Por José de Sousa Miguel Lopes

Introdução

Após sua independência em 1975 Moçambique enfrentou uma terrível guerra civil, que opôs a direitista Renamo (Resistência Nacional de Moçambique), apoiada pelo então regime do apartheid da África do Sul e pelos EUA, ao governo socialista da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique).

Esse conflito se deu de 1977 até 1992, quando se assinou um acordo de paz, conhecido como “Acordo de Roma”. Tal acordo, apoiado pela maioria da comunidade internacional, conferiu prestígio internacional ao país.

A realização de eleições multipartidárias (1994, 1999, 2004, 2009, 2014, 2019 e agora, em 2024) sempre ocorreram de forma regular, democrática e pacífica, sem denúncias comprovadas de fraude; o pleno funcionamento, de forma ininterrupta, de seu poder Legislativo (a Assembleia da República) e a liberdade de expressão, religiosa e de associação, algo relativamente raro na África subsaariana, chegaram a situar Moçambique como modelo para países em situação pós-conflito.

Adicionalmente, em 6 agosto de 2019, foi assinado, em Maputo, o Acordo de Paz e Reconciliação. O evento histórico foi apresentado como conclusão do processo de paz entre o governo moçambicano e a Renamo. O instrumento foi firmado pelo presidente de Moçambique, Felipe Nyusi, e pelo general Ossufo Momade, líder da Renamo.

Para complicar ainda mais a situação de segurança de Moçambique, a província de Cabo Delgado, situada no extremo norte do país, vem sofrendo, desde 2017, ataques sistemáticos do autodenominado “Al-Shabaab Moçambicano” (ASM), grupo terrorista islâmico, que, em poucos anos, se fortaleceu a ponto de ameaçar a estabilidade dessa região do país. Estima-se que a instabilidade no norte de Moçambique tenha resultado, até o momento, em mais de 3.000 mortes e 800 mil deslocados internos. Muito embora o controle do porto e a vila sede do distrito de Mocímboa da Praia tenha sido retomado pelo governo moçambicano, a situação de instabilidade persiste, agravada pela crise dos alimentos e dos seguidos ciclones tropicais.

 

Moçambique: terremoto político

Além de seu imenso potencial agrícola, Moçambique é um dos países com maior potencial energético da África. Possui grandes reservas estimadas de carvão (23 bilhões de toneladas) e de gás natural (127 bilhões de metros cúbicos comprovados), além de elevado potencial de geração de energias renováveis, como eólica (4.700 MW), solar (2.700 MW) e bioenergia (2.200 MW).

Em particular, a confirmação, em 2011, de vultosas reservas de gás natural na Bacia do Rovuma, no extremo norte do país, e o projeto de liquefação de gás deverão tornar Moçambique um dos maiores exportadores mundiais de gás natural. Especificamente, tornar-se-á o terceiro maior exportador dessa commodity estratégica.

Nesse contexto, Moçambique tem-se aproximado bastante da China, e já aderiu ao projeto do Cinturão e Rota da Seda.

Da mesma forma, mantém boas relações com a Rússia. Com efeito, Moçambique e Rússia realizaram, nos últimos anos, movimentos de reaproximação, que culminaram com a assinatura de importantes acordos, sobretudo em cooperação militar, tendo a Rússia oferecido treinamento de pessoal e equipamentos militares para o governo moçambicano.

No campo geopolítico, o governo de Moçambique inclina-se mais para o BRICS e é crítico à imposição de uma nova “guerra fria” ao Sul Global, embora procure manter boas relações com os EUA e a União Europeia.

Moçambique: terremoto político

Em 25 de Agosto de 2023, o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, defendeu que a iniciativa de cooperação entre os países que fazem parte dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, e África do Sul), com países não BRICS, como Moçambique, aliada à sua expansão, configura um contributo positivo para a materialização das iniciativas africanas refletidas nas agendas para o desenvolvimento de África.

O governo da Frelimo, frise-se, não é hostil aos EUA, e a empresa norte-americana Exxon-Mobil já lidera um consórcio internacional para a exploração do gás natural moçambicano. Contudo, seria de interesse do “Ocidente” que Moçambique tivesse um governo mais alinhado aos seus interesses e menos independente. Os EUA estão muito preocupados com a crescente influência da China e da Rússia na África, em geral, e em Moçambique, em particular.

 

2024: um ano sem precedentes na história do voto a nível mundial

Em um ano sem precedentes na história do voto, mais de 80 países tiveram eleições legislativas ou executivas, nacionais ou locais — e ainda houve outras votações importantes, como a do Parlamento Europeu. No geral, o clima foi de mudança: a inércia típica das reeleições, quando as máquinas governamentais trabalham a favor da continuidade do poder, foi suplantada por um desejo de troca no comando, resultado de um mundo em estado prolongado de “policrise”, decorrente de guerras, alto custo de vida e outras ameaças.

Em mais de 80% das democracias que depositaram votos para eleições nacionais, o governo de situação perdeu cadeiras ou percentual de votos em relação à eleição anterior.

Foi ainda um ano de desconfiança generalizada, com grande número de eleições antecipadas e um impeachment presidencial na Coreia do Sul que quebrou a dieta mundial de dois anos sem ejeção de chefes de Estado via impeachment. Isso tudo sem contar com as reformas constitucionais que aconteceram à queima-roupa, como no Togo, ou reformas judiciárias que aconteceram no encalço de outras eleições, como no México. As cortes também foram acionadas sob vultosas suspeitas de fraudes e, pela primeira vez na história, um país europeu, Roménia, cancelou uma eleição em razão de fortes suspeitas de interferência estrangeira.

Nesse contexto, também não é de surpreender que mais de quatro em cada dez cidadãos do mundo não confiem em seus governos nacionais — patamar de confiança que piora a cada ano há mais de uma década.

Para não dizer que não falamos de Donald Trump nos Estados Unidos, sua vitória selou o fim de uma era — ou do Partido Democrata como o conhecemos hoje. Se, no começo do ano, a disputa era carimbada como “a eleição” do ciclo, com resultado incerto e potencial margem de vitória para Joe Biden, do Partido Democrata, o cenário político apresentou, algumas vezes, reviravoltas até o candidato do Partido Republicano ser consagrado não só como o novo presidente, mas como o primeiro presidente Republicano em vinte anos a conseguir ganhar também no voto popular. E não foi só a presidência; o partido de Trump conseguiu levar igualmente o Senado e a Câmara dos Representantes — as duas casas do Congresso norte-americano. Foi uma vitória devastadora.

