Por Henrique Garcia Pereira
0. A Kakânia Ocidental
Na minha leitura do HOMEM SEM QUALIDADES do Musil (Fig. 0.1), apercebi-me como o meu alter-ego (e quase-homónimo) Ulrich podia decifrar – sem grande empenho – o quadro geral das políticas do meu país, que partilha aliás algumas características insólitas com a sua Kakânia, como se tivesse ocorrido alguma translação no sentido Oeste-Sudoeste da sua Áustria natal (Fig. 0.2).


1. O intransigente e incorruptível Almirante (e a contestação do seu antecessor)
No cenário político da Kakânia ocidental, emergiu – nos anos 20 do século XXI – a figura ‘incontornável’ de um presuntivo herdeiro à coroa, oriundo de um prestigiado ramo das forças armadas que sempre foi objeto do maior ‘orgulho nacional’. E logo foi visto como a reencarnação contemporânea do Príncipe Perfeito, não só pela sua ‘visão estratégica’, mas também pela fereza contra os seus inimigos e incomplacência em face de qualquer insubordinação (Fig. 1.1).

Em finais de fevereiro de 2025, o almirante ‘saiu a terreiro’ numa área que não lhe era muito familiar: publicou no Expresso uma súmula do seu ‘pensamento político’, em que transparecia claramente a sua predileção pela ‘mão da espada’ relativamente à da ‘pena’, e o seu apego desmedido à hierarquia marcial.
E logo o seu texto foi desancado sem mercê pelos comentadores de serviço, a começar pelo bobo da corte que escreve na última página do ‘prestigiado semanário’.
Na verdade, todas as críticas punham a nu o desconchavo completo daquele artigo, que revelava uma ideologia a-ideológica feita de trivialidades musculadas cujo ‘conteúdo’ não tinha conteúdo nenhum.
Mas a questão que quero aqui levantar – a propósito do texto produzido pelo pretendente ao trono – centra-se noutro ponto: ao contrário de alguns exímios esgrimistas da lusofonia africana pós-colonial que fazem das palavras o seu ‘campo de batalha’, o almirante não sabe escrever em português, cometendo – por exemplo – algumas atléticas calinadas no emprego da vírgula.
De facto, pela sua condição de quase-ágrafo militante, parece que o néscio almirante opta em primeira instância pela comunicação através da linguagem das bandeiras náuticas ou, mais modernamente, por um qualquer código simplificado, caracterizado pelo uso de vocabulário e estruturas gramaticais fáceis de entender (Fig. 1.2).

Na verdade, há uma disparidade abismal entre a indigência plumitiva deste aspirante ao trono da Kakânia e a destreza neste domínio de Manuel Teixeira Gomes, Mário Soares ou Jorge Sampaio, homens cultos que ocuparam o lugar da presidência no século XX. Seja qual for o juízo relativamente ao pensamento destes presidentes, o que não há dúvida é que a limpidez dos seus textos permite facilmente avaliar a sua importância e grau de veracidade, fomentando intensamente o espírito crítico do leitor.
Na história da governação do fascismo português, a configuração de outro marinheiro da estirpe do agora pretendente ao sólio da Kakânia pode ser encontrada – sem muito esgravatar – através da análise do comportamento do trombudo almirante Américo Tomás em atos públicos, com os seus discursos grotescos de uma tautologia involuntária, objeto de escárnio pertinaz por parte do povo.
Num exercício exemplar de ridicularização contestatária da figura do Tomás, foram largados – na baixa de Lisboa, em 25 de julho de 1972 – dois porcos vivos ‘fardados’ de almirante. Ao mesmo tempo, eram lançados – através do rebentamento de alguns petardos – milhares de panfletos com o desenho da Fig. 1.3, onde se lia: “Em Portugal, as eleições são uma burla e nunca através delas se resolverão os problemas do povo português. Para além disso, a «eleição» de hoje é uma fantochada maior e uma porcaria”.
Esta ação foi levada a cabo pelas Brigadas Revolucionárias, no sentido de satirizar a figura do Almirante, em alternativa original e criativa às ortodoxas e enfadonhas ‘manifestações de massas’, convocadas em geral pelas organizações antifascistas clássicas. (Fig. 1.3).

