Por Leo Vinicius

Dia 30 de novembro de 2024 completaram-se 25 anos da tentativa, relativamente bem-sucedida, de bloqueio da “rodada do milênio” da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle. Dia internacional de ação global chamado N30, ele deu uma visibilidade mundial, midiática, ao que se denominou por movimento antiglobalização ou alterglobalização. Uma coalização que ligava movimentos sociais, redes de ativistas e alguns sindicatos de diferentes continentes.

A face mais visível desse movimento de movimentos eram as tentativas de bloqueio de reuniões de organismos gestores do capitalismo globalizado, como o Banco Mundial, FMI, OMC, G7. As imagens dos confrontos circulavam o mundo. Grosso modo, retoricamente, se tratava de um movimento majoritariamente anticapitalista, crítico principalmente de sua face neoliberal, que expressava um momento, um desejo e uma convicção de que outro mundo era possível. A influência da revolução zapatista daquela década é indiscutível. Não apenas pelo levante ocorrido no dia da entrada em vigor do NAFTA (acordo de livre comércio da América do Norte) e pela retórica dos seus comunicados, mas também pela organização em 1996 do I Encontro pela Humanidade e contra o Neoliberalismo em Chiapas, México.

Esse momento de coordenação global de ação direta nas ruas, com tom anticapitalista, não passou incólume pelas tentativas de capitalização por parte da esquerda institucional. Assim surgiu o Fórum Social Mundial, cuja primeira edição ocorreu em 2001 em Porto Alegre (cidade governada pelo PT e que também sediou as edições de 2002, 2003 e 2005). Década que veria de fato a esquerda institucional ganhando eleições nacionais na maioria dos países da América do Sul.

Mas o que sobrou disso tudo? O que temos hoje 25 anos depois?

Primeiro, é impossível não notar que através da ascensão da extrema-direita no mundo passamos da “antiglobalização” ao “antiglobalismo”. Vinte e cinco anos atrás, era principalmente através de listas de discussão de email que a comunicação daquela coalização de ativistas e movimentos ocorria. Recordo que algumas poucas vezes entrava em pauta brevemente em alguma dessas listas o fato de nesse “movimento antiglobalização” aderirem notórias figuras da direita, como Pat Buchanan, dos Estados Unidos. Embora fossem insignificantes e mais do que extremamente minoritários entre os críticos da globalização capitalista que se organizavam, havia uma direita ou extrema-direita nacionalista antiglobalização. Vinte cinco anos depois, essa extrema-direita não só deixou de ser irrelevante como avançou de tal forma em hegemonia que “globalismo” virou um significante, do que é considerado mal, tão disseminado numa massa que aderiu à extrema-direita ao ponto de ser vocabulário de uso de colegas de trabalho meu e seu. Pat Buchanan está vencendo, e isso era inimaginável 25 anos atrás.

Segundo: Porto Alegre não existe mais. E quando escrevo essa frase pensando na cidade vitrine de uma esquerda gestora com sua “democracia participativa”, percebo que a enchente de proporções quase apocalípticas que a cidade sofreu em 2024 é uma síntese desses 25 anos de mudanças. Porto Alegre é hoje a vitrine não de um “outro mundo possível” da esquerda eleitoral, mas do fim do mundo. O outro mundo já chegou e é muito pior. Como dizia o poeta: It’s the end of the world as we know it. Ninguém tem expectativa de que se construa força social em um horizonte razoável para estabelecer o mundo do Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado, que resolva nossos problemas de hoje, como indica o persuasivo Aaron Bastani. Já não há mais o que ser canalizado e capitalizado via Fórum Social Mundial. A propósito, ele ainda existe?

Com Lula na presidência nos anos 2000 o Brasil se livrou do FMI. A dívida pública externa se transformou em dívida pública interna. Os capitalistas continuaram com o poder de impor “ajustes estruturais”. E “se não há gás lacrimogêneo na rua os ajustes econômicos não estão sendo duros o bastante”, comentou um experiente banqueiro brasileiro em 2017 [1]. Não há necessidade objetiva do capital dissociada da organização e da luta da classe trabalhadora. A luta de classes é interna ao capital, determina sua existência e suas “necessidades”. No mês de aniversário de 25 anos do N30 o Rio de Janeiro recebeu a Cúpula dos Líderes do G20, sem nenhum gás lacrimogêneo. Que o governo Lula tenha gastado dinheiro com a criação de uma Cúpula do G20 Social, financiando a vinda de “movimentos sociais” e seu enquadramento nesse espaço, liberando de qualquer eventual pressão os Líderes do G20, e que isso realmente tenha funcionado, diz muito sobre o verdadeiro deserto de movimentos sociais no Brasil. Trata-se apenas de coletivos de pessoas que buscam ascensão social neste mundo, e não construir outro.

Na Cinelândia, há dois quilômetros das Cúpulas do G20 (a dos Líderes e a dos mascotes), uma manifestação contra o genocídio palestino foi impedida pela polícia. Ter seu ônibus escoltado pela polícia para fora do estado do Rio de Janeiro era o destino dos poucos que não foram comer os canapés oferecidos pelo governo, mesmo que não confrontassem o G20.

***

Vinte cinco anos atrás um outro mundo parecia possível, mas não se conseguiu derrotar nem o neoliberalismo. E o que é o neoliberalismo?