Moçambique: terremoto político

Além disso, 2024 foi o ano em que massas de cidadãos ao redor do mundo não temeram protestar contra sistemas políticos que lhes viraram as costas — seja nas urnas, seja nas ruas. Seja votando em candidatos que não eram favoritos, seja bancando manifestações públicas de descontentamento. A contraparte da desconfiança nos partidos, políticos e instituições bem-estabelecidas é a insatisfação, a manifestação, até o boicote. O ano de 2024 mostrou cidadãos em alerta.

A extrema-direita, em ascensão nos países centrais do capitalismo, mas também na periferia do sistema, é uma manifestação da crise do capitalismo globalizado e das democracias liberais. É o caso de Moçambique que vive um terremoto político e social que ameaça colocar em questão a própria estrutura de um Estado já fragilizado, inclusive por abalos climáticos. Nas últimas semana, a violência já fez mais de duas centenas de mortos e colocou em cena a validade das eleições realizadas em outubro.

A crise aumentou quando, em 19 de outubro, dois representantes do partido Podemos, o partido de Mondlane, foram mortos a tiros. O ataque descarado enviou ondas de choque por todo o país e atraiu condenação mundial, incluindo do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, dos EUA e da União Europeia.

Análises internas e externas apontam que as eleições em Moçambique foram fraudadas. Um relatório da CPLP indicou problemas como “morosidade na apuração” e problemas nos “procedimentos de contagem” dos votos. Um outro informe, desta vez realizado por observadores da UE, também sinalizou para os problemas identificados. A missão “observou irregularidades durante a contagem de votos e a alteração injustificada dos resultados eleitorais”. Os bispos católicos de Moçambique também denunciaram manipulação de votos. Até ao momento, apenas 15 governos pelo mundo reconhecem os resultados divulgados pelos moçambicanos, entre eles Cuba, China, Rússia, Angola, Nicarágua e Venezuela.

Se o questionamento de resultado de eleições é comum no país, a diferença desta vez foi a articulação dos protestos, ganhando o apoio da classe média e baixa urbana. O governo reagiu com violência, revelando a estrutura precária das forças de ordem.

 

Moçambique: terremoto político

As acusações de diplomatas estrangeiros são, de fato, de que o pastor teria ampliado a crise social com discurso de ódio. Foram suas convocações que ampliaram o movimento de saques de lojas e estabelecimentos comerciais em Maputo e em outras cidades. Como forma de justificar a repressão, o governo se apressou em denunciar a tentativa de Mondlane de instrumentalizar o caos e chantagear o país.

A aposta de Venâncio Mondlane, uma espécie de Juan Guaidó de Moçambique, é forçar a continuidade dos atos para, quem sabe, receber apoio direto e intervencionista da OTAN, além dos grupos de mercenários, ONGS, Igrejas e mídias atlanticistas. Está no horizonte, no plano interno, uma desenhada intenção de jogar na divisão das forças armadas. Ele terá sucesso? A história dirá…

Quem concorre, no universo das eleições burguesas, é o caso em pauta de Venâncio Mondlane, não deve apresentar os resultados e muito menos anunciar a vitória antes do pleito. O roteiro, alicerçado na vitória prévia e nas denúncias de fraudes prenunciadas, não é uma novidade nos países controlados e principalmente golpeados pela OTAN. A disputa e o interesse pelo processo eleitoral de Moçambique têm relação com os recursos e/ou riquezas que estão no subsolo do país e com a posição geoestratégica relativa às novas rotas da seda, BRICS e países do cone sudeste e sul do continente africano.

O golpe híbrido e/ou a tentativa de golpe de Estado, em desenvolvimento em Moçambique, tem componentes comuns e a assinatura do imperialismo na sua concepção, execução e finalidade de captura, rapinagem e total controle dos recursos minerais, energéticos e geoestratégicos do país. Venâncio Mondlane é o ícone dessa política de desestabilização nacional. O objetivo é empurrar o país para o caos e, ao mesmo tempo e com saques e agentes mercenários infiltrados, fragilizar o governo e promover uma convulsão social que possibilite o golpe de Estado e/ou a total desorganização social e de todas as instâncias de governo, do Estado e fundamentalmente da soberania popular.

 

O que está acontecendo?

Moçambique está no fio da navalha. Já assolado por uma terrível insurgência jihadista, o país está agora lidando com as consequências violentas dos resultados das eleições.

As autoridades anunciaram a vitória do candidato do governo com 70,7% dos votos. Mondlane teria ficado com apenas 20,3%. O partido Podemos disse que deveria ter 138 dos 250 assentos no parlamento, em vez dos 31 que a comissão eleitoral disse ter conquistado.

Mondlane afirmou repetidamente que venceu e pediu que seus partidários saíssem às ruas. Isso levou a economia a uma quase paralisação, incluindo o fechamento da fronteira e a interrupção do comércio com a África do Sul.

Declarou vitória com base no fato de que uma contagem paralela parcial conduzida por sua equipe lhe deu a maioria dos votos, mesmo que ele tenha fornecido poucas evidências para comprovar sua alegação. O procurador-geral alertou em resposta que Mondlane deveria se abster de incitar distúrbios. Desrespeitando essa liminar, Mondlane convocou seus apoiadores, inclusive nas redes sociais, onde ele tem centenas de milhares de seguidores, em 16 de outubro, a se juntarem a protestos e realizarem greves gerais contra o manejo das eleições, capitalizando alegações confiáveis de grupos da sociedade civil e observadores locais e estrangeiros de que o processo estava repleto de irregularidades e fraudes.

Um primeiro protesto nacional, em 21 de outubro, foi dispersado por agentes de segurança fortemente armados que dispararam munição real contra manifestantes em várias cidades e bombas de gás lacrimogêneo contra jornalistas que entrevistavam Mondlane em Maputo. O candidato posteriormente fugiu para um esconderijo secreto, fora do país, especula-se que se encontra na Suécia, de onde agora transmite regularmente conversas ao vivo para seus seguidores no Facebook. Três dias depois, e para nenhuma surpresa, os resultados oficiais da eleição proclamaram Chapo como vencedor com 71 por cento dos votos, com Mondlane com 20 por cento. A Frelimo também aumentou sua maioria absoluta no parlamento para 195 de 250 assentos e manteve todos os onze cargos de governador provincial.

