Por Jan Cenek
Uma sensação estranha — que não compartilhei com ninguém — me acompanhou durante a infância: imaginava um rio atrás do meu quarto. Nunca entendi muito bem o porquê. Não havia sinais nem vestígios da presença do rio. Teria sonhado? Talvez. Ou então podia ser mais uma superstição infantil. Minha infância foi recheada de anjos, assombrações, espíritos, pecados, igrejas. Ocorre que, décadas depois, tive acesso a um mapa hidrográfico da cidade de São Paulo. Descobri que, na direção da janela do quarto em que cresci, na rua Gurupá, fica um dos braços canalizados do Água Preta. Existe realmente um rio atrás do quarto em que cresci. Eu conhecia os cursos principais do Água Preta, mas não desconfiava que havia crescido bem perto de uma das nascentes canalizadas. Senti uma espécie de epifania ao ver o mapa hidrográfico de São Paulo. Foi a epifania do Água Preta. Por que passei a infância com a sensação estranha de que havia um rio atrás do meu quarto? Só há uma explicação. Cresci ouvindo histórias contadas por antigos moradores da Vila Anglo, pessoas que chegaram no bairro antes da canalização do Água Preta. Certamente alguém me contou sobre o rio que nascia na região. Deve ter dito que uma das nascentes era visível da janela do meu quarto. O impacto da história foi tão forte que nunca a esqueci, mesmo não lembrando quem a contou e nem quando. Imediatamente lembrei da história quando vi uma nascente do Água Preta na rua Gurupá, no mapa hidrográfico de São Paulo. Existe um rio canalizado ali. Imagino que a água nasce no pé de um barranco coberto por casas e sobrados, que corre por baixo deles até encontrar o rio Tietê, e depois o rio Paraná, e depois o rio da Prata, e depois o oceano Atlântico. Interessante pensar que a água que brota na rua em que cresci percorre boa parte da América do Sul antes de desaguar entre a Argentina e o Uruguay.
O avô do escritor Afonso Cruz [1] foi preso e torturado pela polícia política. O velho nunca comentava a história. Ocorre que, quase vinte anos após a morte do avô, o escritor teve acesso a um livro chamado Eles vieram de madrugada, de Manuela Câncio Reis. O livro foi encontrado na biblioteca do pai de Afonso Cruz, na folha de rosto havia uma dedicatória: “Para o meu neto, para que ele perceba um pouco daquilo que eu passei” [2]. Era como se o livro tivesse sido escrito do avô para o neto. Era uma espécie de leitura para o futuro. O menino precisava se tornar homem para conhecer aquela história. Afonso Cruz sentiu uma epifania. A voz que ouvia ao ler o livro era a do avô. Deve ter sido parecido com o que senti quando vi o mapa hidrográfico de São Paulo, com uma das nascentes do Água Preta localizada na rua em que cresci. A diferença é que não consigo identificar a fonte da história que ouvi quando menino. Quem sabe houve mais de um autor, o que tornaria tudo ainda mais interessante. Quem sabe o meu finado avô foi um dos coautores. São possibilidades.
Na África se diz que quando morre um velho, desaparece uma biblioteca [3]. Tenho uma visão menos fatalista. As bibliotecas não desaparecem porque os livros se reagrupam e se oferecem para outros leitores. Também as histórias se reencontram e se recontam em outros tempos e contextos. A história do avô do escritor Afonso Cruz recontada a partir da dedicatória presente na folha de rosto de um livro. A história do rio que corre atrás do quarto em que cresci recontada no mapa hidrográfico elaborado, talvez, por pessoas que cresceram perto de mim e ouviram histórias parecidas.
Tenho 46 anos. Idade difícil em que precisamos ganhar a vida, mesmo sabendo que estamos perdendo. Temos pouco tempo para ouvir histórias e não temos muitas histórias para contar. Certamente porque uma coisa é inseparável da outra. Como ensinou Eduardo Galeano, para saber falar, saber escutar [4]. Quem não sabe ou não tem tempo para escutar, terá dificuldade para falar, ou dirá banalidades, como as que dominam as redes sociais. Pode ser uma espécie de crise da meia idade ou, quem sabe, algo mais sério, um sinal de esgarçamento das coisas como as conhecemos. Fico pensando: que criança cresce, atualmente, ouvindo histórias dos mais velhos? Que histórias contarão as crianças formadas pelos vídeos do TikTok? Se as histórias não morriam, se eram reencontradas e recontadas, como as bibliotecas se reagrupam e se oferecem para outros leitores: a morte está sendo inventada no tempo presente. A morte será quando não tivermos tempo para ouvir histórias. A morte será quando não tivermos histórias para contar.
Notas
[1] Afonso Cruz. O vício dos livros. Porto Alegre: Dublinense, 2024.
[2] Ibid., p. 89.
[3] Ibid., p. 86.
[4] Esse e outros ensinamentos podem ser conferidos no documentário Eduardo Galeano Vagamundo.