Por Leo Vinicius
Este ano completa-se uma década que lutas dos chamados entregadores de aplicativo se tornaram frequentes no Brasil e em boa parte do mundo. Em 2016 emergiram lutas em vários países, como Brasil, Inglaterra, Itália… e desde então, com picos e refluxos, as paralisações e piquetes dos entregadores de aplicativo são vistos com frequência.
No entanto, de forma geral, e não só no Brasil, a situação dos entregadores de aplicativo (de bicicleta ou moto) continua a mesma, ou, mais provavelmente, piorou. Taxas menores do que quando as empresas de entrega por aplicativo entraram no mercado; redução da preconizada e precária autonomia através de sistemas de agendamento e de Operador Logístico, entre outros artifícios para controlar a força de trabalho; e condições de trabalho e segurança pelo menos tão ruins quanto antes. Embora algumas paralisações possam resultar em conquistas pontuais, como desbloqueio de entregadores e aumento de taxas em um determinado município, o fato é que, no Brasil e pelo mundo, as conquistas têm se caracterizado por serem efêmeras. Há uma necessidade bastante clara, tanto no Brasil como em países europeus como a Inglaterra, para que se consiga avançar: conseguir ir além de paralisações e manifestações e construir formas de organização efetivas e que se mantenham, e vitórias que sejam duradouras. Erik Wright já apontava há um quarto de século que, com níveis relativamente pequenos de poder os trabalhadores podem atrapalhar consideravelmente os interesses capitalistas, mas esses níveis de poder são insuficientes para gerar um ganho duradouro aos trabalhadores [1].
Nesses termos a questão, portanto, é de como constituir e exercer poder. Neste texto não tratarei de questões relacionadas à organização coletiva dos entregadores, mas apenas questões de táticas de luta relacionadas à constituição e exercício de poder sobre as empresas de entrega por aplicativo.
O fato é que, além de não constituir força para avançar, a repetição de táticas pouco ou nada efetivas têm o potencial de desencorajar a categoria e afastá-la de mobilizações e organizações coletivas para melhoria de salário e das condições de trabalho. Aqueles que tentam iniciar uma luta passam a ouvir então o famoso “não adianta nada”. Pelo menos no Brasil, a repetição de paralisações de um dia, e em geral isoladas em um município, embora possam ter um potencial de acúmulo de experiência, possuem também esse potencial de gerar desgaste da categoria e a percepção de que “mobilizações não adiantam nada”.
A alta rotatividade de trabalhadores nessa atividade tem sido considerado um fator que dificulta a continuidade da organização e os processos de mobilização [2], além de dificultar o acúmulo de experiência e de laços entre os entregadores (talvez a alta rotatividade explique em parte a repetição de táticas de luta). Por outro lado, a dimensão pública da atividade de entrega de comida, o fato de lidarem com o consumidor final e terem visibilidade nas ruas, facilita conseguir a adesão dos consumidores em mobilizações e o apoio de organizações, entidades, personalidade públicas etc.
Atingindo a imagem e o efeito de rede das empresas
Há pelo menos trinta anos a marca e a imagem das empresas passaram a ter um peso econômico muito maior na avaliação do valor econômico das empresas, mesmo das que não lidam com o consumidor final. Para o economista Christian Marazzi, o crescimento desses ativos imateriais das empresas indicaria que o capital fixo estaria se tornando o conjunto das relações sociais [3]. E de fato, nas plataformas digitais é o conjunto das relações sociais que formam o chamado efeito de rede, que é central na valorização e sobrevivência delas. As relações estabelecidas simultaneamente com uma multidão de consumidores, uma multidão de restaurantes e lanchonetes e uma multidão de entregadores seria assim o principal ativo das empresas de entrega de comida por aplicativo.
Uma das características fundamentais das plataformas digitais é que elas produzem e dependem desse efeito de rede [4]. O efeito de rede é o nome dado ao fato de que quanto mais pessoas usam uma plataforma, mais elas se tornam atrativas para potenciais usuários. Os restaurantes são atraídos para a plataforma pelo número de potenciais clientes que a utilizam; os potenciais clientes são atraídos para a plataforma pelo número de opções de restaurantes que usam a plataforma (além das táticas de preços subsidiados para atrair usuários); e para que a relação entre restaurante e cliente se estabeleça satisfatoriamente é necessário um volume suficiente de entregadores. Esse efeito de rede faz com que as plataformas digitais tendam a se tornarem monopólios. Não à toa o iFood detém cerca de 83% do mercado de entrega de comida por aplicativo [5].