Moçambique: terremoto político

As frustrações entre os apoiadores de Mondlane com o governo da Frelimo se transformaram em protesto popular. Desde o duplo assassinato e o anúncio de que Chapo será o próximo presidente de Moçambique, as frustrações entre os apoiadores de Mondlane com o governo da Frelimo ampliaram os protestos populares contra o governo, em uma escala sem precedentes na história recente do país. Vários partidos da oposição — além do Podemos — se juntaram aos apelos de Mondlane para protestar. Manifestações ocorreram na maioria das províncias, com Maputo, Nampula e Zambézia entre os pontos críticos. Reuniões na capital atraíram milhares de pessoas e paralisaram a cidade, incluindo o porto, embora a polícia tenha impedido a formação de grandes multidões. Atos de vandalismo também foram relatados, com manifestantes destruindo escritórios do partido Frelimo em todo o país e uma delegacia de polícia em Nampula.

Em 7 de novembro, a agitação atingiu o auge quando Mondlane encorajou seus apoiadores a marchar em Maputo. Manifestantes e forças de segurança se envolveram em batalhas contínuas ao longo do dia, deixando várias pessoas mortas. A África do Sul fechou temporariamente sua principal fronteira terrestre com Moçambique, no mesmo dia em que os manifestantes moçambicanos a tentaram cruzar, com a polícia sul-africana disparando balas de borracha em uma tentativa de empurrá-los de volta. O governo também suspendeu a internet móvel em várias ocasiões. Em 12 de novembro, o chefe de polícia Bernardino Rafael chamou o movimento de protesto de “terrorismo urbano” com “a clara intenção de alterar a ordem constitucional moçambicana democraticamente estabelecida”. No mesmo dia, o procurador-geral anunciou que 208 processos foram iniciados contra os perpetradores “morais e materiais” da violência, provavelmente incluindo Mondlane.

Confederação das Associações Económicas (CTA) fez saber que mais de 500 empresas foram vandalizadas durante as manifestações pós-eleitorais em Moçambique, sendo que, até agora, 12 mil pessoas estão sem emprego. Onório Manuel, vice-presidente do pelouro da Indústria da CTA, disse que “são empresas localizadas, sobretudo, na província de Maputo, onde está a maior parte do tecido industrial do País” (MANUEL, 2024).

Advogados dizem que ajudaram a garantir a libertação de mais de 2.700 manifestantes de detenções ilegais. Várias organizações apontaram o impacto prejudicial das manifestações na economia, com a maioria dos trabalhadores ficando em casa nos dias de protesto, seja porque estão respondendo ao chamado de Mondlane para greve ou por medo da violência que podem encontrar no caminho para o trabalho. Mondlane pediu mais protestos até 15 de novembro, após o que ele diz que deve haver uma “pausa”. Para o analista Jamil Chade:

Até agora foram mais de 254 mortos, centenas de feridos e mais de 4,1 mil pessoas detidas. (…) Incêndios ainda causaram perdas de mais de 14 milhões de euros no setor de saúde, com a destruição de 77 ambulâncias e outras viaturas. (…) para além das perdas estimadas em 24,8 bilhões de Meticais (360 milhões de euros), agora mais 500 empresas foram ou vandalizadas ou saqueadas (…) Até novembro, os prejuízos das vandalizações estavam estimadas em 2,9 bilhões de Meticais (45 milhões de euro), e mais de 12 mil postos de emprego afetados, diretamente (…) Isto significa que cerca de 40% do tecido industrial de Moçambique foi vandalizado. Nos próximos tempos, haverá escassez de tudo, incluindo desemprego em massa. Prevê-se que mais de 500 mil pessoas poderão ir ao desemprego, de forma imediata, o que irá agravar a pobreza e condições sociais (CHADE, 2024).

Moçambique: terremoto político

 

Cerca de duas mil e quinhentas famílias moçambicanas do distrito de Morrumbala, na Zambézia, entraram nos últimos dias no país vizinho, Malawi, fugindo da tensão pós-eleitoral.

Desde 21 de outubro, pelo menos, ocorreram um total de 261 de óbitos e 573 baleados, segundo o último balanço feito pela plataforma eleitoral Decide (JULIÃO, p. 4). Para Ntsai:

Nunca em Maputo se destruiu tanto num só dia: hospitais, postos de energia, armazéns de medicamentos, lojas, condutas de água, bens públicos, repartições e serviços. Tudo que era nosso, agora ficou de ninguém. Tudo que era construção, ficou ruína (NTSAI, p. 5)

Para onde, provavelmente, os protestos caminharão a partir daqui?

Apesar da reputação da Frelimo de violar normas democráticas e eleitorais, a campanha de 2024 começou com uma surpresa quando o partido nomeou Daniel Chapo, de 47 anos, como seu candidato presidencial. Anteriormente governador da província de Inhambane, acredita-se que Chapo entenda a necessidade de abrir espaço democrático e empreender uma reforma significativa. Mas isso não significa que o partido no poder esteja pronto para afrouxar seu controle ainda, muito menos para abrir mão do poder. O atual presidente Nyusi, que permanecerá como secretário-geral do partido até pelo menos 2027, é apoiado por uma facção linha-dura dentro da Frelimo composta por generais da era da libertação com interesses comerciais que pretendem preservar a todo custo. A seleção de um jovem candidato com pouca experiência em política nacional é, segundo relatos, um compromisso forjado como resultado de uma luta interna pelo poder, em vez do reflexo de um desejo genuíno de mudar de rumo.

Nem Mondlane nem o governo parecem prontos para recuar, apesar da natureza mortal dos protestos. Mondlane declarou que está aberto a falar com o governo, mas ele afirma que os protestos continuarão até que ele seja proclamado o vencedor da eleição presidencial e até que o governo concorde com reformas como medidas anticorrupção e fornecimento de assistência médica acessível. Mondlane provavelmente calcula que a paralisia contínua das principais cidades do país forçará a mão do governo, enquanto ele perderia prestígio e ímpeto se aceitasse qualquer coisa aquém de suas demandas. Enquanto ele pede manifestações pacíficas, apimenta seus discursos com palavras combativas como “revolução”, além de enfatizar a necessidade de “acabar com o regime” e de “o povo tomar o poder”.

