Por Granamir

Preâmbulo

Marxismo e Psicanálise têm em comum a característica de serem um tipo de prática que é indissociável da teoria, e vice-versa, uma teoria que só faz sentido como reflexão sobre uma certa prática. Procuraremos discutir nesta seção algumas particularidades da relação entre esses dois campos, a partir dessa característica comum, mas antes cabe fazer uma observação. Falamos aqui em “marxismo” genericamente como sinônimo de teoria social colocada a serviço da luta contra o capital, mas sabemos que a criação de um tal tipo de teoria não é monopólio de Marx e de continuadores inspirados em sua obra, pois há outros autores e correntes de pensamento a serem considerados, e sabemos também que o marxismo majoritário, como movimento político realmente existente, falha em grande parte justamente por desconsiderar em sua prática as advertências e ensinamentos de algumas dessas correntes, como o anarquismo e os ramos minoritários do marxismo, os de tipo libertário, conselhista, autonomista e heterodoxo. Mas para efeito da comparação que estamos procurando traçar, por motivo de simplificação, seguiremos inicialmente falando em “marxismo” naquele sentido genérico, para entrar nas distinções mais adiante, quando for apropriado.

 

Prosseguindo então na comparação com a Psicanálise, talvez por isso, pela característica comum da indissociabilidade entre teoria e prática, ambos nunca foram inteiramente aceitos pela instituição que, na sociedade burguesa, se coloca como guardiã oficial da teoria em estado puro, a universidade. A teoria marxista do valor e a dialética marxista não são consideradas academicamente “científicas”; da mesma forma como, vez por outra, acadêmicos das mais diversas áreas se empenham na peculiar cruzada para demolir a Psicanálise por não ser também suficientemente “científica” [1]. A contaminação com a prática da luta de classes e o projeto da ruptura radical da ordem social, de um lado; e com a experiência emocional única de cada sessão psicanalítica, de outro, são pecados imperdoáveis dessas duas correntes, do ponto de vista dos guardiões profissionais da pureza teórica na torre de marfim universitária.

Claro, essa afirmação de que ambos os campos não são inteiramente aceitos na academia requer importantes ressalvas, pois é evidente que houve uma assimilação parcial de ambas. Durante um período, muitos militantes com formação teórica marxista encontraram como refúgio e meio de vida justamente a profissão de professor universitário, em geral na área das chamadas ciências humanas (o que serve como um dos ingredientes para a lenda olavista/bozista do “marxismo cultural”). Certamente, esse tipo de percurso de muitos marxistas pode ajudar a explicar uma certa acomodação, burocratização e abandono da busca real pela transformação social radical, por parte de alguns setores. E da mesma forma, muitos psicólogos e psiquiatras com a devida legitimação institucional dos respectivos conselhos profissionais reconhecem a potência da Psicanálise como linha de trabalho psicoterapêutico, e enveredam também por essa formação adicional, muito embora o próprio Freud, no célebre texto sobre a “Análise Leiga”, tenha defendido, corretamente, que a formação em Psicanálise tem pré-requisitos próprios, que não dependem de uma formação anterior em Psicologia ou Medicina.

Outra ressalva neste ponto é a consideração de que teoria e prática, que tanto o marxismo como a Psicanálise têm como indissociáveis, não são necessariamente simultâneas, e não estão fundidas em proporções idênticas nas mesmas pessoas e nos mesmos espaços sociais. A teoria e a prática têm uma autonomia relativa, um funcionamento específico, uma legalidade ontológica própria, mesmo sendo indissociáveis. E tão importante quanto isso, não têm superioridade hierárquica uma sobre a outra. Estar num piquete de greve ou numa ocupação não é a mesma coisa que analisar a correlação de forças num determinado país ou localidade que vão tornar aquela luta possível ou que tirar lições após o processo; são atividades diferentes, e no entanto, uma não faz sentido sem a outra, e uma não é superior ou dirigente em relação à outra. Da mesma forma, as teorias psicanalíticas recuam para o segundo plano na mente do analista no momento da sessão, que requer um outro tipo de atitude e postura (que Freud chamava de “atenção flutuante”), mas devem necessariamente retornar depois, no momento da supervisão ou do relato de um caso clínico.