Enquanto as greves na indústria buscam paralisar a produção para asfixiar economicamente a empresa, as greves dos entregadores de aplicativo não têm sido capazes de efetivamente parar a produção, mas muitas vezes causam prejuízo reputacional e econômico quando atingem a imagem pública da empresa [6]. Talvez principalmente na Europa, campanhas online muitas vezes são realizadas simultaneamente às manifestações e paralisações dos entregadores nas ruas [7]. A combinação dessas táticas esteve presente na primeira luta de entregadores de aplicativo na Itália, em 2016. Os ciclistas que trabalhavam para a empresa Foodora em Turim, coordenaram, simultaneamente à paralisação do trabalho, uma campanha tendo como alvo as páginas da empresa nas mídias sociais e pedindo que os consumidores boicotassem o aplicativo [8]. O Breque dos Apps no Brasil em 2020 e a campanha na Oferta Pública Inicial de ações da Deliveroo em 2021 no Reino Unido são exemplos de lutas que atingiram significativamente a imagem das empresas e seu valor econômico associado a ela. A campanha contra mudança de relação de trabalho dos motoboys do eFood na Grécia em 2021, mais do que isso, atingiu o efeito de rede da empresa, resultando na vitória talvez mais significativa que se tenha notícia em lutas de entregadores de aplicativo pelo mundo.
Embora seja muito difícil fazer uma estimativa do número de entregadores que aderiram à paralisação em 1º de julho de 2020 no Brasil, que ficou conhecida como Breque dos Apps, pela dimensão que ela ganhou em São Paulo provavelmente se tornou a maior paralisação de entregadores de aplicativos no Ocidente. Embora o foco da organização do Breque dos Apps tenha sido a mobilização dos entregadores para uma greve, houve também alguma energia voltada a mobilizar o apoio dos consumidores. O Treta no Trampo produziu e divulgou uma cartilha para os clientes que gostariam de apoiar a greve. Pedia que os clientes ajudassem a divulgar o Breque imprimindo e colando cartazes e compartilhando hashtags nas mídias sociais, que avaliassem os aplicativos de entrega com notas baixas no Play Store e Apple Store e que não realizassem pedidos no dia da paralisação. Foram mais de 53 mil avaliações dessas empresas feitas pelos usuários no dia 1º de julho, sendo que em 98% delas foi dada uma estrela, a pior avaliação possível [9]. A nota do iFood caiu em um dia de 4,5 para 3,9, da UberEats de 4,3 para 4,0 e da Rappi 4,2 para 3,7. As métricas de engajamento do Instagram apontam que a campanha de mobilização foi bem-sucedida naquela que é a principal mídia utilizada pelo Treta no Trampo e provavelmente pela maioria dos entregadores [10]. O #BrequedosApps chegou aos trending topics no Twitter [11].
Além de conseguir trazer uma boa exposição pública da situação vivida pelos entregadores de aplicativos, o Breque dos Apps arranhou a imagem das empresas de entrega de comida por aplicativo. Esse prejuízo à imagem provavelmente foi maior do que aquele trazido pela paralisação curta e parcial da produção. O prejuízo à imagem e marca das empresas de entrega de aplicativos ficou evidente pelo investimento do iFood em propaganda e relações públicas por causa do Breque. O iFood chegou a pagar o horário mais caro da TV aberta para colocar uma nota em que dizia atender algumas das reivindicações dos entregadores. Embora o resultado prático do Breque dos Apps também tenha sido muito pequeno e efêmero, dele podemos perceber que atingir a imagem e a marca da empresa parece ser particularmente importante, uma vez que paralisações significativas das entregas e por tempo suficiente para dobrar a empresa tem se mostrado quase impossível devido às características das relações e da força de trabalho [12].