O governo, enquanto isso, está prolongando o jogo. Nyusi e outros oficiais têm repetidamente pedido calma e alertado que novos distúrbios serão enfrentados pela força. O governo provavelmente calcula que os protestos acabarão eventualmente diante das dificuldades econômicas ou mais brutalidade policial. Ainda assim, Chapo mostrou seu lado pragmático ao dizer que pode considerar o diálogo depois que o Conselho Constitucional confirmar os resultados das eleições, um processo que tradicionalmente leva algumas semanas.

Mas quais são as perspectivas de desescalada? Apelos para o diálogo vieram de vários quadrantes. Bispos católicos na influente Conferência Episcopal de Moçambique criticaram a condução das eleições e sugeriram que os políticos considerassem formar um governo de unidade nacional. A nível regional, a União Africana (UA) condenou os assassinatos de Dias e Guambe, ambos do Partido Podemos, e apelou à calma. Anteriormente, em contraste com a UE e outros, a equipa de observação eleitoral da UA descreveu as eleições como “pacíficas” e em conformidade com as leis eleitorais moçambicanas. Parceiros estrangeiros que apoiam o governo com ajuda ao desenvolvimento e assistência militar, nomeadamente a UE e os EUA, apelaram à contenção. A 2 de novembro, o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e da Política de Segurança, Josep Borrell, insistiu na necessidade de diálogo político.

Para limitar o risco de um confronto mais mortal, todos os lados devem recuar do abismo. As forças de segurança devem garantir os direitos dos manifestantes de se manifestarem pacificamente e responder com moderação se enfrentarem violência ou vandalismo. Chapo e Mondlane devem cumprir suas declarações de que estão abertos ao diálogo e explorar a possibilidade de negociações de desescalada. Embora os dois lados possam ver pouco espaço para compromisso, a intransigência tem riscos para ambos os lados. Os apoiadores de Mondlane acabarão se cansando e podem já precisar de um descanso, a julgar por seu desejo de pausar os protestos. As queixas expressas nas ruas de Moçambique, entretanto, dificilmente desaparecerão e podem ser o prenúncio de mais protestos antigovernamentais no futuro.

Moçambique: terremoto político

As discussões devem visar, antes de tudo, reduzir a brutalidade policial e o assédio de apoiadores da oposição. Uma concessão importante do governo seria dar garantias a Mondlane de que ele pode retornar com segurança a Moçambique e não será preso se prosseguir com seu trabalho político. As autoridades moçambicanas devem se comprometer a fornecer atualizações regulares sobre a investigação do assassinato de Dias e Guambe. Elas também devem cumprir seu compromisso de responsabilizar os perpetradores do ataque. As investigações sobre a violência pós-eleitoral devem ser justas, não motivadas por motivos políticos partidários.

Embora essas medidas ajudem a acalmar a animosidade entre os dois lados, o acordo sobre um resultado para a disputa eleitoral continua mais distante. A maioria das figuras seniores da Frelimo não estará disposta a aceitar Mondlane como interlocutor nas negociações sem garantias de que ele está preparado para retirar sua demanda de ser reconhecido como o presidente legítimo do país. Mesmo assim, as forças da oposição devem insistir na necessidade de negociar reformas no sistema político para torná-lo mais representativo e garantir uma maior diversidade de vozes. Muitos moçambicanos estão convencidos de que mudanças na forma como o país é governado serão necessárias para alcançar as melhorias sociais e econômicas que eles almejam.

Embora pareça haver pouca perspectiva de acordo entre os dois lados quanto ao resultado da eleição, uma série de medidas podem ajudar a tornar a votação mais transparente. As autoridades eleitorais devem publicar os resultados desagregados da eleição por seções eleitorais. Esta medida não seria apenas um sinal de boa vontade por parte das instituições eleitorais, mas também permitiria que os observadores verificassem a veracidade de uma série de alegações de fraude em torno do processo de tabulação. Simultaneamente, Mondlane deve fornecer mais detalhes sobre a metodologia que ele supostamente usou para chegar à conclusão de que venceu a eleição, para ajudar o público e os observadores a avaliar a credibilidade de sua alegação. Enquanto Moçambique luta contra uma onda de agitação, sinais claros de moderação e transparência de ambos os lados podem ajudar a restaurar a calma.

A extrema-direita se apropriou da política de forma que ela atravessa todas as dimensões da vida, e a identificação de parte do eleitorado com figuras desse campo cresceu.

Moçambique: terremoto político

A extrema-direita cresce no vácuo da incapacidade dos liberais e dos partidos de centro-esquerda de resolver problemas básicos das sociedades: desemprego, estagnação da renda, pobreza e desigualdade, saúde, educação, habitação, imigração, inflação, preços da energia e dos alimentos e crise ambiental. É certo que esses problemas foram agravados pela pandemia e pela guerra, mas existiam antes das mesmas.

Os partidos liberais e de centro-esquerda, no poder, costumam se insular em relação às sociedades, constituem elites que se servem dos privilégios públicos e da corrupção e só recorrem ao povo na hora do voto. Seu maior esforço consiste em promover políticas compensatórias que criam uma falsa sensação de distributivismo que disfarça os sistemas tributários regressivos.

Esses partidos não conseguem reter a lealdade eleitoral das massas e os partidos de centro-esquerda perdem até mesmo a lealdade dos trabalhadores, que se deslocam para as legendas de extrema-direita.

Com discursos nacionalistas e moralistas, com a defesa de valores conservadores e apelos a Deus e à religião, essas siglas se revestem de roupagem antissistema e prometem soluções heterodoxas que combinam ações de Estado, políticas populistas e liberdade de mercado.

A extrema-direita, com fórmulas simples e vazias de conteúdo, procura viabilizar-se por uma estratégia fideísta agregando fidelidades pelo moralismo e o conservadorismo. Essas agremiações estão ainda numa fase inicial de formação e de amadurecimento ideológico. O seu agrupamento mais desenvolvido e coeso parece aninhar-se no Partido Republicano dos Estados Unidos.

