Por João Bernardo
A mais-valia relativa, que é o agente motor do capitalismo, conferindo-lhe uma dinâmica que sem isso ele não teria, só pode conceber-se em processos cíclicos. A sucessão de reivindicações leva a novas formas de recuperação e assimilação dos conflitos, inaugurando-se, portanto, novos patamares de complexidade do trabalho e de qualificação de uns trabalhadores, ao mesmo tempo que se desqualificam outros, o que, por sua vez, leva os trabalhadores a organizarem-se em formas diferentes, que sustentam novas modalidades de conflito, e assim por diante, numa espiral sem limites. Isto significa que os ciclos tendem a acelerar-se e agudizar-se, tornando-se cada vez maior a distância que separa os trabalhadores qualificados dos desqualificados.
A Inteligência Artificial veio piorar a situação não só por aumentar aquela distância, como porque ameaça desqualificar categorias profissionais que até agora estavam seguras de permanecer entre as qualificadas. É certo que este distanciamento não rompe o tecido económico que insere todos os trabalhadores na mesma classe de produtores de mais-valia. O modelo da discrepância entre o tempo de trabalho que se despende no processo produtivo e aquele que se incorpora nos bens e serviços consumidos pelo trabalhador continua a ter validade para a análise crítica da economia. Mas o afastamento crescente entre os trabalhadores qualificados e os que perderam as qualificações úteis, ou já de início não as tinham, rompe o tecido social e torna cada vez mais difícil, ou até impossibilita, que uns e outros se reconheçam mutuamente como inseridos na mesma classe.
A noção de classe média difundiu-se com esse afastamento, indicando-o e ao mesmo tempo consolidando-o. A expressão não é nova, tem mais de um século, e no início possuíra uma conotação estritamente pejorativa, porque servira à elite para expressar o desdém pelos novos-ricos. Mas ultimamente o sentido da expressão alterou-se e ela passou a ser usada numa acepção não depreciativa, designando objectivamente uma camada social específica, que se pretende situada acima dos trabalhadores comuns, embora abaixo das pessoas mais prósperas. Se antes classe média servia para operar uma distinção entre os ricos, serve hoje para marcar uma clivagem entre os trabalhadores.
Assim, a classe trabalhadora, que é a mesma na definição económica, perdeu qualquer quadro sociológico comum. Empregando os velhos termos marxistas, a classe em si (no quadro económico) não encontra forma de se assumir como classe para si (nos planos político e ideológico). Os identitarismos e a ecologia, enquanto falsa consciência, são os principais obstáculos que impedem o reconhecimento da classe pela classe.
Actualmente a situação agravou-se, porque o fluxo migratório crescente em direcção aos Estados Unidos, ao Canadá, à União Europeia, à Grã-Bretanha e à Austrália contribui para acirrar as divisões entre, por um lado, os trabalhadores qualificados e, por outro, os que detêm poucas qualificações. Os imigrantes constituem predominantemente uma mão-de-obra com baixas qualificações, o que de imediato os situa como concorrentes no mercado de trabalho da mão-de-obra não qualificada dos países de acolhimento, que lhes é tanto mais hostil quanto os imigrantes aceitam salários inferiores e piores condições laborais. Ora, estes imigrantes não representam nenhum perigo de concorrência relativamente aos trabalhadores mais qualificados e aos universitários com bolsas, que, portanto, não os hostilizam ou mesmo lhes dão as boas-vindas. E assim o racismo é superado nos estratos onde as diferenças de estatuto profissional permanecem intransponíveis e é reforçado onde os estatutos profissionais são semelhantes. Não podia haver uma mais perversa fragmentação social e ideológica da classe trabalhadora, tanto no interior das fronteiras como mundialmente, atenuando ou abolindo a barreira do racismo onde as barreiras profissionais continuam sólidas. Mais perversa ainda, como mostrou a violentíssima série de manifestações contra os imigrantes que no final de Julho e no início de Agosto deste ano lançou o caos em várias cidades de Inglaterra e no Ulster, porque os agitadores fascistas aproveitaram a situação para incentivar os trabalhadores comuns britânicos a dirigirem também a sua revolta contra os estratos qualificados, favoráveis à imigração.
