hedonista: é melhor ser feliz do que ter razão, dizia.
Foi piorando com o passar do tempo. Acontece com a maioria das pessoas que conseguem envelhecer…
Lendo seu texto fui me lembrando de quando li o Poema Sujo, já há muito tempo. Mas agora vejo que o li em fragmentos, não o li na íntegra. Os versos que você transcreve, “o homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade” ressoavam em minha cabeça toda vez que eu via ou lia o nome do poeta. Mas a sequência poética da reflexão é memorável:
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade
mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está
em qualquer outra
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando um vento ali a folheia
a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que um pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo
a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
Partilho da crítica do poeta ao concretismo e tal experiência não caberia no experimentalismo resistente da poética concretista, que despreza o discurso na medida em que ignora a comunicação. Não conhecia o documentário de Sílvio Tendler, vou procurar, tal como a canção de Milton Nascimento.
Cheguei a ler a coluna de Gullar na Folha de São Paulo e me lembro de alguns disparates do poeta, mas também, entre eles, observações interessantes como a de que o liberalismo era facilmente assimilado nas mentes brasileiras porque cada indivíduo era um potencial núcleo empreendedor de sua própria realização pessoal. O diagnóstico do colunista parece ter acertado até aqui.
Agradeço aos comentaristas. Essa interação é gratificante.
Ulisses trouxe uma pixotada do Gullar. Foram muitas. Uma pior que a outra. Duque trouxe uma sacada do poeta. As duas contribuições somadas atestam que havia muitas noites dentro da noite. Ananta comentou a perspectiva de aprofundar a leitura, só por isso: missão cumprida, valeu.
Minha ideia para o próximo mês é discutir mais diretamente a poesia do Ferreira Gullar.
Bom artigo. Grosso modo, em vez da dicotomia arte e revolução, deveríamos buscar compreender a ruptura entre elas. É possível arte e revolução caminharem juntas(Neruda que o diga). No caso de Gullar, seria interessante investigar o por que de uma vez nadando em águas revolucionárias, o poeta preferiu buscar as margens de tal rio e adentrar o terreno pantanoso do neoliberalismo. Mas não exijo do artigo tamanha investigação. Mas a questão continua em aberto, pois se “o poeta é um fingidor”, o fingimento só é tolerável no universo imaginativo/criativo do mundo das artes. E se nele é possível fingir, isso se dá porque por se tratar de uma negação das verdades do mundo concreto. Ao abraçar essas ” verdades” o poeta ainda retém uma flor em suas mãos. Mas é uma flor murcha. Parabéns pelo texto