Por Jan Cenek
Os poetas têm seus temas. Para Mario Quintana, as “coisas simples”: as estrelas, o vento, a morte, o azul, a lua, o céu de Porto Alegre. Para Manoel de Barros, o “delírio do verbo”, as “insignificâncias” e as visões das crianças, como as cores das palavras e os seres que habitam as frestas das calçadas. Para Ferreira Gullar, as coisas esquecidas, as pequenas coisas esquecidas: uma fruta apodrecendo no cesto, uma varanda à margem da tarde [1].
“Poesia não nasce pela vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que não sabia” – declarou Gullar. O poeta se espantava com as pequenas coisas esquecidas: como “um certo jeito de sorrir/ de falar/ que minha mãe identifica como sendo de seu filho/ que meu filho identifica/ como sendo de seu pai” [2]. Há vários caminhos e possibilidades para pensar e desfrutar a poesia de Ferreira Gullar: as relações entre as palavras nos poemas concretos e neoconcretos; as impurezas da vida e da matéria orgânica; o engajamento, como quando escreve sobre as palafitas de São Luís. Minha hipótese é que a principal linha de força da poesia de Ferreira Gullar está nas pequenas coisas esquecidas: que ele recriou, espalhou por toda a obra e concentrou no Poema sujo. Apesar do título, a potência poética do Poema sujo está sobretudo nas pequenas coisas esquecidas, e não exatamente nas impurezas da vida e da matéria orgânica. É que estas são parte daquelas. O próprio poeta esclareceu em versos: “Não quero a poesia, o capricho/ do poema: quero/ reaver a manhã que virou lixo” [3]. No auge de sua capacidade poética, com o Poema sujo – escrito em Buenos Aires, entre maio e outubro de 1975 -, Gullar recriou a cidade de São Luís e a vida utilizando pequenas coisas esquecidas:
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas
balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas
cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do
jantar [4]
O espanto diante das pequenas coisas esquecidas tem a ver com a passagem do tempo, as impurezas da vida e o apodrecimento da matéria orgânica. Dois exemplos presentes no primeiro livro do poeta, A luta corporal (1950-1953). 1º) As pêras [5]: “As pêras no prato,/ apodrecem./ O relógio, sobre elas,/ mede/ a sua morte?” […] “O dia das pêras/ é o seu apodrecimento.” 2º) Um programa de homicídio [6]: “Porque estou morto é que digo: o apodrecer é sublime. Há porém os que não apodrecem. Os que traem o único acontecimento maravilhoso de sua existência. Os que, súbito, ao se buscarem, não estão… Esses são os assassinos da beleza, os fracos. Os anjos frustrados, papa-bostas! Oh como são pálidos!”
Se “apodrecer é sublime”, inevitavelmente Gullar se espantaria com a passagem do tempo. Não foi o único que seguiu esse caminho. O haikai, por exemplo, fotografa a insustentável leveza do que que não vai se repetir. É o instante reconquistado, como definiu Octavio Paz [7]: rã mergulhando no tanque, caramujo escalando o monte Fugi, chuva pingando na roseira. No movimento captado pelo haikai, a iluminação (satori) sugere imagens que associamos ao belo e ao agradável. Com Gullar é o contrário. O poeta reconquista o instante para registrar a turva passagem do tempo, fixando o que é banal e repetitivo, o que está abandonado e apodrece, as impurezas da matéria orgânica e, sobretudo, as pequenas coisas esquecidas. É comum as famílias decorarem suas casas com imagens naturais e reconfortantes: crianças felizes correndo na grama, frutas coloridas no cesto. A poesia de Ferreira Gullar nos lembra que o tempo passa e que toda matéria orgânica apodrecerá, incluindo as crianças felizes, as frutas coloridas do cesto e as famílias. Nem os retratos dos mortos escapam da decomposição. Mas, para o poeta, “apodrecer é sublime”. É preciso contemplar a beleza da decomposição e das impurezas [8]: “O odor/ do corpo é impuro,/ mas é preciso amá-lo.”
