Por Jan Cenek
Persigo São Paulo é uma canção enigmática. Itamar Assumpção repete algumas vezes um verso intrigante: “São Paulo é outra coisa”. O bardo repete, também, o advérbio de negação não. A canção não diz exatamente o que é a cidade. Mas dá pistas: “Não é exatamente amor/ É identificação absoluta […] São Paulo sou eu […] Eu não me amo/ Mas me persigo”.
Também eu já escrevi sobre São Paulo (aqui, aqui, aqui, aqui). A certeza de que a cidade é outra coisa me acompanha, mas só consegui expressar minimamente essa outra coisa – se é que consegui – por aproximação e pela negativa. Como na canção, São Paulo não se ama (“Eu não me amo […] São Paulo sou eu”). Como pode se amar uma cidade hipertrofiada que cresce passando por cima de si mesma? Uma boa definição sobre a outra coisa que é São Paulo foi registrada por Mário de Andrade no poema Os cortejos [1]: “Pauliceia – a grande boca de mil dentes”.
Estava caminhando pela Pauliceia quando fui convidado para participar do plantio de mudas e mutirão comunitário no Parque da Joia, na zona Oeste de São Paulo. Essas coisas ainda acontecem na cidade. As pessoas se comunicam e se encontram. Conversar é revigorante. Trabalhar a terra idem. O Parque da Joia é uma área verde – com árvores frutíferas, campo de futebol, nascentes e uma simpática sede – que permite a comunicação e o encontro entre as pessoas e com a natureza. A comunidade cuida de tudo e luta para que a área seja oficialmente reconhecida como parque público.
Revolvendo o solo e conversando fui conhecendo a história do lugar. Abaixo da primeira camada de terra se encontra entulho, indicando que o parque nem sempre esteve ali. Foi quando me contaram que o local havia abrigado a Favela da Joia, que chegou a ter 260 famílias. Daí o entulho abaixo da primeira camada de terra. Trata-se de um aterro. “São Paulo é outra coisa” – pensei imediatamente. Os moradores da favela conquistaram moradias melhores e se mudaram em 1994, depois a natureza e a comunidade foram retrabalhando o local. Conversando soube, também, que as nascentes do Parque da Joia alimentam o rio da região, o Água Podre (Ypuera). Por ali se fez a libertação das nascentes, como já havia sido feito com as nascentes do Córrego Água Preta, na Praça Homero Silva, na Pompeia. Água Podre: que nome poético. Eu que vivi perto do Água Preta descobri que há um rio irmão com nome igualmente interessante. Por outro lado, Água Podre me remeteu a Itabira e à mineração. Um artigo de 1980 fala das águas de Itabira [2]: “Este câncer que atingiu a nossa cidade vai deixar três enormes crateras na superfície de suas terras, as águas podres e ácidas, o clima aleatório e fétido, e alguns milhares de indivíduos tentando reviver o que poderíamos chamar de Prostituta do Capitalismo Selvagem.” Itabira não é apenas uma foto na parede, como queria o poeta, é, também, outra coisa, como São Paulo.
Eu já havia conhecido o Parque da Joia e iniciado esse texto quando tive acesso [3] a uma carta de Mário de Andrade [4] para Paulo Duarte datada de 05 de agosto de 1944. O modernista comenta sobre França, Portugal, Catalunha, Florença, Roma, Belém e São Paulo. Diz Mário: “São Paulo… Não São Paulo é outra coisa, não é amor exatamente, é identificação absoluta, sou eu. E eu não me amo. Mas me persigo. Bonita palavra ‘perseguir’ em tudo o que a sua etimologia sugere e confessa. Eu per-sigo São Paulo.” A enigmática canção interpretada por Itamar Assunção é um trecho da carta de Mário de Andrade para Paulo Duarte. Pensando bem. Faz sentido. É do poeta modernista a definição da Pauliceia como uma grande boca de mil dentes. Só não sei se nós que perseguimos a cidade, como na canção, ou se é o contrário. Mas que São Paulo é outra coisa, isso é.
São Paulo é outra coisa também porque há espaços como o Parque da Joia. Com mutirões comunitários aos sábados, futebol aos domingos, saraus, festivais de arte e música, encontros diários e diversas possibilidades. Na antiga sede, utilizada para organizar o movimento de moradia, acontecem formações em permacultura, aulas de capoeira e ensaios musicais. A ideia é agregar outras atividades. Fica o convite para uma visita ao Parque da Joia, quem sabe uma caminhada pela mata, ao lado das nascentes. Porque São Paulo é outra coisa. A Pauliceia é uma grande boca de mil dentes que devora tudo, mas que, às vezes, sorri.
Notas:
[1] Mário de Andrade. De Pauliceia desvairada a lira paulistana. São Paulo: Martin Claret, 2016. p. 56.
[2] Fernando Duarte Gonçalves. Itabira, a prostituta do capitalismo selvagem. Disponível em: http://www.viladeutopia.com.br/itabira-a-prostituta-do-capitalismo-selvagem/
[3] Soube que a letra da canção Persigo São Paulo saiu de uma carta de Mário de Andrade por meio de uma de uma postagem da Casa Mário de Andrade.
[4] Paulo Duarte. Mário de Andrade por ele mesmo. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1977. p. 278.
“São Paulo… Não São Paulo é outra coisa, não é amor exatamente, é identificação absoluta, sou eu. E eu não me amo.[…]” – Jan Cenek, lendo essas palavras do autor modernista me lembrei da obra dele de anos antes, “Amar, verbo intransitivo”. É preciso amar alguém, já que o amor abstrato é uma ideia, não um afeto. Uma identificação absoluta com São Paulo pode acontecer sem amor? De qualquer forma, se há amor, é um amor indiferente a si mesmo. Talvez por isso haja mais amor que o poeta pode supor entre ele e sua cidade.