Na genealogia desta ação das BR, encontra-se a sátira impiedosa e a maledicência demolidora contra os poderosos, com origem nas ‘cantigas de escárnio e maldizer’ dos medievos trovadores galaico-portugueses. Este tipo de contestação do status quo atravessou os séculos até vir aterrar nos Cafés do Rossio dos anos 50, onde eu costumava acompanhar o meu Avô nas tertúlias do ‘reviralho’ (Fig. 1.4).

Nos Cafés do Rossio, formavam-se ao fim da tarde verdadeiras assembleias informais em que os convivas-intervenientes circulavam de mesa em mesa, comentando sigilosamente os factos políticos do momento. Da leitura engenhosa dos jornais censurados, os cabecilhas deste tráfego extraíam – ‘nas entrelinhas’ – pistas veladas para uma crítica cerrada ao governo, transmitida boca-a-boca por todos. Para mim, o clou destas tertúlias era uma atividade peculiar de certos especialistas que consistia em ‘contar anedotas’ ridicularizando os próceres do regime.
Tal atividade teve um papel importante na minha ‘formação política’ enquanto criança, até pela contextualização feita caso-a-caso pelo meu Avô.
Mas numa análise a posteriori, posso avançar a hipótese de que a propagação de anedotas (em particular, as do Salazar) pela pequena burguesia urbana foi um fator não-despiciendo para uma certa aceitação do 25 d’Abril por parte de camadas significativas daquele ‘povo’ que era suposto apoiar o regime, e que acabou por glorificar a ‘revolução’.
Com base numa quase-investigação sobre o ‘fenómeno’ do 25 d’Abril no que diz respeito à inter-relação entre as forças em presença, posso sugerir a ideia de que o golpe corporativo só teve sucesso em razão de uma certa ‘neutralidade’ da pequena burguesia urbana, ‘contaminada’ pela imagem negativa do regime que a ‘oposição’ fazia passar (incidindo mesmo em considerandos ad hominem).
O facto é que – no ‘caldo de cultura’ resultante de uma correlação de forças contrária ao status quo – o golpe militar teve, logo a seguir a abril, uma veemente adesão popular.
Na verdade, ao arrepio das ortodoxias sisudas manipuladoras que faziam tudo para conter o movimento em categorias pré-estabelecidas, a aprovação entusiástica do 25 d’Abril revestiu-se por vezes de algumas formas mais festivas que se transformaram depois numa efémera ‘revolução social’ (Fig. 1.5).

2. O venal e sonso Chico-esperto (e seus cúmplices)
O poder executivo na Kakânia Ocidental está nas mãos da direita desde abril de 2024. Como chefe do governo, surge a figura ‘incontornável’ de um chico-esperto (Fig. 2.1) de origens nortenhas, ‘empresário’ impulsionador de múltiplas atividades, desde o jogo aos eletrodomésticos, do imobiliário à gasolina.

No domínio da ‘consultadoria’, uma das empresas do chico-esperto declarou – numa ‘declaração’ tirada a ferros para os anos 2021/22 – uma faturação de 896 mil euros com um lucro de 366 mil euros, o que conduz a uma obscena taxa de lucro de 70%, obtida para os moderados custos de 530 mil euros (não há dúvida de que esta ordem de grandeza do lucro faz jus à ideia de capitalismo de casino).
O ‘empreendedorismo’ do nosso chico-esperto no foro dos jogos de azar só tem paralelo no matemático Giacomo Casanova (1725-98), que inventou a lotaria ao serviço do Rei de França, e no antecessor do atual PM, que adotou a ‘raspadinha’ como fonte de financiamento para o Estado (Fig. 2.2).

O facto é que as negociatas do chico-esperto provocaram uma significativa ampliação da ‘pegada de carbono’ deixada no país por uma economia cada vez mais ‘extractivista’. De facto, os Casinos usam intensivamente o plástico como matéria prima para as fichas (dificilmente recicláveis), e o fabrico dos produtos anunciados pela Radio Popular é sempre feito através de processos com grande dissipação de energia (sem falar das gasolineiras e da construção civil).
Esta vertente do nosso chico-esperto não podia passar despercebida aos ‘ativistas climáticos’ da Kakânia Ocidental, que contra ele apontaram as suas ‘bombas de tinta’, colorindo a sua face manhosa (Fig. 2.3).