No Poema sujo é sublime a reconquista do instante por meio de pequenas coisas esquecidas num canto do planeta, nas primeiras décadas do século XX, mais precisamente em São Luís, no estado do Maranhão, no nordeste do Brasil:
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo [9]
[…]
sobrados cobertos de limo,
cheios de redes e lembranças
na obscuridade [10]
[…]
vozes perdidas na lama
domingos vazios [11]
Gullar utiliza um método interessante para reinventar pequenas coisas esquecidas: altera a velocidade de dias, tardes e noites. Se há muitos dias dentro do dia, muitas tardes dentro da tarde e muitas noites dentro da noite; é porque há muitas pequenas coisas esquecidas. Já existem recursos para acelerar áudios, reduzindo a porosidade entre palavras, sílabas e frases. Tudo ocorre duas ou três vezes mais rápido que o normal. Gullar costuma fazer o inverso, reduz a velocidade para aumentar a porosidade entre palavras, sílabas, frases e versos. É quando surgem as pequenas coisas esquecidas: como os “ventos soprando verde nas palmeiras” [12]. Daí a constatação de que há muitos dias dentro do dia, muitas tardes dentro da tarde e muitas noites dentro da noite. Se a poesia está nas pequenas coisas esquecidas, é preciso reduzir a velocidade para contemplar o que normalmente não se enxerga. Uma maçã apodrecendo na fruteira, por exemplo. Gullar concentra o foco na maçã e reduz a velocidade do movimento. Cresce o espanto. É como se estivéssemos na cena sentindo a passagem do tempo. Uma maçã não apodrece na fruteira com a mesma velocidade que um cadáver se decompõe num quarto vazio. Uma cárie não cresce no dente com a mesma velocidade que o sol se movimenta na tarde de uma Cidadezinha qualquer [13]. Para contemplar a beleza do apodrecimento é preciso reduzir a velocidade. Drummond se diverte e diverte com a lentidão de uma cidadezinha qualquer: “Casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras/ pomar amor cantar./ Um homem vai devagar./ Um cachorro vai devagar./ Um burro vai devagar./ Devagar… as janelas olham./ Eta vida besta, meu Deus.” Gullar vai devagar pela cidadezinha qualquer: registra o beijo assustado entre as árvores frutíferas, o apodrecer de bananas e laranjas caídas no quintal, olha para dentro das janelas captando cenas esquecidas nas cozinhas e coitos esquecidos no fundo dos quartos. Em suma: “a vida a explodir por todas as fendas da cidade” [14]. Por mais risível e besta que seja, a vida em qualquer cidadezinha tem uma dimensão única: é composta por pequenas coisas esquecidas. É o que intrigava o poeta e o levou a revelar e reinventar a cidade de São Luís, no Maranhão, nas primeiras décadas do século XX: “constelações de alfabeto/ noites escritas a giz/ pastilhas de aniversário/ domingos de futebol/ enterros corsos comícios/ roleta bilhar baralho” [15].
Em poema dedicado à escultura de Mary Vieira, João Cabral [16] cravou: “dar a qualquer matéria/ a aritmética do metal” […] “dar à escultura o limpo/ de uma máquina de arte”. Com Gullar é o contrário. O poeta se espanta com a aritmética da matéria orgânica, inclusive e principalmente quando se decompõe, como numa composteira. Para Gullar, apodrecer é sublime e, se é assim, o poema precisa ter cheiro, deve ser sujo e poroso:
Há quem pretenda
que o seu poema seja
mármore
ou cristal – o meu
o queria pêssego
pêra
banana apodrecendo num prato [17]
O contraste Cabral x Gullar é interessante. Nos versos dedicados a Mary Vieira é como se Cabral falasse da sua própria poética, que é mineral. O poeta, como o engenheiro [18], “sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água.” Já a poética de Gullar é orgânica, “porque nos vegetais/ é que mora o delírio” [19]. Na vertigem do dia [20], o poeta se espanta com a carnalidade turva das horas, explora a finitude e as impurezas da vida e da matéria orgânica:
Introduzo na poesia
a palavra diarreia
Não pela palavra fria
mas pelo que ela semeia [21]
Curiosamente e de forma quase indiscreta, o interesse de Gullar pelas pequenas coisas esquecidas e, por tabela, pela passagem do tempo e pelas impurezas da matéria orgânica, está presente nos poemas que escreveu sobre a morte. A finitude da existência sempre intrigou os poetas, que em geral exploram a saudade, a ausência e o vazio. O próprio Gullar fez isso mais de uma vez. Exemplo [22]: “Se morro/ o universo se apaga como se apagam/ as coisas deste quarto/ se apago a lâmpada”. Mas há outra dimensão da morte, quase indiscreta em Gullar: o espanto diante da decomposição e do apodrecer do corpo. Sobre a morte de Oswald de Andrade [23], ele provoca dizendo que o lenço em que o modernista assoou o nariz pela última vez foi uma bandeira nacional, mas o espanto e o sublime do apodrecimento também aparecem: “mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical”. No poema sobre a morte de Clarice Lispector [24], o espanto diante da ausência se mistura à indiferença do mundo, passando pelo apodrecimento da matéria orgânica: “Enquanto te enterravam no cemitério judeu/ do Caju/ (e o clarão de teu olhar soterrado/ resistindo ainda)/ o táxi corria comigo à borda da Lagoa/ na direção do Botafogo”. Clarão do olhar resistindo à escuridão do enterro ou aos vermes? Talvez as duas coisas, inclusive porque uma não está separada da outra. Já no poema Glauber morto [25], Gullar descreve a cena – o cadáver em cima da cama no quarto vazio – sem se preocupar com a indiferença do universo, concentra-se na equipe médica: “Como já não come/ como já não morre/ enfermeiras e médicos/ não se ocupam mais dele./ Cruzaram-lhe as mãos/ ataram-lhe os pés. Só falta embrulhá-lo/ e jogá-lo fora.” Acrescento: para apodrecer. Mas um cadáver no quarto vazio não apodrece como uma banana no balcão da quitanda, não forma “um sistema de moscas e de mel” [26]. Há muitos apodrecimentos dentro da decomposição. Há quem filme enterros, como Glauber Rocha fez com Di Cavalcanti e depois fizeram com o próprio cineasta. Há quem, como Gullar, se espante com impurezas e decomposições, essas pequenas coisas esquecidas, essas pequenas coisas que tentamos esquecer. O poeta nos faz lembrar que uma mulher na cozinha não apodrece como uma pera no cesto, que um operário na fábrica não apodrece como um bife na marmita, que um gato no apartamento não apodrece como a ração do gato na varanda do apartamento, que um burguês não apodrece como o legume que ficou por vender.