Por ser muito difícil que uma greve paralise nacionalmente as entregas de uma empresa-plataforma que tem a seu dispor uma multidão de entregadores que recebem salário por entrega, atingir a imagem da empresa se tornou uma parte essencial das ações organizadas pelo IWGB – um sindicato de base do Reino Unido que tem se articulado com os entregadores. Sabendo que a Deliveroo iria abrir seu capital na bolsa de valores de Londres, o IWGB organizou uma campanha para atingir a imagem da Deliveroo expondo a má remuneração e as más condições de trabalho dos entregadores que trabalhavam para ela. A campanha bem planejada envolveu jornalistas, uma ONG e conseguiu o apoio de dezenas de deputados. Para o dia da Oferta Inicial de Ações da Deliveroo foi marcada uma greve com motociata até a sede da Deliveroo em Londres, ocorrendo simultaneamente paralisações em solidariedade em outros cinco países. O resultado da campanha foi a pior Oferta Inicial de Ações da história da bolsa de Londres, com a Deliveroo deixando de capitalizar cerca de 2 bilhões de libras [13].
Em setembro de 2021, 115 entregadores foram informados pelo eFood, a maior empresa de entrega por aplicativo da Grécia, que os contratos que terminavam final daquele mês não seriam renovados. Os entregadores que quisessem continuar trabalhando para a empresa teriam que passar a ser “autônomos”. Os entregadores convocaram uma mobilização apoiados por dois sindicatos, o SVEOD, um sindicato de base de motoboys e bikeboys, e o HWU, um sindicato dos trabalhadores do setor de turismo e de outros comércios. Ao mesmo tempo, uma campanha pública foi lançada principalmente através do Twitter, com a hashtag #cancel_efood, pedindo para os consumidores desinstalarem o app do eFood e o avaliarem negativamente [14]. Em apenas um dia a nota do eFood no Play Store caiu de 4,6 para 1,0. Não se sabe o número de pessoas que desinstalaram o app, especulando-se ter sido de centenas até dezenas de milhares de pessoas.
No dia 22 de setembro foi realizada uma paralisação de quatro horas, contando com mais de mil motoboys tomando as ruas de Atenas, o que significava cerca de metade de todos os entregadores do eFood em toda a Grécia. No dia seguinte o eFood decidiu não apenas abandonar a mudança de relação de trabalho daqueles 115 entregadores como conceder contratos permanentes a 2000 entregadores que até então tinham contratos temporários através de empresas terceirizadas. Com essa plena vitória, a greve de 24 horas que havia sido marcada acabou sendo uma manifestação de comemoração no centro de Atenas [15].
Ao afetar a relação dos consumidores com o aplicativo, esse movimento na Grécia estava corroendo um dos principais ativos da empresa. O valor da plataforma é formado principalmente pelo efeito de rede que ela consegue estabelecer, uma vez que essas plataformas são facilmente substituíveis. Romper ou desestabilizar as relações constituídas entre a multidão de consumidores, de restaurantes e de entregadores com a plataforma, atinge o cerne da constituição do seu valor econômico.
Em suma, visar os ativos intangíveis dessas empresas, como a imagem pública e a reputação dessas empresas e de suas marcas, e as relações sociais que constituem o efeito de rede, parece ser fundamental para exercer poder sobre essas empresas de plataformas digitais. Os exemplos do Breque dos Apps, da Oferta Inicial de Ações da Deliveroo, e principalmente a vitória obtida no caso do eFood na Grécia em 2021, apontam não apenas que isso é possível, mas que essa tática pode trazer resultados concretos. Aliás, para alcançar ganhos concretos, deve-se lembrar que visar uma empresa por vez, e não o conjunto das empresas do setor ao mesmo tempo, tende a ser tática mais acertada. Maior pressão se exerce sobre uma empresa quando ela vê seus clientes migrando para outra.
Sem dúvida, realizar esse tipo de campanha que busque envolver os trabalhadores e os consumidores, de modo a atingir a imagem da empresa e seu efeito de rede, requer um planejamento e dedicação maiores e muito mais metódicos do que os chamados de paralisação de entregadores que pipocam pelo Brasil.
Pensar demandas que tenham maior possibilidade de serem duradouras caso conquistadas, também é algo a ser pensado. As demandas por aumento de taxas numa situação legal e factual em que a empresa pode reduzir as taxas a qualquer momento ou congelá-las para sempre, se conquistadas, tendem a gerar vitórias efêmeras. É preciso demandar os termos de alguma forma de mecanismo, de contrato de trabalho ou lei que impeça que essas empresas possam reduzir e congelar o que pagam aos entregadores. Além disso, é mais provável que esse tipo de conquista ocorra através de mobilizações e lutas articuladas nacionalmente ou internacionalmente.