Prosseguindo com a tese da indissociabilidade entre teoria e prática como característica comum, talvez isso ajude a explicar porquê, coincidentemente, algumas das elaborações mais fecundas do marxismo do século XX tenham vindo justamente do diálogo com a Psicanálise, que foi inspiração importante para algumas das correntes mais interessantes dentro desse campo, como a Escola de Frankfurt e a Internacional Situacionista. Chega-se mesmo a falar num “freudo-marxismo”, para classificar autores fundamentais em ambos os campos, como Wilhelm Reich, Erich Fromm e Herbert Marcuse, mesmo com todas as diferenças, particularidades e desníveis em suas obras.

Na contramão desse diálogo, as universidades, enquanto instituições da sociedade burguesa, tradicionalmente se organizam segundo pressupostos da visão de mundo liberal, reproduzindo uma separação fictícia entre economia, política, história, sociedade, antropologia, psicologia, pedagogia, cultura, arte, o que dá origem a disciplinas “científicas” artificialmente compartimentadas. As diversas esferas da realidade social e natural podem e às vezes devem ser estudadas em separado, mas essa separação não pode ser absoluta e o momento da interconexão universal não pode ser negligenciado. É justamente a rejeição dessa estrutura compartimentada e a busca do ponto de vista da totalidade que dão aos melhores ramos do marxismo a sua vantagem epistemológica sobre a ciência social burguesa. A busca teórica da articulação dialética entre as diversas esferas da vida social num todo coerente é indispensável para a luta prática pela transformação radical da realidade, tendo sido a própria razão para a criação do marxismo. E é o que permite, também, aquele diálogo com a Psicanálise que já foi tão fértil em outros momentos.

A autonomia do marxismo e da Psicanálise em relação às instituições do saber oficial é uma vantagem dessas duas correntes em relação às formas burguesas de teoria social e teoria da subjetividade. Mas assim como existe a prática militante sem teoria, também existe a teoria sem prática, ambas igualmente ineficazes. Quando os integrantes desses dois campos extrapolam a autonomia relativa da esfera teórica para um grau quase absoluto, afastando-se também das exigências da prática, surgem alguns fenômenos deletérios, que é importante mencionar. Ambos os saberes são auto-regulados, de modo que seus praticantes não admitem fiscalização externa, muitas vezes dialogando apenas entre os seus pares, o que por vezes resulta numa espécie de deriva para o diletantismo.

Não faria o menor sentido a existência de uma instituição oficial que certificasse que um marxista seja realmente marxista. A prática é o critério de verdade [2], ou seja, a relevância das elaborações para a luta contra o capital é que as credencia como teoricamente válidas ou não. Da mesma forma, os psicanalistas não se formam em faculdades de Psicologia ou de Medicina, mas em escolas separadas, que garantem os requisitos (estudo teórico, análise pessoal e supervisão) que outros tipos de instituição não poderiam propiciar. Essa característica da autonomia relativa da teoria e da auto-regulação acaba dando margem para o diletantismo e o sectarismo, em que os estudiosos autodidatas criam em torno de si seitas de seguidores desconectadas de qualquer forma de intercâmbio intelectual sério, ou se poderia dizer, de qualquer princípio de realidade.

