Por Vini de Souza
Para Cissa
Quando ela já não se aguenta mais, quando já não pode mais dormir direito, quando lhe vertem os fluidos no meio da noite, ela sabe que é hora de começar os trabalhos. Que é desse estado de inquietação que emergem os seus preparados mais poderosos. Ela sabe que se fizer direito, que se o encanto o pegar como deve, que não haverá nada que ele lhe possa esconder. Ela terá acesso a tudo, ao detalhe mais íntimo por trás de cada cicatriz. Está especialmente interessada nas experiências que não deixam marcas visíveis. Quer a essência das riquezas mais sutis, as que passam batidas ao olhar alheio. Aquelas que nem ela mesma, do alto da sua experiência, saberá como desfrutar.
Ele não é menos interesseiro. Conhece feitiços. Já os provou algumas vezes e não é iletrado nas alquimias. Mas não está agora interessado em prepará-los. Sabe que não há feitora mais cuidadosa do que ela. Mostra-lhe: “veja, aquela é a flor que perfuma o mel da Uruçu que você tanto aprecia”. Dá-lhe sementes. Por que dar-se o trabalho se sabe que ela é capaz de plantar, colher e extrair os óleos muito melhor do que ele? Sim, o movimento é arriscado. Sabe que há toda a sorte de encantadoras e do que são capazes, mas entende que quem não corre riscos não tem a chance de viver as maravilhas que só a sorte pode ofertar. E o mais importante, é claro: as canções. Não há quem as faça mais belas do que os trovadores enfeitiçados.
Se despe da sua última veste, prepara seu banho de ervas e procura relaxar enquanto se concentra para dar início aos trabalhos. Desnuda, sobe no banquinho e se estica toda pra buscar naquele frasco lá do fundo aquela essência que nunca falhou. Soma a ela aquele tempero. Conhece bem o seu repertório, já provou inúmeras combinações. Quantos já terá encantado? Na água quente já investiu dos seus melhores extratos. Se entorpece com a volatilidade das suas próprias escolhas. Seu coração bate forte. Sabe que esse não tem escapatória, que poderia fazer dele o que bem entendesse. Maldades inclusive. Mas já não é mais mocinha. Não precisa mais provar nada para si nem pra ninguém.
O cantador sabe que não precisa investir energia em materiais, que ela já tem tudo o que precisa. Se antecipa ao encontro. Demarca bem a trilha. Limpa a clareira. Recolhe lenha seca e monta a fogueira para o ritual. O sol já está por se recolher, mas a floresta segue acesa pela luz da lua cheia. Todos os bichos estão ouriçados, se exibindo como podem. Compreende também ser um deles. Estende a esteira de palha próximo ao fogo. Se senta. Tira a viola do saco. Estica a corda Ré mais um pouco, e a afina com as melodias da noite. Fecha os olhos. Respira profundamente, silencia. Concentra todas as suas intenções pra oferecer para a feiticeira o seu bem mais precioso, aquilo que não se compra em armazém algum e que ele sabe ser o que ela verdadeiramente deseja: a sua presença.
As palpitações prenunciam a proximidade. Ele escuta o chiar das folhas e o romper dos galhos no chão. Ela está chegando. O cansaço das noites mal dormidas de espera desaparece. É como se o tempo nunca tivesse passado para eles. Estavam nervosos. Sentiam a ansiedade da primeira vez. As primeiras notas da viola fazem silenciar o canto dos bichos. Era como se toda a floresta se quisesse deixar levar pela melodia do cantador. Quando ele entoa seus primeiros versos, a bicharada responde em coro. A floresta se reincendeia em sons.
O vestido solto começa a se arejar. Rodopia em torno do fogo, que cresce no ritmo da dança. O perfume da fêmea em chamas toma conta da floresta. Ela verte seus encantamentos sobre o agora torpe amante. A essa altura eles já não sabem mais quem são. Ele perdido nela, que não sabe mais quem é.
Ele a domina o corpo. Ela o domina a alma. Ora é o contrário. A intensidade é quase insuportável. Ele quer morrer. Ela o quer vivo. Percebe que é hora de se recompor, ou será tarde demais para contê-lo. Toma as rédeas da coisa. Impõe o ritmo ao macho sedento que agora lhe pertence. Comanda-o com amor e firmeza e o faz conter seu furor até a sua ordem final. Assim se sucede.
É quase manhã. Ainda há brasas na lenha. O observa dormir. Lambe os dedos com o caldo dos dois que recolhe de si. Pensa alto: “agora sim, está completa”. Ri consigo baixinho, plena. Suspira, fecha os olhos, abraça o seu homem e se entrega sorridente ao sono das deusas.