Por Hugo Alves
O governo Lula lançou o programa Mais Professores tendo em vista ampliar a qualificação e valorização dos profissionais da educação. É um programa que irá, segundo estimativas do Ministério da Educação, beneficiar cerca de 2,3 milhões de profissionais, afetando positivamente desde formandos em licenciatura até profissionais já atuantes na área há mais tempo. O intuito desse artigo é abordar criticamente o programa e apontar os limites de sua influência nos problemas estruturais da educação brasileira, dando ênfase à categoria dos professores, bem como apontar a sua relação com o neoliberalismo.
É importante enfatizar que não há qualquer pretensão de negar os benefícios que o programa oferecerá e nem tampouco de desdenhar dos beneficiados, mas de apontar os limites justamente para que seja possível estabelecer um debate abrangente acerca da valorização dos profissionais da educação, visando uma transformação estrutural nesse âmbito. O programa está estruturado em cinco eixos, os quais não serão abordados detalhadamente aqui, mas apenas os elementos essenciais vinculados ao intuito do artigo.
Os cinco eixos são seleção, atratividade, alocação, formação e valorização. O ponto central da seleção é a Prova Nacional Docente, que irá uniformizar e otimizar o processo seletivo de professores; a atratividade se refere ao Pé-de-Meia Licenciaturas, que consiste no fornecimento de uma bolsa de 1.050 reais para quem irá cursar licenciatura a partir de uma vaga pleiteada no Sisu, Prouni e Fies, e que tenha uma nota no ENEM superior a 650; a alocação se refere ao deslocamento de profissionais para áreas menos favorecidas educacionalmente. Os participantes desse programa receberão a Bolsa Mais Professores, que consiste em um benefício de 2.100 reais e no direito de realizar um curso de pós-graduação lato sensu durante o período da bolsa; a formação se refere a um portal que facilita o acesso a cursos de formação inicial, continuada e pós graduação; por fim, a valorização se refere a ações que irão proporcionar melhores condições de trabalho e benefícios aos professores.
Esclarecidos sinteticamente cada um dos eixos, é necessário nos aprofundarmos em alguns para podermos compreender com uma visão panorâmica a natureza do programa e, portanto, suas limitações. O Pé-de-Meia Licenciaturas e a Bolsa Mais Professores expressam um problema de maior amplitude no que se refere à abordagem para incentivar o mercado de trabalho em determinada área, que é a política de emprego pela via da oferta, a qual mantém vínculos estreitos com o neoliberalismo. Essa abordagem se caracteriza por focalizar o indivíduo e sua formação, de maneira que, através da qualificação profissional, se torne mais atrativo para o mercado de trabalho. Isso pode ser realizado por meio de programas educacionais e capacitação técnica, cursos de qualificação profissional, incentivos para a flexibilização dos trabalhadores dentro das condições dadas pelo mercado etc. O objetivo é ofertar mais mão de obra.
Essa abordagem, ainda que tenha seus pontos positivos, é limitada e estruturalmente reproduz os problemas do mercado de trabalho brasileiro. Rigorosamente, o que está havendo é um processo de ampliação da presença de profissionais da educação sem melhoras relevantes nas condições do mercado de trabalho dos mesmos. Isso resulta em uma massa de profissionais com pouca ou nenhuma garantia de estabilidade ao longo da carreira nas redes de ensino, sobretudo na rede pública. Dessa maneira, opta-se pelo aumento do contingente de mão de obra disponível sem que isso seja acompanhado por um processo de transformação adequado nas relações de trabalho.
O programa é um exemplo cabal do que é uma política educacional neoliberal. Ao contrário do que muitos pensam, o neoliberalismo não se opõe ao fornecimento de benefícios e assistencialismos, nem tampouco se refere a abolição completa de qualquer investimento estatal em áreas sociais, como educação. Na verdade, o neoliberalismo pós-consenso de Washington, que alguns denominam de neodesenvolvimentista e neokeynesiano (BURGINSKI, 2018), outros de neoliberalismo neopopulista (VIANA, 2015), amplia a intervenção estatal em termos de corrigir certos problemas do modelo tradicional, tendo em vista o tornar mais sustentável. Nesse sentido, algum nível de assistencialismo e investimento por parte do Estado torna-se fundamental para realizar determinados ajustes. No caso desse programa, o intuito principal é suprir a escassez de professores no sistema de ensino público, sobretudo em áreas mais pobres. Esses aspectos são melhores elucidados quando analisamos mais detidamente alguns do seus eixos.
O Pé-de-Meia Licenciaturas permite um saque imediato de apenas 700 reais, enquanto os 350 restantes serão direcionados para uma poupança que apenas poderá ser acessada caso o beneficiário ingresse na rede pública em até 5 anos após sua formação. Dessa maneira, esse incentivo financeiro é reduzido em 33% caso esse critério não seja atendido, de maneira que um professor poderá ter que rejeitar melhores condições de trabalho no setor privado para receber o acumulado na poupança, senão correrá riscos de perdê-la. Isso demonstra o caráter de urgência do programa em termos de contratar mais professores para a rede pública, reduzindo significativamente a bolsa para os que não tiverem ingressado nela, sendo que não há qualquer segurança de condições dignas para o exercício da profissão nas sucateadas escolas públicas.