Moçambique: terremoto político

Tudo indica que a estratégia fideísta visa preparar contingentes para uma futura “guerra santa”, com o objetivo de assaltar o poder e estabelecer regimes autoritários. Esse é o desdobramento natural e previsível das estratégias fideístas. Os grupos religiosos extremados — evangélicos, católicos e judeus ortodoxos — constituem contingentes, por excelência, mobilizáveis por essa extrema-direita neonazista.

O risco potencial de regimes autoritários e totalitários sempre será uma ameaça latente nas zonas sombrias da alma humana. A ideia iluminista da infinita perfectibilidade da humanidade revelou-se uma falácia.

 

A corrupção das elites que governam o país

A Frelimo governa Moçambique desde que conquistou a independência de Portugal em 1975, mas o partido perdeu muito apoio público nos últimos anos. Autoridades do governo têm sido frequentemente associadas à corrupção, notadamente no infame caso das dívidas ocultas de US$ 2 bilhões conhecido como o “escândalo do atum”, que bloqueou a maior parte do investimento estrangeiro e levou a uma forte depreciação da moeda nacional, o metical, em 2016. Apesar dos enormes recursos de hidrocarbonetos, Moçambique é um dos países menos desenvolvidos do mundo, classificando-se em 183º lugar entre 193 nações no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. Também sofreu ciclones mortais nos últimos anos que devastaram a cidade portuária de Beira e inundaram repetidamente as plantações pertencentes a agricultores de subsistência. A frustração com o controle do partido no poder sobre o aparato estatal se acumulou entre uma população que exige mais espaço democrático, governo responsável e melhores perspectivas para o futuro. Esse sentimento é particularmente intenso entre os jovens que vivem em cidades que são ativos nas mídias sociais e constituem o núcleo da base de apoio de Mondlane.

Além disso, Moçambique está lutando contra uma insurgência ligada ao Estado Islâmico na província de Cabo Delgado, no norte, que uma sucessão de operações militares estrangeiras — incluindo mercenários da Rússia e da África do Sul — até agora não conseguiu reprimir. Maputo agora depositou suas esperanças de pacificar a área em cerca de 5.000 soldados ruandeses, que além de tentar extinguir a insurgência também são encarregados de proteger um projeto de gás multibilionário na península de Afungi que a TotalEnergies e outras empresas estrangeiras estão lutando para concluir por causa da insegurança na área.

A desconfiança no governo é abundante. A maioria das eleições desde a introdução da democracia multipartidária em 1994 foi manchada por acusações de fraude. As eleições municipais de 2023 foram um exemplo revelador, com a suposta vitória esmagadora da Frelimo, na qual ganhou 64 dos 65 municípios, gerando acusações de fraude eleitoral. As evidências de irregularidades levaram vários tribunais locais a invalidar os resultados e ordenar uma nova votação, com o Conselho Constitucional eventualmente entregando quatro municípios à Renamo.

O dia da votação na eleição presidencial de outubro ocorreu pacificamente, mas relatos de fraude surgiram rapidamente. Observadores locais e internacionais questionaram a integridade das urnas bem antes dos resultados oficiais serem anunciados, apontando casos do excessivo volume de cédulas, intimidação de eleitores e compra de votos. Por exemplo, a missão de observação eleitoral da União Europeia observou “alteração injustificada dos resultados eleitorais e nível da secção eleitoral e distrital”. Uma baixa participação, igualando a baixa histórica do país de 43%, ressaltou uma falta geral de confiança pública no processo eleitoral.

Embora Mondlane tenha inicialmente convocado protestos de rua como forma de repudiar a fraude eleitoral, as manifestações rapidamente se transformaram em uma demonstração mais ampla de insatisfação com o governo da Frelimo. As principais fontes de descontentamento público, que tiveram grande destaque na campanha de Mondlane, variam de raiva pela falta de espaço democrático à frustração com a brutalidade policial, corrupção e pobreza. Os assassinatos de Dias e Guambe, os mais recentes de uma longa lista de assassinatos de figuras de destaque em Moçambique, também alimentaram a ira popular.

Moçambique: terremoto político

Reina o tráfico de influências para garantir a riqueza exclusiva de um seleto grupo de membros da Frelimo, suas famílias e associados empresariais. Reina a exclusão e o empobrecimento. A acumulação de grande parte das elites governamentais assenta nas negociatas dos grandes projetos ligados ao gás e petróleo, ao tráfico de drogas, comércio de rubis e outras pedras preciosas, à “indústria” dos raptos, ao tráfico de madeira, entre outros.

As inspirações políticas e ideológicas de Venâncio Mondlane

Mondlane, de 50 anos, é um novato na política. Nas eleições autárquicas de 2018 Mondlane recebeu um convite do então líder Afonso Dhlakama e passa a liderar a campanha da Renamo (partido que nasceu e recebeu forte apoio do regime do apartheid). Em 2019 é assessor particular do presidente da Renamo e mandatário nacional do partido. É deputado e líder de bancada na AR em 2020.

Posteriormente tenta uma candidatura com a Coligação Aliança Democrática para as legislativas, depois de ser rejeitado para a liderança da Renamo, mas a Comissão Nacional de Eleições reprova-a.

Fez uma tentativa malsucedida de se tornar prefeito da capital, Maputo, em 2023.

Concorre, então, às presidenciais de outubro de 2024 como candidato independente anti-establishment com o apoio de um pequeno partido fundado por desertores da Frelimo, o Partido Otimista pelo Desenvolvimento de Moçambique (Podemos), partido fundado em 2019.

Enquanto isso, o principal partido de oposição do país, a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), que travou uma guerra civil com a Frelimo entre 1977 e 1992, entrou nas eleições fraco e dividido.

Moçambique: terremoto político

Mondlane é pastor na Igreja Ministério Divina Esperança, cujo fundador Luís Fole (e seu mentor) tem como líder espiritual o nigeriano Joshua Iginla. Este profetiza que Mondlane será um líder. Em 2019 Iginla adquiriu um jato particular e é atualmente um dos pastores mais ricos e influentes da Nigéria. Sua igreja ramificou-se por todo país. É possuidor de um patrimônio líquido estimado em US$ 4,2 milhões (ILHEUVA, 2024).