Qualquer marxista pode (e muitos comicamente o fazem) publicar teses e resoluções e proclamar que a sua “organização revolucionária” é a continuação autêntica da IV Internacional ou do “verdadeiro marxismo revolucionário”, como se isso tivesse alguma importância, e se a realidade desmentir a seriedade dessa proclamação, pior para a realidade, pensam os sectários. Da mesma forma, a liberdade de elaboração que os psicanalistas concedem a si mesmos, na qualidade de adeptos de uma teoria/prática auto-regulada e independente da academia, dá margens para uma certa cota de abusos, absurdos e prestidigitações, que fazem com que muitos psicanalistas de solidez duvidosa sejam vistos pelos setores mais cientificistas como evidências de que tudo não passa de mais um tipo de charlatanismo, não diferente do curandeirismo, do xamanismo, da astrologia, do tarô, da auto-ajuda, etc. Para quem observa de fora, com a dose suficiente de má vontade, a afirmação dos psicanalistas de que a análise pessoal é indispensável para a formação do analista lembra algo como a defesa de um tipo de conversão religiosa, e não é diferente da afirmação de qualquer religioso de que a sua fé lhe basta como uma forma de saber.

Apresentação do livro

Destacadas essas semelhanças e particularidades da relação entre teoria e prática no marxismo e na Psicanálise, porém, é importante mencionar o relativo declínio da colaboração entre esses dois campos, nas últimas quatro ou cinco décadas, o que certamente tem a ver com as peripécias da própria luta de classes, como procuraremos também elucidar mais adiante. Mas antes, cabe dizer que a nossa tentativa de arriscar uma interpretação própria para esse divórcio lamentável foi motivada pela leitura de um autor que procurou justamente, à sua maneira, reunificar as contribuições dessas duas fontes. Na busca de retomar o diálogo entre a crítica social de inspiração marxista e a Psicanálise, o filósofo e militante italiano Franco Berardi, também conhecido pelo apelido “Bifo”, nos oferece em seu livro mais recente, “o Terceiro Inconsciente”, uma proposta de periodização para as fases históricas da subjetividade na sociedade capitalista.

O livro é um conjunto de textos escritos no período mais agudo da pandemia de covid-19, tendo sido concluído para publicação em junho de 2021. Não possui, assim, uma estrutura sistemática planejada para expor um certo conjunto de argumentos, mas se propõe a apresentar as ideias de maneira mais solta, como hipóteses e sugestões (o que não significa que o autor deixe de fazer afirmações contundentes e formulações audazes). Um dos efeitos do livro é a abertura que ele proporciona ao leitor para revisitar o que cada um estava pensando e sentindo naqueles traumáticos anos de 2020 e 2021. Provavelmente, o tema da periodização histórica do inconsciente surgiu no momento de amarrar os textos para publicação.

Conforme Berardi observa, Jung foi o primeiro a falar em “inconsciente coletivo”, mas, para sermos mais precisos, o que este conceito designa, na verdade, é um inconsciente de tipo universal, no qual residem os arquétipos do imaginário onírico e mitológico do homo sapiens. O que o livro procura delimitar, sem desconsiderar o que Jung propõe, é um inconsciente social, que é historicamente mutável. Muitos leitores notarão a ausência de Lacan no livro, justamente o fundador de uma linha de Psicanálise que compreende o inconsciente como basicamente social (como “discurso do outro”). A nosso ver essa ausência não é prejudicial, mesmo por motivos diferentes dos do autor [3], pois, malgrado a importância de Lacan, a sua inspiração é o estruturalismo, corrente da teoria social fundamentalmente problemática, que tem como falha crucial compreender o social de maneira estática, e não historicamente mutável, não como produto da luta de classes.

Voltando então ao tema, de acordo com a periodização proposta no livro, cada época histórica ou tipo de sociedade teria o seu tipo correspondente de inconsciente. O primeiro inconsciente corresponde exatamente àquele que foi identificado e mapeado por Freud, na própria fundação da Psicanálise. A teoria freudiana do aparelho psíquico se completa com a elaboração da chamada “segunda tópica”, em que surge a descrição de uma estrutura composta por “id” (inteiramente inconsciente), “ego” (consciência) e “superego” (parcialmente inconsciente). Dentre os componentes desse primeiro inconsciente temos, assim, o “id”, em permanente estado de insatisfação pela impossibilidade de realização das pulsões, e também partes do “superego”, que é o agente direto daquela impossibilidade, no papel de instância repressora. A composição do aparelho psíquico em que o superego tem uma função de repressão internalizada correspondia ao tipo de subjetividade característica da fase histórica do capitalismo taylorista/fordista e keynesiano/desenvolvimentista, com sua estrutura hierárquica rígida, a qual se manifestava numa espécie de “fabricalização” de toda a vida social. A fabricalização impunha a conformação dos indivíduos a um certo tipo de estrutura familiar, sob a égide do patriarcado, e também a um certo conjunto de instituições que organizavam esses indivíduos enquanto massas, tais como a escola pública universal, o serviço militar obrigatório, a indústria cultural de massas, os esportes, os sindicatos, associações e partidos, as instituições do bem-estar social organizadas em torno do Estado, etc.