O fato é que as manifestações anticúpulas eram sobretudo simbólicas, embora pudessem levantar a discussão sobre a legitimidade daquelas instituições. Algo que remete a uma profunda diferença em relação aos zapatistas. Em Chiapas eles tomaram os meios de produção. Nunca se tratou de manifestação simbólica ou de minar a legitimidade de instituições capitalistas, mas, com suas limitações geográficas, de real derrubada do poder econômico. Se os três mandatos presidenciais do PT iniciados em 2003 construíram um castelo de cartas, sem alicerce em uma base social que ia sendo ainda mais corroída pelas mudanças contínuas na estrutura produtiva e nas relações de trabalho, o chamado “movimento antiglobalização” e seu outro mundo possível foram pulverizados pelas mudanças materiais que se refletem numa mudança de composição técnica da classe trabalhadora e na sua decomposição enquanto classe para si. No trabalho, foi o capital que continuou ditando as regras, com baixa oposição. Um outro mundo não é possível apenas com confrontos com a polícia, atrapalhando reuniões de gestores ou elegendo governantes. No nível fundamental da estrutura produtiva e das relações de trabalho os interesses capitalistas avançavam.

Os zapatistas continuam lá. Pouco ouvidos, em grande parte esquecidos. Com pouca influência internacional nos dias de hoje. Em parte também pela escolha que fizeram já na década de 2000. Em parte porque quase não há mais ouvidos para escutá-los. Estão hoje tentando descobrir a melhor forma de lidarem com a ameaça do crime organizado. Um desafio que os militantes e movimentos em muitos países estão tendo que enfrentar também. Traçaram já uma estratégia para que as suas próximas quatro gerações sobrevivam ao fim do mundo como o conhecemos. Talvez daqui a 120 anos se reencontre ali as sementes da imaginação da possibilidade de um outro mundo. E que a imaginação possa vir junto com a prática necessária.

Notas

[1] Ver https://veja.abril.com.br/revista-veja/segunda-feira-de-furia

3 COMENTÁRIOS

  1. Submeti o artigo à análise da IA Llama 3.2, acoplada ao WhatsApp (e esta integração é muito mais do que um detalhe).

    Trecho do retorno:

    《Análise Crítica
    1. *Ceticismo em relação à mudança*: O artigo transmite um tom pessimista, questionando a viabilidade de um mundo melhor.
    2. *Falta de propostas concretas*: O autor não oferece soluções claras para superar os desafios apresentados.
    3. *Enfoque excessivo na crítica*: A análise se concentra mais nos problemas do que em possíveis soluções.
    4. *Necessidade de uma abordagem mais inclusiva*: O artigo poderia considerar perspectivas mais diversas e experiências de movimentos sociais.》

    Ao que demandei:

    《Refinar Análise Crítica
    Em relação ao ítem 2 (Falta de propostas concretas) o autor indica o Movimento Zapatista como exemplo de proposta concreta frente às questões levantadas no artigo

    ☆ No Movimento Zapatista é possível identificar a aplicação das 4 Teses do PDE》

    Resposta:

    《Excelente observação! O Movimento Zapatista é um exemplo inspirador de resistência e construção de alternativas. Aqui estão algumas conexões com as 4 Teses do Processamento Desejante Emancipador (PDE):

    Tese 1: Não é a consciência que determina o ser social, mas o ser social quem determina a consciência
    1. O Movimento Zapatista surge da realidade social e econômica dos povos indígenas no México.
    2. A luta pela terra, autonomia e direitos é fundamentada na experiência concreta.

    Tese 2: A consciência política surge das experiências de lutas concretas
    1. O Movimento Zapatista desenvolveu uma consciência política a partir da resistência contra o neoliberalismo.
    2. A luta do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) contra o governo mexicano fortaleceu a consciência coletiva.

    Tese 3: Quem muda o mundo são as pessoas, e o que muda as pessoas são as experiências de vida compartilhadas
    1. O Movimento Zapatista é liderado por comunidades indígenas, demonstrando o poder da ação coletiva.
    2. A participação direta e decisória das bases é fundamental.

    Tese 4: A comunicação é o tecido conjuntivo das lutas
    1. O Movimento Zapatista utiliza comunicação alternativa (rádio, internet, redes sociais).
    2. A narrativa zapatista inspira solidariedade global.》

  2. Kraxbrisal – posto que obstinad@, rebarbou o oráculo e foi abduzid@ em supositório de algoritmo.
    LASCOU-SE :-)!!!

  3. Agradeço pelo comentário redigido. Estive às voltas com o tema e reparei também que os trinta anos do levante de Chiapas passaram em branco. Os desafios se amontoaram, ilusões cobraram seu preço. Contudo, de fato, os zapatistas continuam lá e merecem literalmente toda a atenção do mundo. Por aqui, como acolá, fica cada vez mais complicado responder à pergunta “que fazer?”. E o tempo urge, dada a centralidade (virtual) da década nos descaminhos próprios ao inferno produtivo e suicidário das questões climáticas. De baile em baile, se a decisão pela solidariedade anticapitalista não for mais cristalina, dançamos. Mas estamos vivos ainda. Talvez, a título de papelada, focar (junto ao raio-x do capitalismo) nas operações de contrainsurgência continue a oferecer oxigênio para ramais e caminhos. Seja como for, o central continua a ser os amigos cimentados pelas causas. Daí não dá pra confundir mesmo com ascensão social. Alhos e bugalhos. O vínculo de solidariedade (crítico, óbvio) precisa ser, nesse sentido, certeiro.

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