No caso da alocação, essa abordagem pela oferta se torna ainda mais clara. O intuito é deslocar e redistribuir a mão de obra docente para áreas onde há menor oferta de trabalhadores da educação, áreas que podem coincidir com péssimas condições de trabalho e situação social degradante, como no caso de localidades pobres e afastadas. Dessa maneira, não há expansão do número de vaga de professores como, por exemplo, através da realização de novos concursos públicos, mas sim a realocação de trabalhadores para postos já existentes e que apresentam dificuldades para serem preenchidos. Nesse sentido, a bolsa de 2.100 e o direito da pós-graduação são maneiras de convencer os trabalhadores a piorarem suas condições gerais de trabalho.
Com isso, não se está afirmando que pessoas em áreas mais vulneráveis e precárias não devem ter direito a educação. Pelo contrário, pois a crítica está direcionada ao fato de que esse programa não está vinculado com investimentos substanciais na educação para melhorar as condições desse campo, com investimentos em infraestrutura básica, equipamentos, transporte, espaços físicos pedagógicos, entre outros diversos setores que poderiam fornecer efetivamente o direito à educação para pessoas de classes sociais inferiores. Inclusive, é importante enfatizar que além da limitação de 33% da bolsa pé-de-meia, a Bolsa Mais Professores tem validade de apenas dois anos, de forma que, após esse período, o professor não terá mais direito caso não passe por um novo processo seletivo. Isso demonstra o caráter limitado do assistencialismo neoliberal, tanto em termos de recursos quanto de duração.
Além disso, esse programa também tende a ampliar a mobilidade e rotatividade da mão de obra, visto que a Bolsa Mais Professores e o Pé-de-Meia Licenciaturas, por serem temporários, não oferecerão nenhuma garantia consistente de que os professores poderão manter as condições de existência profissional que possuíam quando recebiam os benefícios, os obrigando a disponibilizar suas posições para outros beneficiários e estes, por sua vez, também irão transferir seus privilégios para outros posteriormente. Assim, se estabelece um ciclo de reciclagem e rotatividade, o que converge com o princípio neoliberal de flexibilização do trabalho e dos trabalhadores, ao passo que não é proposta nenhuma solução para os problemas estruturais da categoria dos professores em termos de valorização profissional. Mesmo se considerarmos o eixo da valorização, os benefícios citados são secundários, como cartões de crédito sem anuidade, descontos em hotéis e outras prerrogativas.
Nesse sentido, esse programa tenta contrabalançar e mascarar a ausência de qualquer melhora real nas condições de trabalho, por meio do oferecimento dessas vantagens temporárias para os que aceitarem os termos propostos, algo que é muito atrativo tendo em vista a desvalorização crônica da profissão. Diante da austeridade do governo Lula, com o arcabouço fiscal e os constantes cortes de verbas associados ao cumprimento de suas metas, programas como esses são totalmente previsíveis, pois estão sintonizados com a sustentação do neoliberalismo. Afinal, programas com maior robustez e profundidade estão totalmente fora de vista, uma vez que exigiriam investimentos progressivos e generalizados na educação, que fossem capazes de aplicar uma política de valorização salarial consistente aos professores, ampliar significativamente a infraestrutura das escolas, expandir concursos públicos, aprimorar o plano de carreira do magistério etc.
Nesses termos, é fundamental que haja a superação do neoliberalismo e do modo de produção que o engendra. O governo Lula, com o seu caráter reformista e limitações programáticas inerentes, é incapaz de realizar esse processo, sendo um mantenedor da lógica neoliberal através de assistencialismos e benefícios temporários. Portanto, urge a necessidade de suplantar o capital para o desenvolvimento de uma educação efetivamente digna, humanista e que valoriza os profissionais do magistério.
Referências
BURGINSKI, Vanda Micheli. Neokeynesianismo e neodesenvolvimentismo: expressões ideológicas do Estado neoliberal. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 21, n. 2, p. 406-415, maio/ago. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rk/. Acesso em: 26 jan. 2025.
BRASIL. Ministério da Educação. Mais Professores. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/mais-professores. Acesso em: 26 jan. 2025.
ESTRATÉGIA CONCURSOS. Programa Mais Professores: como funciona, requisitos e dicas para participar. Disponível em: https://www.estrategiaconcursos.com.br/blog/programa-mais-professores/. Acesso em: 26 jan. 2025.
SANTOS, Emily. Como vai funcionar ‘Mais Professores para o Brasil’. G1, 14 jan. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/01/14/como-vai-funcionar-mais-professores-para-o-brasil.ghtml. Acesso em: 26 jan. 2025.
VIANA, Nildo. Representações e valores nas políticas de saúde no Brasil (1990-2012). (Tese de Pós-Doutorado). São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Enfermagem/USP, 2015.