Convém notar que as medidas contrárias à imigração têm consequências negativas para a globalidade da economia, pelo que os governos que as adoptam não estão a obedecer a quaisquer pressões dos capitalistas, mas unicamente a satisfazer uma parte numerosa do eleitorado proletário. Na mesma perspectiva se inserem as promessas de aumento das tarifas aduaneiras com o argumento de que assim se iria proteger o mercado de trabalho, já que os estrangeiros estariam a colocar em risco os empregos nacionais. Porém, estas iniciativas não recebem o apoio dos principais capitalistas, porque são desfavoráveis à produtividade e, assim, se prejudicam globalmente a economia dos países que as adoptam, também prejudicam a médio e longo prazo todos os trabalhadores destes países. A curto prazo, no entanto, elas parecem promover a manutenção da mão-de-obra local, por isso são aplaudidas pelos trabalhadores menos qualificados. Aliás, nesta ilusão da soberania económica convergem hoje a extrema-direita e a chamada extrema-esquerda.
Poderão esses múltiplos factores de divisão ser superados?
A desarticulação da classe em identidades tem prevalecido sobretudo entre os trabalhadores mais qualificados, tanto no interior das fronteiras como no âmbito mundial, já que o identitarismo — com excepção de certas modalidades étnicas e religiosas — se encontra quase exclusivamente nas economias desenvolvidas. Para os identitários a classe trabalhadora transformou-se, no máximo, noutra identidade, uma entre várias. «A palavra “exploração” saíra de moda, preferiam-lhe o indefinido das “dominações”», escreveu Patrice Jean no mais recente dos seus romances, La Vie des spectres («Le vocable “exploitation” était passé de mode, on lui préférait le flou des “dominations”»). O desaparecimento do conceito de humanidade, com o consequente descrédito lançado sobre a história comparada, é uma expressão dessa fragmentação que liquidou a noção dos trabalhadores enquanto classe susceptível de ser mundializada. O que resta hoje da herança de Marx praticamente se restringe a alguns departamentos universitários de estudos sociais, e ali o marxismo converteu-se num adjectivo a acrescentar ao substantivo designador da identidade. É um marxismo levado pela trela.
Ora, se os identitarismos reformulam o quadro delimitado, por um lado, pelo fascismo nacionalista e, pelo outro lado, pelo fascismo racial, então, tal como todo o nacionalismo e todo o racismo, cada identidade assume uma postura beligerante relativamente às outras identidades. A função política e social desempenhada pelo identitarismo reproduz, numa época em que o capital se transnacionalizou, a função que o fascismo clássico desempenhara entre as duas guerras mundiais. Na realidade a questão é mais complexa, porque não se trata só de uma reformulação do antigo fascismo, mas sobretudo de uma convergência, ou cruzamento, entre novos temas oriundos da extrema-esquerda e outros originados na extrema-direita e que neste processo geram uma nova vaga de fascismos, que eu denomino fascismos do pós-fascismo.
Como o motor social do fascismo é sempre a substituição das elites, nos nossos dias a promoção de novas elites opera-se mediante a política de quotas nas universidades e nas administrações, que por isso constitui a principal reivindicação das identidades e a sua grande arma. Nesta perspectiva é elucidativo, por exemplo, o silêncio que o movimento negro mantém relativamente aos desgovernos políticos e económicos levados a cabo em África pelas elites nascidas dos movimentos de independência ou, de modo ainda mais flagrante, perante o aproveitamento daquilo a que o Passa Palavra chamou Racismo negro antinegro na África (aqui). Confirma-se assim que o objectivo do movimento negro é simplesmente a conversão em nova elite, porque não vai criticar quem lhe aponta o caminho a seguir. Aliás, é também esclarecedor o incómodo do movimento negro relativamente a Marcus Garvey, que afirmou acerca dele mesmo e dos seus seguidores «nós fomos os primeiros fascistas» e pretendeu que «Mussolini copiou de mim o fascismo». Como poderia um movimento vocacionado para a promoção de uma nova elite criticar outro movimento, reconhecidamente fascista, que prosseguira o mesmo objectivo? Nos restantes identitarismos prevalece uma atitude semelhante, pois encontram o espelho das suas próprias ambições em elites já consagradas, que conseguiram ascender aproveitando-se da respectiva identidade.