Notas
[1] Wright, E. O. (2000). Working-Class Power, Capitalist-Class Interests, and Class Compromise. American Journal of Sociology, 105(4), 957-1002. https://doi.org/10.1086/210397
[2] Woodcock, J. & Cant, C. (2022). Platform Worker Organising at Deliveroo in the UK: From Wildcat Strikes to Building Power. Journal of Labor and Society, 1-17. https://doi.org/10.1163/24714607-bja10050; e Tassinari, A. & Maccarrone, V. (2020). Riders on the Storm: Workplace Solidarity among Gig Economy Couriers in Italy and the UK. Work, Employment and Society, 34(1), 095001701986295. https://doi.org/10.1177/0950017019862954
[3] Marazzi, C. (2009). O Lugar das Meias. Civilização Brasileira.
[4] Srnicek, N. (2017). Platform Capitalism. Polity Press.
[5] Sheng, C. (2021). 2021 Brazil Food Delivery: iFood continues to lead with over 80% Market Share. Measurable AI. https://blog.measurable.ai/2021/09/07/2021-brazil-food-delivery-ifood-continues-to-lead-with-80-market-share-rappi-ubereats/
[6] Grohmann, R., Mendonça, M. & Woodcock, J. (2023). Communication and Work From Below: The Role of Communication in Organizing Delivery Platform Workers. International Journal of Communication, 17: 3919-3937
[7] Vandaele, K. (2021). Collective resistance and organizational creativity amongst Europe’s platform workers: a new power in the labour movement? In: Haidar, J., & Keune, M. (Eds). Work and Labour Relations in Global Platform Capitalism (pp. 206-235). Edward Elgar Publishing. https://doi.org/10.4337/9781802205138
[8] Tassinari, A. & Maccarrone, V. (2020). Riders on the Storm: Workplace Solidarity among Gig Economy Couriers in Italy and the UK. Work, Employment and Society, 34(1), 095001701986295. https://doi.org/10.1177/0950017019862954
[9] Santiago, J. C. S. (2024). Quando Novos Proletários entram em cena: O breque (greve) dos entregadores de apps no Brasil em julho de 2020. Research, Society and Development, 13(1), e14913144896-e14913144896. https://doi.org/10.33448/rsd-v13i1.44896
[10] Desgranges, N. & Ribeiro, W. (2021). Narrativas em rede: O Breque dos Apps e as novas formas de manifestação de trabalhadores em plataformas digitais. MovimentAção, 8(14), 189-208. https://doi.org/10.30612/mvt.v8i14.15024
[11] Piaia, V., Matos, E., Almeida, S., Dienstbach, D. & Barboza, P. (2021). “Breque dos Apps”: Uma Análise Temporal de Comunidades e Influenciadores no Debate Público Online no Twitter. Comunicação E Sociedade, 39, 57-81. https://doi.org/10.17231/comsoc.39(2021).2855
[12] Entre outras coisas por haver uma multidão de entregadores à disposição e outros esperando liberação de cadastro, além de muitos não terem nessa atividade a fonte principal de renda, o que faz com que não tenham muito interesse em se engajar em mobilizações. Evidentemente os piquetes, como em outras categorias de trabalhadores, são um recurso para lidar com esses fatos.
[13] Grohmann, R., Mendonça, M. & Woodcock, J. (2023). Communication and Work From Below: The Role of Communication in Organizing Delivery Platform Workers. International Journal of Communication, 17: 3919-3937
[14] Vrikki, P. & Lekakis, E. (2023). Digital consumers and platform workers unite and fight? The platformisation of consumer activism in the case of #cancel_efood in Greece. Marketing Theory, 24(1), 173-190. https://doi.org/10.1177/14705931231195191
[15] Tsardanidis, G. (2024). #cancel_efood: Online solidarity to platform Workers. Futures of Work. https://futuresofwork.co.uk/2024/04/29/cancel_efood-onlinesolidarity-to-platform-workers/; Doherty, I. (2021). How Greek Delivery Riders Are Fighting the Gig Economy. Tribune. https://tribunemag.co.uk/2021/10/how-greek-delivery-riders-arefighting-the-gig-economy; e Vrikki, P. & Lekakis, E. (2023). op. cit.
As imagens que ilustram o corpo do texto são do Manual de apoio da população ao 2º BrequeDosAPPs