Por Pedro Rezende Mendonça

Esse mês convidei o colega pesquisador Pedro Mendonça para redigir a coluna, pois ele traz uma importante contribuição na interface entre cidades e a ciência de dados: a discussão recente sobre endereçamento nas periferias. O debate está sendo protagonizado pela relação entre governo federal, negócios empreendedores de impacto social e a Google. Pelo visto, as formas de “empoderamento” periféricas têm sido um foco importante para o… mercado. Obrigada pela contribuição, Pedro! – Isadora de Andrade Guerreiro.

No final de novembro, a Secretaria Nacional de Periferias, os Correios e o IBGE organizaram o Encontro Nacional de Endereçamento nas Periferias, em Brasília. O evento pautou um assunto fundamental para os territórios periféricos, especialmente aqueles de ocupação mais recente ou menos consolidada: o endereçamento. Há um crescimento na demanda por reconhecimento e inclusão das periferias, e cresce também o interesse de grandes empresas em atender essa demanda de forma privada. Com a consolidação do e-commerce, dos aplicativos e das plataformas de mapas digitais, a falta ou inconsistência do endereçamento é um entrave para o consumo e para o empreendedorismo – é esse o argumento mais comum daqueles que defendem uma solução rápida e privada para o endereço. Mas, antes de pautar e formular uma política pública de endereçamento que dê conta da complexidade das nossas periferias, algumas questões fundamentais devem ser respondidas: Para que serve um endereço? Quem deve dizer o que é um endereço? Como e quais ferramentas e metodologias devem ser empregadas nesse processo, e o que ganhamos e perdemos ao usá-las?

O endereço é um conjunto de palavras, códigos e regras que utilizamos para dar nome a espaços específicos. O endereço serve para muito mais que receber correspondências: ele organiza a compreensão do espaço, registra a memória da construção e do cotidiano dos territórios. Permite que as pessoas digam às outras onde encontrá-las, são referência para navegação. Em resumo, endereços são criados porque organizam a vida. Não é por acaso que, mesmo sem um endereço formal, as periferias se autoenderecem – da mesma maneira com que se autoconstruíram.

As vias autoendereçadas não raro homenageiam figuras importantes na história das comunidades, ou apontam valores e elementos culturais: Rua da Amizade, Rua da União, Rua Terra Prometida. Muitos lugares nas nossas cidades ainda carregam a forma como as populações indígenas nomeiam os lugares (Tamanduateí, Ibirapuera, Anhangabaú), reconhecendo a natureza como um elemento definidor, e não incidental, na existência e na construção de uma referência de espaço. Nesses lugares, não se homenageia, no nome de figuras históricas, violências passadas e presentes cometidas pelo Estado, nem se celebra a manutenção histórica de privilégios econômicos e políticos.

Mas também não é por acaso que, assim como a autoconstrução começa a ceder espaço para outras lógicas de produção, com ênfase no valor de troca do espaço construído, também o endereço passa a ser disputado por grandes agentes de mercado, e especificamente num cenário de domínio de Big Techs e da ascensão do mercado de conteúdo. As transformações dos territórios periféricos constituídas “desde abaixo”, sob uma razão de mercado, têm uma relação dialética com a expansão capilarizada de grandes empresas globais e de suas plataformas digitais. Nesse cenário, organizações comunitárias se tornam uma forma de acesso facilitada, legitimando e, em troca, sendo legitimadas pelas articulações com essas grandes empresas. Daí a importância de entendermos e discutirmos endereçamento enquanto processo político, para além de sua tecnicidade.

Endereçamento pressupõe consenso: moradores do mesmo bairro sabem onde encontrar a casa amarela na curva, a casa do lado da padaria, mas essas informações não bastam para que um serviço postal internacional saiba como fazer uma entrega nesse lugar. O endereçamento oficial, no geral, estabelece um consenso vertical, constituído dentro e para o Estado, se sobrepondo a qualquer outro endereço não oficial preexistente. É um expediente comum e antigo das câmaras municipais e gabinetes de prefeituras alterar nomes de logradouros como forma de marcar presença territorial. Já na última década, o “Direito de Nomear” (ou, como tramita no mercado e na burocracia estatal, Naming Rights), entendido aqui como de titularidade do Estado, se tornou uma nova fronteira de privatizações, em confluência com a agressividade das práticas de marketing contemporâneas.

Tem se tornado comum no Brasil uma prática de endereçamento privado, consensuado via mercado, por Big Techs, a partir de solucionismo tecnológico. O grupo privado que promove o endereçamento desfruta uma legitimidade de partida, pelo deslumbramento de ser reconhecido por uma grande empresa de tecnologia internacional, ou como uma solução fácil para os departamentos públicos que fazem o árduo trabalho de regularização fundiária. O caso mais evidente é a experiência do Plus Code – uma agenda da gerência de assuntos estratégicos da Google. Dentre as organizações que já participaram dessa experiência, temos diversos órgãos do Estado – na figura de secretarias municipais e mesmo no Governo do Estado de São Paulo – e organizações não governamentais como a Gerando Falcões, que apresentaram sua parceria com a Google no Encontro em Brasília. A argumentação a favor dessa solução aponta que o código é aberto, que oferece uma solução de alta precisão e rápida, disponível offline, e que “já está no mapa”.

