Por Jan Cenek

 

Era uma quarta-feira como todas as outras. Despertei com os primeiros raios do sol. Abri a janela do quarto. A luz da manhã dominou o ambiente. Coloquei meus óculos de leitura. Sim, “minhas retinas tão fatigadas” [1] denunciam a idade. Apanhei o livro que lia há uns dois dias, Um solitário à espreita, do Milton Hatoum [2]. Deitei de costas na cama. Apoiei a almofada de leitura sobre peito. Desfrutei as crônicas do romancista manauara. Nietzsche [3] lamentava o desperdício das primeiras horas da manhã – “quando o espírito reflui em leveza, ao despertar das energias” – com leituras: “Para mim, isto é um vício!” – martelou o filósofo. Alguém poderia responder: mas que vício reconfortante! Esquecer alta dos preços, as mudanças climáticas, o amor ausente, a iminência da terceira guerra mundial e viajar com as palavras. Lutar com as palavras, de manhã, pode ser uma luta vã, como quer o poeta [4]. Mas viajar com elas é uma alegria.

Meu reencontro com Milton Hatoum aconteceu quando passei alguns dias em Manaus. Queria ler poetas e romancistas manauaras antes de chegar na cidade, o primeiro que me ocorreu foi Hatoum. Já havia lido e gostado de Dois irmãos [5], mas não busquei outros livros do romancista manauara. Os caminhos da leitura são intrincados. Visitar Manaus foi a deixa para ler Cinzas do norte [6], Relato de um certo Oriente [7], A cidade ilhada [8], Órfãos do Eldorado [9]. Recomendo todos. Para quem ainda não conhece Hatoum, talvez iniciar pelos dois últimos. Um livro de contos e uma novela, respectivamente. Textos curtos que concentram temas e obsessões do autor. Em um podcast que ouvi, mas não consegui localizar para referenciar, Hatoum comentou que o Brasil não olha para Amazônia, assim como a Amazônia não olha para o Brasil. Certeiro. Dá para usar a sacada para reforçar a recomendação dos livros dele. Para um olhar fino sobre a Amazônia, leia Hatoum. Para um olhar fino sobre o Brasil e o mundo a partir da Amazônia, leia Hatoum. O romancista saiu de Manaus, mas a cidade segue com ele. Ela está em todos os textos. Reaparece onde menos se espera.

Minha “imersão amazônica” não se limitou a Milton Hatoum, nem ao período anterior, nem durante a estadia em Manaus. Na cidade comprei livros que li depois. Registro alguns poetas e romancistas manauaras, apenas os que me surpreenderam e encantaram, especialmente considerando que o Brasil não olha para a Amazônia, nem o contrário: Anibal Beça [10], Astrid Cabral [11], Luiz Bacellar [12][13][14], Márcio Souza [15][16][17], Thiago de Mello [18][19][20]. Vale pontuar que o poeta Thiago de Mello não nasceu em Manaus, mas tinha o coração manauara; escreveu, por exemplo, um livro intitulado Manaus, amor e memória.

Se pude ler poetas e romancistas de Manaus, foi porque a cidade conta com uma editora, Valler, que mantém uma loja no Largo de São Sebastião e publica autores locais. Mesmo poetas e romancistas reconhecidos nacionalmente tiveram obras editadas, ou reeditadas, pela Valler. É o caso de Márcio Souza e Thiago de Mello. Foi na simpática livraria da editora Valler, no Largo de São Sebastião, que encontrei e comprei Um solitário à espreita. Mas não li de imediato. Há livros para guardar como “bola de segurança”, para quando precisamos de leituras tônicas e revigorantes. Foi o que fiz com as crônicas de Milton Hatoum. Voltei a elas quando já estava longe de Manaus e minha “imersão amazônica” começava a arrefecer. Hatoum discorre com leveza sobre pequenos acontecimentos, gracejos, memórias, perdas. Com Manaus ressurgindo quando menos se espera. Que delícia. Tudo vira – ou pode virar – crônica nas mãos do escritor, especialmente se ele tem prazo para entregar textos. Vale um gato deixado em Manaus, um café com o taxista em São Paulo, um cartão de visita, o vermelho vivo dos jambos, um rio sem margens, um amigo excêntrico, uma dançarina octogenária, “uma pintura inacabada”, “uma vingança inconsciente” em Toronto, uma “tarde delirante no Pacaembu”. As crônicas presentes em Um solitário à espreita foram todas publicadas na mídia e, posteriormente, reunidas em livro.