Em todas as ocasiões, o chefe do executivo teve sempre o apoio diligente do seu encarregado da ‘fazenda’, que – para clarificar alguma ‘aparente opacidade’ (denunciada urbi et orbi) – o secundava incansavelmente no ajuste das leis às suas traficâncias. No entanto, surgiu uma forte corrente de opinião com origem no Brasil, que aconselhava o chico-esperto a ver-se livre do seu delfim com base em critérios estéticos (Fig. 2.4 e 2.5). Na verdade, este apelo pode também ser fundamentado na reversão do aforismo pré-ambientalista de Nietzsche: “Matar uma borboleta é mais condenável do que matar uma barata”.


Outro delfim do nosso primeiro – esse para o lado da ‘borboleta’ (e por isso encarregado da ‘comunicação polinizante’) – encontra-se na figura ‘incontornável’ de António Leitão Amaro, que tanto gosta de segredinhos como de interpelar as massas (Fig. 2.6).

Apesar da sua argúcia, o ministro-borboleta declara-se PERPLEXO perante uma iniciativa parlamentar de investigação às negociatas do chico-esperto, o que revela a mais profunda ignorância das obras base sobre o assunto (Fig. 2.7).

A falta de conhecimento da cultura específica do ‘país vizinho’ por parte do ministro-borboleta pode ser imputada ao facto de ele ‘ignorar olimpicamente’ o fulgor da herencia cultural de nuestros hermanos, chegando ao ponto de querer ‘iluminar’ as suas gentes por deglutinação de parcelas do seu território, na sequela da ambição do seu colega da Defesa (Fig. 2.8).

E o cúmulo é que o Ministro da Defesa aproveitou sournoisement o armamento fornecido a Portugal por um acordo com Macron para ameaçar a fronteira espanhola, num belicismo soez que põe em risco a concórdia europeia (Fig. 2.9).

Em conflito patente (mas velado) com a atitude descabida do ministro da Defesa, surge uma formulação mais atinada sobre as relações com Espanha pleiteada no campo geoestratégico pelo seu colega dos Negócios Estrangeiros (Fig. 2.10).

A concertação ibérica segundo uma novel modalidade é, na verdade, parte constitutiva de um desígnio mais geral que compreende todo o ‘Espaço Europeu’ (Fig. 2.11). Num momento em que as ameaças de Oeste e de Leste se avolumam, a indústria francesa de armamento apela para um plano de defesa comum, com um ‘esforço’ repartido por todos.

Um europeísta convicto é o nosso PR, que mantém aliás uma relação fria com o PM, própria de um tio de Cascais em face de um burgesso rural dos arredores do Porto que vê a ideia de uma Europa transnacional com alguma desconfiança.
O infiltrado do Marcelo nos círculos do governo é o seu Chefe da Casa Civil, o sibilino e astucioso public servant de ar zombeteiro encarregado de ridicularizar engenhosamente a imagem do chico-esperto enquanto beato militante contra a ‘escola liberal’ (Fig. 2.12).

Num aspeto surgia a lume uma aparente cumplicidade entre o Primeiro Ministro e o Presidente da República: a comum submissão institucional às autoridades eclesiásticas, expressa em missas dominicais ‘para inglês ver’, em peregrinações do culto mariano e em devota obediência papal (Fig. 2.13).

Apesar dos dilacerantes avisos da BANCA sobre os ‘elevados custos de eleições antecipadas’ (obliterando os gastos sumptuosos do governo cuja ‘estabilidade’ quer preservar), o parlamento – que estava prestes a reabrir o relatório sobre o ‘caso das gémeas’- foi dissolvido pelo papá Marcelo e o ‘poder caiu na rua‘. E logo a rua albergou uma miríade de cartazes e panfletos satíricos, espalhados em Lisboa por ativistas sem filiação política, mas prenhes de esperança numa mudança radical de contornos pacíficos (Figs. 2.14 e 2.15).