Entretanto, inevitavelmente se desenvolve entre os trabalhadores desqualificados a animosidade contra as novas elites representadas pelos identitarismos. À medida que os sucessivos ciclos da mais-valia relativa vão aumentando a distância que separa os trabalhadores cada vez mais qualificados daqueles que são precipitados na desqualificação, vai-se desfazendo o tecido social da classe. Assim, enquanto o fascismo do pós-fascismo se gera entre os trabalhadores qualificados, os trabalhadores sem qualificações, que vêem nos identitarismos a ameaça de novas elites, são por isso facilmente seduzidos pelo fascismo clássico. Estes trabalhadores marginalizados pelo progresso económico — que os marxistas imaginavam que se manteriam como a sua base social e que a geração antiglobalização julgava que seria a sua base por inerência — tornaram-se em grande parte o suporte eleitoral e de recrutamento da direita extrema e do fascismo clássico.
Numa economia transnacionalizada, é inevitável que essa situação se tivesse mundializado, como mostra a evolução sofrida pelo islamismo em direcção ao extremo fanatismo religioso. Esta transformação deve deixar perplexos os historiadores, porque o islão poderia reivindicar um passado de tolerância e as correntes fanáticas haviam sido geralmente marginalizadas ou circunscritas a regiões periféricas, com uma influência nula ou muito reduzida sobre os grandes centros de opinião. Hoje, porém, o islamismo representa, com implacável rigor, a hostilidade mortal a tudo o que os identitários promovem. Ao mesmo tempo, representa também a identidade supranacional de camadas economicamente desfavorecidas contra a globalidade das sociedades economicamente desenvolvidas. A religião serve neste caso de base a uma nova forma de nacionalismo transnacional. Ora, através de migrações recentes o islamismo extremista começou a difundir-se entre os trabalhadores desqualificados dos países mais desenvolvidos. E como os ecos do nacionalismo no movimento operário são sempre geradores de fascismo, esta modalidade de nacionalismo de base religiosa que ultrapassa as velhas fronteiras não constitui excepção. O fanatismo islâmico cumpre hoje funções idênticas às que outrora couberam ao fascismo clássico, somando-se aos remanescentes desse fascismo que subsistem nos países desenvolvidos.
Em suma, na clivagem entre trabalhadores qualificados e desqualificados assenta o mais claro factor de distinção social entre, por um lado, o fascismo pós-fascista, seguido por trabalhadores com mais qualificações e, por outro lado, o fascismo clássico, que encontra adeptos entre os trabalhadores não qualificados dos países economicamente evoluídos, e incluindo o extremismo islâmico, influente sobretudo em países menos desenvolvidos.
Entre os fascistas clássicos e os fascistas do pós-fascismo a ecologia é o campo de articulação. A ecologia tem uma génese fascista genérica — o ressurgimento das utopias ruralizantes e a defesa da soberania alimentar, que constituiu um dos objectivos proclamados por todos os fascismos clássicos. Tem também uma génese especificamente nacional-socialista — a agricultura orgânica, inventada pelo pai da antroposofia, promulgada como doutrina oficial do Ministério dos Abastecimentos e da Agricultura do Terceiro Reich e defendida e aplicada por Himmler e os SS, inclusivamente em fazendas experimentais junto a campos de concentração ou de extermínio. A este respeito, convém recordar que os SS eram proprietários do empreendimento de agricultura orgânica mais vasto e com maior êxito comercial do Reich. Para quem goste de estudar as sinuosidades históricas — e o que é a História senão sinuosidades? — é fascinante o esquecimento deliberado da origem fascista da ecologia. Como depois da derrota do Reich as potências vitoriosas mandaram destruir os manuais escolares, incluindo os que continham as teses nacional-socialistas sobre biologia e ecologia, este hiato favoreceu o esforço dos ecologistas para apagarem as suas origens. Quando renasceu com a extinção e dissolução dos movimentos autonomistas da década de 1960, a ecologia fez cuidadosamente esquecer o seu pedigree.