A sociedade capitalista desse período exigia uma sublimação das pulsões sexuais e a negação parcial da sua realização, em prol do seu direcionamento para o trabalho, a ser explorado mediante a extração da mais-valia absoluta, sob a disciplina daquele conjunto de instituições, tendo como subproduto mais típico as neuroses, a primeira forma de mal-estar psíquico abordada pela Psicanálise. Essa configuração muda quando a modernização capitalista de tipo taylorista/fordista e keynesiano/desenvolvimentista encontra limites internos e entra em crise, na virada para a década de 1970, provocando uma reorganização do capitalismo e exigindo consequentemente novas formas de gestão do trabalho, com mudanças correspondentes também na forma de constituição da subjetividade. A ênfase muda da mais-valia absoluta para a relativa, o lazer passa a estar organizado em torno do consumismo, o patriarcado é parcialmente erodido e novos arranjos de família são gradualmente admitidos, o bem-estar social é substituído pelo neoliberalismo, o associativismo de massas pelo individualismo.

Essa movimentação das placas tectônicas da estrutura social dá origem a um segundo inconsciente, prevalecente no último meio século, que o autor chama de deleuziano, tomando como delimitação as elaborações lançadas por Deleuze e Guattari em seu livro “O Anti-Édipo”. A nova forma de mal-estar predominante é o sofrimento narcísico e a dissociação psicótica, experimentada por indivíduos lançados à guerra de todos contra todos da concorrência capitalista, e agora sem poder mais contar com as estruturas coletivas anteriormente mais presentes, que bateram em retirada (família tradicional, escola pública, sindicatos, etc.); mas ao mesmo tempo seduzidos pelo imperativo contido na famosa frase atribuída a Deng Xiaoping: “enriquecer é glorioso”.

As hierarquias mudam para um formato mais flexível, dissimulado, e ao invés da repressão direta o sistema procura engajar os indivíduos na fantasia de que todo tipo de gozo está acessível e pode ser alcançado mediante a performance adequada, só depende de você. Sai de cena a repressão autoritária direta e sobe ao palco uma estratégia de captura da subjetividade por meios motivacionais, amigáveis e “participativos”. Desenvolve-se a erotização do consumo e do desfrute da riqueza capitalista, naquilo que Marcuse chamou de “dessublimação repressiva”, via promissora de interpretação que, no entanto, deixou de ser explorada pelos marxistas e não é sequer citada no livro, mas que vale uma menção neste momento do texto. A dessublimação é a realização parcial de alguns impulsos, mas nunca de uma forma que seja autônoma e plena, e sempre de modo a conformar os indivíduos às margens de movimento da sociedade existente, sendo por isso repressiva, ainda que de forma indireta.