A crônica é uma espécie de prima do haikai. A diferença é que quem escreve haikais registra instantes, fotografa a insustentável leveza do que não vai se repetir, especialmente na natureza; já os bons cronistas trabalham com acontecimentos cotidianos, sempre com inteligência e perspicácia, destacando o inusitado. O haikai direciona a imaginação do leitor. O poeta sugere. O leitor imagina e recria o instante a partir das poucas palavras do poema. Na crônica o leitor navega com a imaginação do autor, que recria acontecimentos – inclusive os que se repetem – com poucas palavras. O leitor se diverte com a imaginação do cronista, com o inusitado revelado. A presença do autor é mais facilmente notada na crônica. Haikai: poética da sugestão. Crônica: alegria da revelação.

Voltemos àquela quarta-feira do primeiro parágrafo. Fiz uma pausa na leitura das crônicas de Milton Hatoum para tomar café. Depois atravessei a casa, abri a porta e caminhei no terraço. Foi quando senti uma dor forte no pé esquerdo. Com a cabeça nas crônicas de Um solitário à espreita, não enxerguei e pisei numa abelha. Ela morreu pouco tempo depois. Retirei o ferrão do pé com uma pinça. Mas a dor ficou. Apesar do acidente, da morte da abelha e do inchaço: tentei ver o lado bom do ocorrido. O acontecimento inusitado podia servir para uma crônica. Foram três dias com pé inchado, manquitolando e matutando na crônica que não consegui escrever. Elaborei títulos – O solitário e a abelha, Dois solitários e um ferrão, Começando o dia com o pé esquerdo –, mas não consegui desenvolver a narrativa. Naveguei na internet. Pesquisei sobre crônicas, abelhas, ferrões e pés humanos. Sem sucesso. Cheguei a desconfiar que a abelha que me picou fosse nativa da Amazônia. Ela poderia ter surgido de onde menos se esperava, mais ou menos como Manaus aparece nos textos do Milton Hatoum. Mas não. Ao que tudo indica fui picado por uma Apis mellifera, que é uma abelha de origem europeia. Minhas pesquisas sobre o pé humano também foram pouco frutíferas. Se as representações que encontrei na internet estiverem corretas, a picada atingiu uma região intermediária do meu pé esquerdo, entre os dedos do amor e da criatividade, que são duas coisas em falta para mim. E o que isso significa? Absolutamente nada! A morte da abelha e meu pé inchado por três dias serviram apenas para fazer este breve elogio a Milton Hatoum e aos poetas e romancistas manauaras. Daria para fazer o mesmo sem ter pisado na abelha.

 

Notas:

[1] Carlos Drummond de Andrade. No meio do caminho. In: Carlos Drummond de Andrade. Nova Reunião: 23 livros de poesia – volume 1. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009. p. 22.

[2] Milton Hatoum. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[3] Friedrich Nietzsche. Ecce homo. [S.l.] Edições de ouro. Coleção Universidade. [s.d]. p. 71.

[4] Carlos Drummond de Andrade, op. cit., p. 121.

[5] Milton Hatoum. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[6] Milton Hatoum. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

[7] Milton Hatoum. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[8] Milton Hatoum. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

[9] Milton Hatoum. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[10] Anibal Beça. Folhas da Selva. Manaus: Editora Valer, 2006.

[11] Astrid Cabral. Íntima fuligem: caverna e clareira. Manaus: Editora Valler, 2017.

[12] Luiz Bacellar. Frauta de barro. 9º ed. Manaus: Editora Valler, 2011.

[13] Luiz Bacellar. Sol de feira. 7º ed. Manaus: Editora Valler, 2022.

[14] Luiz Bacellar. Satori. 2º ed. Manaus: Editora Valler, 2002.

[15] Márcio Souza. A caligrafia de Deus. São Paulo: Editora Atma, 2021.

[16] Márcio Souza. Galvez imperador do Acre. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.

[17] Márcio Souza. A expressão amazonense – do colonialismo ao neocolonialismo. 3º ed. Manaus: Editora Valer, 2010.

[18] Thiago de Mello. Silêncio e palavra. 4º ed. Manaus: Editora Valler, 2001.

[19] Thiago de Mello. Faz escuro mas eu canto. 24º ed. São Paulo: Global, 2017.

[20] Thiago de Mello. Manaus, amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984.

 

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