Com os crescentes tumultos, decorrentes dos resultados pós-eleitorais, e para fugir da Justiça, Mondlane abandona o país, para lugar incerto. Começa a fazer suas lives nas redes sociais a partir do exterior. Afirma ser um admirador do ex-presidente Jair Bolsonaro e tem sido apoiado por igrejas evangélicas brasileiras. Num vídeo disponível na internet (veja o vídeo aqui) não só agradece a uma destas igrejas, como presta homenagem a Jair Bolsonaro. Mondlane chamou o ex-presidente brasileiro de “homem de Deus” e “esperança do Brasil”. Importa destacar que Bolsonaro, que se encontra inelegível, é ainda acusado de prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado em milhares de mortes, infração a medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime, falsificação de documentos particulares, crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo), crimes contra a humanidade (nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos) (Agência Senado, 2024). Somados, os vários inquéritos podem resultar em penas de até 70 anos de prisão, caso Bolsonaro seja condenado, julgamento que deverá ocorrer nos primeiros meses de 2025.

É este currículo de Bolsonaro que leva Mondlane a manifestar sua enorme admiração por ele.

Ele também comemorou a vitória de Donald Trump por “proteger os valores morais da América” (Aqui). Sobre o currículo de Trump, um dos maiores facínoras da atualidade, se faz desnecessário tecer qualquer tipo de análise.

 

As inspirações messiânicas e econômicas de Venâncio Mondlane

Messiânico, ele chegou a anunciar ainda no começo de dezembro que não haveria Natal neste ano no país. “Vamos perder as festas, não vamos a praia, não vamos visitar a família, para organizarmos esse país. Este ano, os dirigentes vão ter de ficar com o povo, porque se eles saírem, nós vamos ocupar”, alertou.

Para se entender melhor os fundamentos que sustentam o messianismo religioso de Venâncio Mondlane, importa, ainda que de forma breve, apresentar alguns dados sobre a forma como operam as igrejas evangélicas no Brasil, pois é principalmente neste país que este pastor procura apoio e sustentação.

Inúmeros pastores tornaram-se ricos e poderosos manipulando a boa-fé dos que creem no Evangelho. Dos que roubam dinheiro público através de emendas secretas da bancada evangélica. Por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus do bispo Edir Macedo transformou-se em uma “agência política”, com uma lógica de ascensão ao poder. É a religião que mais cresce no Brasil e na América Latina e que se cola muito bem a esse projeto de direita que passa pela questão moral e pelo conservadorismo. Em janeiro de 2013, Macedo foi apontado pela revista Forbes como o pastor mais rico do Brasil, tendo seu patrimônio estimado em quase 2 bilhões de reais.

Outro pastor, Silas Malafaia, considera que seu Deus está expressamente ligado a uma “teologia da prosperidade”, na qual ele próprio é pródigo acumulando uma fortuna pessoal de mais de 150 milhões de dólares.

Esses pastores transformam o dízimo em um saque diabólico.

Moçambique: terremoto político

Na sua pluralidade e diversidade, sempre houve casos mais ou menos isolados de desvios envolvendo pessoas ou igrejas evangélicas. Porém, o que se vê agora é uma avalanche de perversões ditas religiosas, sobrepostas às relações promíscuas com o governo.

Templos religiosos são o melhor lugar para se lavar dinheiro no Brasil. Com efeito, nenhum templo religioso contribui com imposto no Brasil, e este é o ponto de partida para toda a roubalheira. Viabiliza que ali se lave dinheiro do narcotráfico, de jogos ilegais, dos políticos e das milícias.

Esses pastores alavancam o fascismo e o conservadorismo através do discurso da ‘família brasileira’, mas por trás desse discurso há uma narrativa machista, homofóbica e racista.

A mente da maioria dos fiéis está tão cauterizada que, infelizmente, não conseguem enxergar as coisas de forma mais abrangente. Os pastores fazem um trabalho muito forte de condicionamento mental nessas igrejas.

Eles se utilizam de artifícios bíblicos. Para eles a Bíblia descreve de forma incontestável a palavra de Deus. O pastor Silas Malafaia e muitos outros confiam cegamente nesse livro, que possibilita criar diversas interpretações. Sempre selecionam algum aspeto fora do contexto para tornar verdadeira a base ideológica que defendem.

Moçambique: terremoto político

É tudo empresa cara, a estrutura toda funciona na lógica empresarial. E na lógica do capital, como sabemos, a empresa foca o lucro, assim como essas instituições religiosas. A sorte é que eles ainda são muito fracionados, há interesses pessoais muito grandes envolvidos. Se não estivessem tão fracionados a possibilidade de eleger um presidente evangélico brasileiro seria muito maior.

Esta é uma das apostas de Mondlane. Não é difícil imaginar para onde se encaminhará o Estado moçambicano, ao seguir esta cartilha. Prestemos atenção neste grito de uma moçambicana, que nos alerta para os perigos deste projeto venancista:

Nunca tive paciência para assistir a uma “Live” do pastor. Pela primeira vez, dei-me ao esforço de seguir o anúncio da Turbo8. Era véspera do Natal. E fiquei assustada mesmo antes de VM7 começar a pregação. Enquanto ele dava tempo para juntar uma audiência mais volumosa, fui lendo os comentários dos seus seguidores. Aquilo não era uma plataforma virtual: era um templo e os crentes saudavam não um líder político, mas uma entidade divina (NTSAI, p. 6) (…) O que mais me assustou nessa “Live”, porém, foi o tom de ódio com que o pastor invocava constantemente um Deus vingativo, um Deus munido de machados, fogachos e punhais. Um Deus sedento de sangue, de cinzas e de ruínas. Não era esse Deus que eu conhecia. O meu Deus é o do amor, do abraço e da reconciliação. Mas foi esse outro Deus das pragas e dos apocalipses que o pastor Mondlane convocou (IDEM) (…) Não se esqueça, senhor Venâncio: o hino nacional fala contra os tiranos. Que não são apenas os corruptos da FRELIMO. Você também é um deles. Um tirano que, mesmo sem chegar ao poder, já nos está a escravizar com mais cem anos de fome e de pobreza (IDEM)

Para Ntsai, “um dirigente da oposição não pode convidar ao suicídio coletivo do seu próprio país. Nenhum médico pode mandar incendiar o hospital onde ele promete tratar os seus pacientes” (NTSAI, p. 6). É difícil não concordar com as posições defendidas por Ntsai.