Essa válvula de escape permite que a energia subjetiva que poderia se tornar combustível para a revolta seja parcialmente escoada, de modo controlado, antes que se acumule a ponto de se tornar explosiva. Com base nesse mecanismo, desenvolveu-se uma sofisticada dialética entre desvio e recuperação, pela qual o sistema concede uma certa margem de liberdade para a criatividade cultural, apenas para que os produtos dessa criatividade desviante sejam depois convertidos em mercadorias, subsumidos à lógica do valor, desprovidos do seu potencial emancipatório, e assim recuperados e revertidos em instrumentos de pacificação e gestão a serviço do sistema. Essa dialética é bem nitidamente perceptível no fenômeno em que a juventude cria sucessivos meios de expressão de desejos e aspirações, que logo em seguida são convertidos em modismos, estilos de vida, estéticas de consumo e identidades na prateleira. Esse fenômeno aconteceu com a chamada “revolução sexual” e a contracultura, com o rock e cada um dos seus subgêneros, com o rap e a cultura hip hop [4], com os esportes radicais, com a cultura de compartilhamento no início da internet [5]; e em diversos outros campos.

Encerrando esse parêntesis sobre a pertinência da contribuição de Marcuse relativa a este ponto, retomamos a exposição das características da sociedade neoliberal e seu inconsciente deleuziano, conforme Berardi. Se “não existe sociedade, apenas indivíduos e suas famílias” (Tatcher), consequentemente não existem mais classes sociais, não faz sentido nenhum tipo de luta sindical ou outra forma de ação coletiva, cada um é empresário de si mesmo e precisa encontrar os meios de multiplicar o seu “capital pessoal”(sic), na esperança de desenvolver alguma performance extraordinária e, de maneira “disruptiva”, se tornar um “inovador” e talvez até um bilionário, como supostamente fizeram os ícones do Vale do Silício (que são na verdade sociopatas empenhados na acumulação de quantidades demenciais de valor abstrato através da expropriação criminosa dos saberes e da inteligência coletiva da humanidade). Essa configuração geral do inconsciente deleuziano/neoliberal teria predominado nas últimas três décadas do século XX e nas duas primeiras do século XXI.

Finalmente, o autor identifica um novo terremoto histórico, representado pela pandemia de covid-19, que estaria dando origem a um novo tipo de subjetividade, na década de 2020, com um novo inconsciente ainda a ser identificado e batizado, e que por isso ainda é chamado apenas de “terceiro”, no título do livro. Trata-se portanto de uma tese ousada, já que propõe a ocorrência da pandemia como marco de delimitação para toda uma nova época histórica que estaria se abrindo. A existência desse novo inconsciente é portanto uma sugestão a ser verificada, uma suposição de que há um novo território a ser mapeado. Para melhor situar a gênese dessa tese, convém contextualizar o fato de que a pandemia foi vivenciada de maneira diferente por quem estava num país com traços remanescentes do bem-estar social, como a Itália de Berardi, em contraste com a nossa experiência no Brasil de capitalismo periférico e modernização natimorta, e ainda, submetido adicionalmente ao agravante de ter sido vítima da gestão bozista.

Sob o impacto da quarentena, que no seu país de fato existiu, o autor registra a ocorrência de um trauma naquilo que ele chama de “psicoesfera”, provocado pela experiência do isolamento social. Sem chegar a negar a realidade e letalidade do vírus, como fez desastrosamente Agamben [6], o autor não deixa de observar, com razão, o quanto a ameaça viral serviu de fato para a imposição de medidas de controle e engenharia social inimagináveis até bem pouco antes. Formas de gestão de populações por dispositivos eletrônicos, conectados a redes e plataformas, impulsionados por sofisticados métodos algorítmicos, sob controle dos estados onipotentes e das corporações do capitalismo de vigilância [7], que levariam talvez mais de uma década para serem aceitas; foram assimiladas passivamente no intervalo de poucos meses, na impossibilidade de serem questionadas por uma população atomizada em isolamento.

O receio expresso pelo autor é de que nunca mais se recuperasse a naturalidade do intercâmbio social presencial, materializado no contato dos corpos em atividades antes corriqueiras como conversas, aulas, abraços, beijos, relações sexuais, pois este estaria sendo substituído por modalidades artificiais de contato, mediadas por dispositivos digitais (vídeos, lives, reuniões on-line, aulas à distância, áudios de whatsapp, pornografia, etc.). O isolamento vivenciado durante a quarentena foi visto pelo autor como o grau extremo de uma escala na qual, pouco mais abaixo, estaria o “novo normal”, uma nova forma de sociabilidade em que o contato físico estaria reduzido ao mínimo, aprofundando um novo estado de alienação, com consequências altamente danosas para o psiquismo, o erotismo, a ação política e todo tipo de atividade que demanda um envolvimento coletivo.