Se, como eu defendo, o fascismo consiste no eco de temas de esquerda no âmbito da direita e de temas de direita no âmbito da esquerda, então — nesta época em que além de se cruzarem a extrema-direita e a extrema-esquerda se cruzam também o fascismo clássico e o pós-fascismo — a ecologia é por excelência o campo que facilita a intersecção de todos esses ecos. Recentemente, a pandemia da covid deu um novo vigor a esta articulação, quando os ecologistas se juntaram aos fascistas e em conjunto animaram nas ruas um movimento de oposição às vacinas e à generalidade das medidas sanitárias, e ambos continuam hoje a evocar esse tema nos seus esforços de mobilização e em campanhas eleitorais.
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Façamos um balanço. O regime senhorial, que antecedeu o capitalismo na sua área geográfica inicial, cobriu quase um milénio e meio, e outros sistemas económicos ocuparam períodos muito mais longos, o que nos deve incitar a uma prudente sensatez quanto às possibilidades de desenvolvimento que se abrem ao capitalismo. Se o epílogo for breve, a nossa luta será ainda uma Guerra dos Mil Anos, como eu lhe chamei uma vez (aqui), mas suspeito que durará bastante mais.
Com efeito, se a experiência histórica mostrou que o capitalismo não pode ser derrubado numa única empresa nem mesmo numa única região nem sequer num só país, então aquele sistema ao qual, sem sabermos bem o que é, chamamos comunismo só conseguirá ser gerado num processo mundial. E como chegar lá se os trabalhadores não estiverem unificados socialmente enquanto classe?
Ora, a electrónica, os computadores e a internet constituem um instrumento triplo — de trabalho, ócio e vigilância — e a Inteligência Artificial multiplicou exponencialmente as capacidades nestas três áreas. Quanto à produtividade do trabalho, o efeito é bastante óbvio. Por outro lado, os jogos podem servir durante os ócios para compensar a fadiga laboral. Mas o aperfeiçoamento da vigilância é o resultado que agora me interessa sublinhar. E como a maior parte da interacção nas redes sociais consiste no fornecimento de informações sobre a vida privada, pela primeira vez na história a fiscalização não resulta apenas de uma iniciativa das autoridades, mas igualmente de uma prestação voluntária de dados por parte das pessoas comuns na sua existência corrente. Os trabalhadores não só estão fragmentados e fisicamente dispersos e, portanto, não existem sociologicamente como classe, mas estão também — e voluntariamente! — sujeitos a uma vigilância sem precedentes.
Assim, surge aqui, para os marxistas, uma enorme dificuldade. Se só a classe trabalhadora poderá destruir o capitalismo e edificar com os seus destroços uma sociedade sem classes, ou antes, se é essa mesma a missão histórica atribuída à classe trabalhadora, quem poderá ter a certeza de que ela venha a existir numa forma e com características que lhe permitam derrubar mundialmente o capitalismo e reorganizá-lo naquele socialismo da abundância que outrora mobilizara a extrema-esquerda e lhe dera ânimo para lutar?
Este breve ensaio divide-se numa primeira parte, onde situo as raízes do problema, uma segunda parte, onde dou vários exemplos concretos, uma terceira parte, onde tento explicar alguns porquês e uma quarta parte, que deixará o leitor ainda mais furioso.