Em primeiro lugar, código aberto ou fechado, nenhuma liderança da comunidade aprenderá a programar para compreender o processo de endereçamento. Alguns poderão questionar a legitimidade de uma liderança em apontar o nome de uma rua, mas este é justamente o ponto: trata-se de uma disputa, que é desequilibrada pela presença de uma grande empresa e pelo uso de certas tecnologias. Fora as lideranças eleitas pela gerência da Google, os demais moradores são reduzidos a anuentes e espectadores, pois não há mais nada a ser discutido em que possam opinar e participar. Até o desenho das placas de codificação é padronizado pela Google, são os mesmos em todas as comunidades urbanas e rurais por onde passa. Na experiência com Plus Code apresentada pela Gerando Falcões no evento em Brasília, a figura dos moradores aparece como uma força a ser apaziguada. Precisam ser informados e acalmados. Assim, a organização social assume o papel de controle onde os braços da Big Tech não conseguem alcançar.

O Plus Code nada mais é do que uma recodificação de coordenadas geográficas encurtada, baseada em um grid espacial de várias resoluções. Por isso, é disponível offline: basta ter um aparelho que capta sinais de GPS e, para gerar o Plus Code, uma camada de software que transforma as coordenadas. Ao inserir essa camada, o Google passa a ser o intermediador do sistema de referência espacial: é a Google que provê, ainda que de forma aberta, o software para codificar e decodificar o Plus Code. Além disso, os códigos do Plus Code, por serem simples codificações de coordenadas, são reconhecidos em buscas no Google Maps. Isso garante que as pessoas se encontrarão no seu mapa privado, aprofundando o processo de suplantação dos mapas “oficiais” pelo mapa da Google – ou seja, o reconhecimento pela Google vai se tornando mais importante que o reconhecimento pelo Estado. Por isso, essa experiência é também uma privatização silenciosa de uma atribuição dos Correios.

Essa é uma das muitas dimensões da privatização do endereçamento. Muitos logradouros não reconhecidos pelo Estado e nomes alternativos aos oficiais são registrados em plataformas como o Google Maps. Cria-se um descasamento entre o uso cotidiano do endereço, cada vez mais apoiado na plataforma, e o mapa oficial desenhado pelo Estado, em que a solução privada é mais aderente à realidade e, portanto, mais capaz de reconhecer. Essa vantagem se dá, como de praxe, pela exploração dos usuários, que são incentivados a inserir atualizações nas plataformas de mapeamento enquanto as utilizam. Isso reforça a legitimidade das empresas de tecnologia especialmente nas periferias.

É importante mencionar também que há outras soluções de várias naturezas para codificação do espaço. Ao adotar soluções da Google, elege-se essa empresa como intermediadora – é a ela que as lideranças comunitárias e os governos irão procurar para manutenção e expansão das experiências. Trata-se de um tema estratégico para a Big Tech, para expandir o seu já amplo domínio logístico e comercial. Com a crescente interferência das empresas de tecnologia sobre o cenário político nacional e global, precisamos refletir sobre o que é estratégico para os territórios.

Mas coordenada não é endereço. Na perspectiva do Estado, as periferias são historicamente o lugar da excepcionalidade, onde “as coisas funcionam de outro jeito”, onde moram “os outros”: a população negra, indígena, migrante, os pobres, trabalhadores. É verdade que as periferias são muito diferentes entre si, e em alguns territórios há um desalinhamento entre a organização do espaço e a lógica mais básica de endereçamento oficial. Uma política pública de endereçamento das periferias precisa reconhecer esses pontos de partida distintos, mas o ponto de chegada não pode reproduzir a posição de excepcionalidade em que as periferias são colocadas. O endereço nas periferias deve funcionar como em toda a cidade. Em quais bairros nobres se discute abandonar o endereço existente e implantar uma solução de codificação de alguma Big Tech?

Há, porém, uma contradição no caminho de uma política pública. Ao demandar reconhecimento externo, sob uma lógica extrínseca, as periferias se sujeitam a um modelo de organização do espaço que não é o seu, e abrem mão de parte da sua potência transgressora e transformadora. Mas, ao mesmo tempo, é impossível que as coisas fiquem como estão. Se o Estado não assumir este papel e enfrentar essa contradição, o mercado continuará sua tomada da função de endereçar e das estruturas comunitárias, se aproveitando do espaço aberto por essa demanda não atendida. Uma política pública que se articule a partir dos territórios periféricos tem como desafios reconhecer as periferias e suas formas de endereçar de forma abrangente e ágil, superar a lógica da periferia como território de exceção e, ainda assim, permitir a multiplicidade de formas de endereçamento construídas por cada periferia.

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