O moçambicano Manjate, interroga-se preocupado: “que líder é este que proíbe as pessoas de irem à escola, de irem ao hospital e ao mercado” (MANJATE, p. 3).

Moçambique: terremoto político

Já agora, para perceber o quanto é nociva a ligação da política com os evangélicos desloquemo-nos para o Quénia, um país bem próximo de Moçambique. Observe-se este comentário de Wanda Njoya sobre o atual presidente queniano William Ruto:

A maior manifestação da fé de Ruto não está em sua visão de identidades sexuais, mas em seu pensamento econômico. Quatro anos atrás, a jornalista queniana Christine Mungai escreveu uma análise brilhante da “teologia gangster” de Ruto, argumentando que a camaradagem de Ruto com igrejas evangélicas era uma estratégia tática para se sustentar como um “vigarista”. (…) Ele teve que se alinhar com pastores que haviam fundado suas igrejas em prédios abandonados com poucos fiéis antes de se tornarem ricos líderes de megaigrejas.(…) Cabe aos pobres “trabalhar duro” usando os empréstimos que recebem, embora a altas taxas de juros, da mesma forma que Ruto passou de vendedor de frangos a presidente, e da mesma forma que pastores se tornaram donos de megaigrejas. (…) O evangelicalismo de Ruto é parte integrante de sua política econômica neoliberal, que ele acredita que abordará a situação das pessoas na base (NJOYA, 2023).

Ao analisarmos como a componente económica intercepta a componente religiosa busca-se compreender a corrupção que toma conta dos aventureiros políticos como Mondlane. Para o efeito, importa destacar a forma como nas últimas décadas, o conceito de corrupção se infiltra no modo de funcionamento dos Estados.

Nos anos que se seguiram à queda da União Soviética, a palavra “corrupção” começou a aparecer cada vez mais nos relatórios de agências multilaterais e organizações não governamentais. Esses relatórios argumentam que a corrupção está enraizada na função reguladora dos Estados que controlam projetos de desenvolvimento em larga escala e cujos funcionários públicos supervisionam a entrega de licenças e autorizações. Se a função reguladora do Estado puder ser minimizada, apontam muitos desses relatórios, a corrupção será menos generalizada. Esse tipo de discurso anticorrupção se encaixa perfeitamente na receita neoliberal de redução dos aparatos regulatórios dos Estados, desregulamentação e privatização da atividade econômica e promoção da ideia de que a liberdade da mão invisível do mercado cria uma base moral para a sociedade.

O epicentro desse argumento tem sido o continente africano, onde a ideia de “corrupção” — ou seja, corrupção do Estado — tem sido efetivamente usada para diminuir suas funções reguladoras e reduzir o número de funcionários públicos.

Moçambique: terremoto político

Em 1997, Matthew Parris, um membro conservador do Parlamento Britânico, nascido na África do Sul, disse: “a corrupção se tornou uma epidemia africana. É impossível exagerar o envenenamento das relações humanas e a paralisação da iniciativa que a corrupção na escala africana traz” (Szeftel, 1998, p. 221). As palavras — na escala africana – definem uma atitude em relação à corrupção que incorpora tanto a longa história colonial de roubo quanto o presente neocolonial de malversação corporativa no continente.

Os Estados pós-coloniais compreenderam muito bem as graves limitações que herdaram de seus antigos senhores coloniais, como um aparato estatal hierárquico projetado para aterrorizar a população colonizada e uma burocracia que foi treinada para servir aos objetivos do colonialismo, não ao povo. Com a saída dos burocratas coloniais, os Estados agora independentes tiveram que formar uma administração quase inteiramente nova, com pessoas que, muitas vezes, vinham de origens empobrecidas ou quase empobrecidas (condições materiais que poderiam aumentar a tentação de aceitar subornos).

Mesmo segundo estimativas conservadoras, a África tem sido, de fato, um credor líquido de capital para o mundo — não um devedor líquido, como é a percepção comum. Em outras palavras, se não fosse pelo roubo em grande escala, a África teria todo o capital necessário dentro de suas fronteiras para atender às suas aspirações de desenvolvimento.

E como ocorre a interseção entre a economia e a componente religiosa, mais concretamente a da “Teologia da Prosperidade”?

Atualmente, a Teologia da Prosperidade se faz presente em todo o mundo, exaltando os privilégios que a riqueza e o dinheiro podem trazer, apresentando-os como “retribuição de Deus” aos fiéis que seguem sua doutrina, substituindo a fé e a devoção divinas por “prósperos empreendimentos”.

Moçambique: terremoto político

A Teologia da Prosperidade redefine o neopentecostalismo. Para alcançar seus objetivos, os responsáveis pela disseminação dos ideais da Teologia da Prosperidade, buscam arrebanhar o maior número possível de adeptos, uma vez que por “prósperos empreendimentos”, compreende-se a doação aos “ministérios”, “obras” ou igrejas. Pregadores muito bem preparados constroem e apresentam aos doadores uma analogia simples, porém convincente: ao assumir o compromisso de se tornar um “empreendedor” a partir de uma primeira doação, o fiel estará plantando a semente da prosperidade.

Mas é preciso cuidar dessa semente, regando e cultivando-a com novas doações. Com isso, estão dizendo aos seus seguidores que a responsabilidade pelo sucesso ou o fracasso de seu empreendimento, depende única e exclusivamente de sua fidelidade a Deus, manifestada através de sua fidelidade à “igreja”.

Mas o que acontece se o fiel proceder de acordo com os ensinamentos e ainda assim não alcançar a graça proferida por suas palavras?

Nestes casos, as lideranças do neopentecostalismo atribuem a culpa única e exclusivamente ao seguidor, afirmando ser ele um indivíduo de “pouca fé” incapaz de exercer sua posse das bençãos por não conseguir associar espiritualidade com bens materiais, boas condições de saúde e felicidade, e por esta razão não merece a salvação. Estamos assim face um manifesto de profunda crueldade.

Quem é de fato o vencedor aqui? O mercado da fé que estimula o consumo fortalecendo o neoliberalismo e o capitalismo selvagem que condena milhares à fome e a miséria, ou o crente que sucumbe aos seus apelos em nome da fé e busca o acúmulo de bens? Não é difícil perceber que o vitorioso é o mercado da fé.