Esse receio de que as condições traumáticas do isolamento pudessem se tornar permanentes, dando uma nova configuração à esfera psicossocial e demarcando um novo momento histórico do inconsciente, talvez possa ter sido exagerado pelas circunstâncias locais e temporais em que os textos foram escritos. Mas a perspectiva que se abre pela sugestão de que há um novo inconsciente social a ser mapeado tem a vantagem de preparar o olhar para a observação de certo tipo de fenômenos que, de outra forma, poderiam não ser notados. Nessa linha, o livro contém várias observações agudas, como a de que a forma característica de mal estar que passaria a vitimar o novo tipo de subjetividade seria o autismo. A atual explosão de diagnósticos de autismo, ou transtorno do espectro autista, mais do que um simples modismo do mercado de psicopatologias, como alguns desconfiam, corresponderia ao reconhecimento de um problema social real. A causa desse problema seria a generalização de um estado psíquico de exaustão por excesso de informação, que estaria anestesiando a sensibilidade dos seres humanos.

O autismo de tipo clínico seria o caso extremo de uma condição de anestesia amplamente disseminada, a que todos os indivíduos “normais” estão também sujeitos em algum grau, em meio à avalanche ininterrupta e insuportável de anúncios, vídeos curtos, notificações, pop-ups, aplicativos, memes, clickbaits, links, áudios, factóides, manchetes, slogans, fragmentos, teasers, apelos, jogos, dicas, campanhas, alertas, avaliações, rankings, índices, metas, prazos, cadastros, logins, cookies, etc. Esse bombardeio informacional implacável satura e sobrepuja as defesas emocionais e cognitivas do psiquismo humano, adulterando a nossa psicodinâmica rumo a um tipo de funcionamento que é ao mesmo tempo exaustivo e frustrante. Os ciclos normais de trabalho/repouso, atenção/descanso, estudo/brincadeira, tensão/relaxamento, interesse erótico/descarga de prazer foram diluídos numa uniformidade monótona e substituídos por um fluxo permanente de excitação, mantida em nível latente, que não permite jamais a desconexão, mas, ao mesmo tempo, nunca atinge o grau necessário para a plena mobilização do potencial de ação. Dessa forma, mantém-se um estado pouco diferente do tédio e da indiferença, exaurindo o psiquismo sem, no entanto, produzir nenhuma sensação de resultado.

Notas

[1] Ver o livro “Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi

[2] Ver a 2a. das Teses sobre Feuerbach, de Marx e Engels.

[3] Provavelmente, do ponto de vista do autor, a obra de Lacan ainda está muito presa a um diálogo com aquilo que ao longo do texto descrevemos como o paradigma do marxismo tradicional ou ortodoxo. Do nosso ponto de vista, porém, é justamente Lacan que abre caminho para o pós-modernismo, pois, afinal de contas, não haveria pós-estruturalismo (e pós-modernismo) se não houvesse antes o próprio estruturalismo, que é uma das fontes teóricas da Psicanálise lacaniana.

[4] Ver o texto “Rap e Funk Ostentação: Falência e Espetáculo” https://passapalavra.info/2024/07/153522/

[5] Ver o texto “A internet: uma história de invocação, bolhas e subsunção ao capital” https://humanaesfera.blogspot.com/2018/07/a-internet-uma-historia-de-invocacao.html?m=1

[6] Ver o livro “Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia”, de Giorgio Agamben.

[7] Ver o livro “Capitalismo de Vigilância”, de Shoshana Zuboff.

 

As imagens que ilustram esse artigo são obras de Francis Bacon.

A publicação deste artigo foi dividida em 3 partes, com publicação semanal:
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