Era 1975, Gullar estava em Buenos Aires, já havia escapado das ditaduras brasileira e chilena, pensou que não escaparia dos militares argentinos, que ensaiavam mais um golpe de Estado. Então, resolveu escrever uma espécie de testamento poético, saiu o Poema sujo: recriação da cidade de São Luís por meio de pequenas coisas esquecidas, lembrete indelével de que a vida é provisória e suja. Mas um poeta não apodrece como uma fruta porque é “um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas” [27]. O sonho do poeta Ferreira Gullar – especialmente no Poema sujo – é cheio de pequenas coisas esquecidas, de impurezas e decomposições: como um “trem sem destino […] cantando pela serra do luar” [28]; ou uma “bocetinha que parecida sorrir entre as folhas de/ banana entre os cheiros de flor e bosta de porco” [29]; porque “o apodrecer de uma coisa/ de fato é a fabricação/ de uma noite” [30].
Gullar declarou que a poesia nasce do espanto com as coisas que via. O espanto com a poesia de Gullar nasce sobretudo das pequenas coisas esquecidas, especialmente as empoeiradas e as sujas, que o poeta recriou, reinventou e reposicionou.
Notas
[1] Ferreira Gullar. Toda a poesia. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. p. 16.
[2] Ibid., p. 239.
[3] Gullar, op. cit., p. 304.
[4] Gullar, op. cit., p. 235.
[5] Gullar, op. cit., p. 18-19.
[6] Gullar, op. cit., p. 22.
[7] O livro dos HAI-KAIS. 2. ed. Massao Ohno Editor: São Paulo, 1987.
[8] Gullar, op. cit., p. 45.
[9] Gullar, op. cit., p. 238.
[10] Gullar, op. cit., p. 263.
[11] Gullar, op. cit., p. 242.
[12] Gullar, op. cit., p. 245.
[13] Carlos Drummond de Andrade. Nova reunião: 23 livros de poesia – volume 1. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009. p. 30-31.
[14] Gullar, op. cit., p. 236.
[15] Gullar, op. cit., p. 234.
[16] João Cabral de Melo Neto. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 47-48.
[17] Gullar, op. cit., p. 362.
[18] João Cabral de Melo Neto. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 34.
[19] Gullar, op. cit., p. 388.
[20] Na vertigem do dia é o livro que reúne poemas de Gullar escritos entre 1975 e 1980, é, também, o nome da coluna semanal que o poeta manteve na Rádio Cultura FM de São Paulo entre 2013 e 2016.
[21] Gullar, op. cit., p. 156.
[22] Gullar, op. cit., p. 217.
[23] Gullar, op. cit., p.73.
[24] Gullar, op. cit., p. 303.
[25] Gullar, op. cit., p. 351.
[26] Gullar, op. cit., p. 332.
[27] Gullar, op. cit., p. 233.
[28] Gullar, op. cit., p. 245-246.
[29] Gullar, op. cit., p. 233.
[30] Gullar, op. cit., p. 258.
Jan Cenek…a mim é difícil deparar com o tema da decomposição da matéria e seu destino inexorável sem me lembrar imediatamente da força poética e da vertigem da métrica do autoproclamado “poeta raquítico”, o paraibano Augusto dos Anjos, que li muito quando era moleque, muito mais que o poeta maranhense, e que me deixou marcas. Mas a morte, desfecho final do apodrecimento em Gullar e da decomposição da matéria em Dos Anjos, leva neste último ao espargimento do núcleo egoico do sujeito, identidade que em Gullar me parece estar sob experiência a partir da finitude do eu poético, seu desaparecimento, mas que conserva seu eixo de identidade. Em suma, se em Dos Anjos a desagregação absurda do eu precede o cadáver, em Gullar o cadáver se antepõe sem tempo para o desmantelamento do eu. Claro, comparo um tema central no poeta paraibano com o que em Gullar talvez seja tema tangente, mas há sensibilidade poética para o caso nos dois.