 

Moçambique: terremoto político

Uns pensam que deve se formar um Governo de Unidade Nacional, outros sugerem um Governo de Transição e outros ainda um Governo de Gestão.

Num quadro tão dramático parece ser extremamente difícil fazer uma escolha entre os dois principais partidos que disputam a governação do país.

De um lado, a Frelimo que, desde a morte de Samora Machel, em outubro de 1986, viu a progressiva acentuação da corrupção desenfreada dos principais dirigentes.

Do outro, um candidato populista de extrema-direita que almeja também lançar mão dos mecanismos de acumulação da Frelimo, acrescidos de uma nova fonte de acumulação: a proveniente da componente evangélica, sugando desenfreadamente os poucos bens das massas empobrecidas.

Ou seja, de forma irónica, parece que o povo moçambicano será “coagido” a escolher entre dois acumuladores. Existe um ditado popular que diz: “Atrás de mim virá, quem me louvará”. Que não se cumpra este ditado e que o povo moçambicano possa encontrar outros mecanismos que rompam com esta dualidade.

 

Considerações finais

Face ao quadro apresentado parece-nos importante tecer breves considerações sobre os passos que se avizinham de forma a restabelecer a estabilidade social, criando as condições para a retomada de um verdadeiro processo democrático.

A partir desse restabelecimento, faz-se necessário implementar políticas compensatórias de mitigação da pobreza e da desigualdade e de recuperação do emprego e da renda para dignificar os moçambicanos mais pobres. Será necessário realizar reformas estruturantes, que eliminem os mecanismos que produzem a desigualdade e a concentração de renda numa perspectiva de longo prazo.

Existem duas tarefas ainda mais difíceis. A primeira consiste em favorecer a organização e a participação política do povo como forma efetiva de conquista e garantia de direitos. A segunda, imbricada com a primeira, consiste em criar afetos, fidelidades, uma adesão espiritual a um projeto de país, de nação e de humanidade. As formas vazias da república e da democracia precisam ser superadas pelo calor comunitário da participação e da mobilização, orientadas por valores universalistas da construção de um destino comum para a humanidade em nosso planeta.

Importa compreender qual a intensidade do neocolonialismo em Moçambique e qual a participação do “inimigo interno”. Muitos discursos têm proliferado alegando a criminalidade estrangeira em face da frágil situação moçambicana, uma leitura homogeneizante e perigosa. Por melhor intencionados que sejam, trazem dois problemas derivados e uma perspectiva que, ao alegar a longa história de exploração e negar ou diminuir a participação moçambicana em sua própria história, promovem uma leitura muito parcial do passado e colocam os moçambicanos numa situação de debilidade. O primeiro problema é a produção de uma história de Portugal em Moçambique com a participação de alguns moçambicanos que de forma valente, mas frágil, inocente e quase insana tentaram defender sua autonomia e liberdade. O segundo é o reforço à ideia de que Moçambique não tem condições de caminhar sozinho, que dependeu e sempre vai depender da ajuda internacional. Os dois problemas nos encaminham para o velho discurso colonial de que o homem branco tem como dever moral educar e civilizar o continente negro.

Gostaria apenas de chamar a atenção para o fato de que como seres humanos os moçambicanos são seres desejantes, com capacidade intelectual e livre arbítrio. Portanto, acredito que não auxilia muito pensar Moçambique de forma generalista ou reafirmar a perspectiva neocolonial de maneira dissociada das múltiplas realidades moçambicanas, pois sua presença em Moçambique é fruto de uma omissão dos governos locais, o dos bem sucedidos agenciamentos coletivos que alimentam o Capitalismo Mundial Integrado.

O ano de 2024 veio reforçar um mundo em realinhamento. Um realinhamento de forças que clama por novas lideranças, já que aquelas do final da Segunda Guerra Mundial não conseguem mais responder aos desafios presentes. Esses espaços estão sendo disputados a unhas e dentes, e muitas vezes por forças claramente antidemocráticas, como é o caso presente em Moçambique.

Mais do que nunca, este é o momento para países do Sul Global, como Moçambique, se unirem em torno de uma nova agenda: mais democrática, ambiciosa e inclusiva.

Moçambique: terremoto político

Referências

CHADE, Jamil. Moçambique vive pior crise em 50 anos e opositor sugere paramilitares. UOL, 29/12/2024.

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/12/29/mocambique-vive-pior-crise-em-50-anos-e-opositor-sugere-paramilitares.htm

LHEUVA, Sandra. Biografia de Joshua Iginla – esposa, filhos, ministério e patrimônio líquido. Thrillng, 29/05/2024

https://thrillng.com/joshua-iginla-biography/

JULIÃO, Paulo. O regresso da ”Vigilância Popular” nos dias do fim do sinistro Nyussismo. In Carta da Semana, 28/12/2024. file:///E:/Users/User/Downloads/Carta%20da%20semana%20ed%2018_web.pdf

MANJATE, Joaquim Marcos. “Não é Venâncio Mondlane que é forte, o Estado é que está a falhar!”. In: Carta da Semana, 28/12/2024 file:///E:/Users/User/Downloads/Carta%20da%20semana%20ed%2018_web.pdf

MANUEL, Onório. Manifestações Gerais: “Mais de 500 Empresas Vandalizadas e 12 Mil Pessoas Desempregadas” – CTA. Diário Económico, 30/12/2024.

https://www.diarioeconomico.co.mz/2024/12/30/economia/desenvolvimento/manifestacoes-gerais-mais-de-500-empresas-vandalizadas-e-12-mil-pessoas-desempregadas-cta/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_source_platform=mailpoet&utm_campaign=Dezembro%202024

NJOYA, Wandia. William Ruto e os evangélicos. In: África é um país, .27/01/2023

https://africasacountry.com/2023/01/william-ruto-and-the-evangelicals

NTSAI, Margarida. Deixe de cantar o hino, senhor engenheiro. In: Carta da Semana, 28/12/2024. file:///E:/Users/User/Downloads/Carta%20da%20semana%20ed%2018_web.pdf

SZEFTEL, Morris ‘Misunderstanding African Politics: Corruption and the Governance Agenda’, Review of African Political Economy 25, n. 76, jun. 1998.

 

A imagem em destaque é da autoria de © Siphiwe Sibeko/Reuters. As demais artes, no corpo do texto, são da autoria de Malangatana (1936-2011).

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