Por Mateus Oliveira dos Santos [*] e Livia De Tommasi [**]
No último dia 07 de abril, o presidente Lula esteve na cidade de Cajamar, no estado de São Paulo, acompanhado de ministros, deputados federais e estaduais, visitando um centro logístico da empresa argentina Mercado Livre e participando do anúncio feito pelo Líder no Brasil, Fernando Yunes, daquilo que será não somente “o maior investimento” da empresa no país mas, também, o maior de toda a história da companhia [1]. O evento foi transmitido ao vivo pelos canais institucionais do governo de dentro de um dos imensos armazéns que servem de centro de distribuição para o maior portal de comércio eletrônico da América Latina. Representantes do Estado e do Mercado entraram juntos em cena, tendo o galpão logístico como pano de fundo. Nesse artigo, iremos explorar os possíveis significados desse acontecimento, amplamente divulgado pela mídia nacional, tanto do ponto de vista do investimento do governo na comunicação de seus bons resultados, como no que diz respeito à concepção do lugar e das condições do trabalho que a cena revela.
O Mercado sobe no palanque e anuncia crescimento
A importância do Brasil para as operações da Mercado Livre (“Meli”, para os mais íntimos) pode ser justificada pela participação significativa do país nas receitas oficiais da empresa, totalizando 54,9% no último ano, segundo os números divulgados por Fernando Yunes no anúncio. Yunes abre o evento com uma fala de quase oito minutos em um modelo de palestra com slides, destacando os gigantescos números que envolvem as operações da empresa por aqui. O primeiro slide, que apresenta a assombrosa participação do Brasil em mais da metade das receitas totais da Mercado Livre, contém um outro número, que não foi vocalizado pelo empresário: o da parcela de contratação de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros no total das admissões realizadas pela Mercado Livre nos 18 países onde atua – trata-se de 43,5% da força de trabalho diretamente contratada pelo “ecossistema Meli”. Assim, há , aqui, um elemento importante a ser ressaltado. O território brasileiro fornece para a Mercado Livre mais da metade de toda a mercadoria-dinheiro que fatura, com pouco menos da metade de trabalhadoras e trabalhadores que contrata.
Após mostrar a importância do Brasil para a empresa, Fernando Yunes destaca a importância da empresa para o país, ou, em suas palavras, o “impacto social” que ela causa, distinguindo tal influência em três âmbitos. Os dois primeiros refletem os critérios de divisão próprio do ecossistema empresarial, distinguindo-os entre os impactos causados pelo comércio eletrônico via Mercado Livre e o impacto financeiro causado pelo Mercado Pago, o banco eletrônico da “Meli”. Resumimos o argumento de Yunes: 1) graças à Mercado Livre, meio milhão de brasileiros (os 550 mil vendedores em atividade no “shopping eletrônico”) obtêm mais da metade de sua renda; 2) pela Mercado Pago, 22 milhões de pessoas e empresas adquiriram crédito, sendo que 50% dentre todas as pequenas e médias empresas brasileiras obtiveram seu primeiro crédito através do “banco eletrônico” da “Meli”. O terceiro impacto social diz respeito a números menos óbvios, mas que, argumentamos, são essenciais para compreender a participação do Presidente da República no evento da empresa.
Este terceiro impacto é anunciado, digamos, de trás para frente, começando pelo anúncio do maior investimento que ainda será feito pela Mercado Livre, como já indicamos acima. As chamadas divulgadas pela mídia a respeito da participação do Presidente Lula também deixam claro: é Lula quem participa de um evento da Mercado Livre, um anúncio da empresa, e não o contrário. Adiantamos a conclusão do evento feita pelo Presidente da República: não há qualquer anúncio novo sinalizado por parte do governo. Pelo contrário, o evento tem como foco a participação de Lula no anúncio da empresa argentina relativo ao investimento no valor de 34 bilhões de reais no Brasil em 2025. Yunes justifica a magnitude do anúncio se voltando para o passado recente. Em 2018, o aporte de valores no Brasil, quando a Mercado Livre tinha por volta de 1800 funcionários contratados, foi de R$1 bilhão. Em 2024, agora com mais de 30 mil funcionários, a empresa investiu 23 bilhões de reais. Em 2025, a previsão de aporte de R$34 bilhões é acompanhada da previsão de 50 mil pessoas contratadas diretamente pela empresa no país. Por fim, vejamos a conclusão dos benefícios que o Estado brasileiro obteve com movimentações tão volumosas: entre as contribuições fiscais em nível municipal, estadual e federal, a Mercado Livre teria pago em impostos cerca de R$369 milhões no ano de 2018. Em 2024, esse número teria saltado para R$5 bilhões. Yunes encerra com uma mensagem autodeclarada otimista: “a gente vai seguir investindo no Brasil, apostando, contratando, gerando empregos e construindo cada vez um futuro melhor”.
Além do apanhado de investimentos passados e futuros descritos pelo Líder da empresa, nada ouvimos sobre as características do trabalho exercido pelas atuais 30 e tantas mil pessoas contratadas diretamente pelo “ecossistema Meli” no Brasil, além das 14 mil que se somarão a elas neste ano. Nada ouvimos, também, sobre os milhares (sim, milhares) de processos trabalhistas em andamento referentes ao mesmo “ecossistema” empresarial que demandam a atenção dos tribunais regionais brasileiros [2].
Yunes conclui sua abertura e volta para sua cadeira no palco montado dentro do galpão BRSP-02, localizado em um dos vários condomínios logísticos de Cajamar. Cede a palavra a uma “colaboradora”, ou seja, uma trabalhadora da Mercado Livre de um centro de distribuição na Bahia, uma das duas únicas mulheres que compartilham as cadeiras do palanque com mais de quinze homens. Ela agradece a “oportunidade” que a empresa lhe proporcionou para “crescer”, aprendendo novas atividades de logística que lhe permitiram chegar à liderança de um “time” de envios. Ela se apresenta como “apenas uma representante” das trabalhadoras e trabalhadores da empresa. De fato, os representantes sindicais não estavam no palco nesse dia. A “colaboradora” caracteriza a relação que ela tem com a empresa como de orgulho, já que a “Mercado Livre desenvolve, acredita nos seus potenciais”. Com seus colegas de trabalho, o dia a dia se dá num ambiente em que todo mundo “joga junto” e “se desenvolve junto com o Meli, e o Meli não para de crescer”. Conclusão dessa colaboração: “cada pacote importa, cada colaborador importa (…) e a gente tem feito isso sempre vibrando nosso DNA, os nossos princípios culturais. A gente dá o máximo e se diverte”. Nas vagas de emprego disponíveis nas plataformas virtuais, a Mercado Livre se dirige às trabalhadoras e aos trabalhadores com termos semelhantes, como “pessoas que vibram energia empreendedora”, “nunca desistem”, “encaram mudanças como oportunidades”, “promovem bom clima e diversão”. Sabemos, no entanto, de pessoas que afirmam dar o máximo de si na empresa, mas não com “diversão” e “crescimento”, e sim com “lágrima e ódio” derramado nos pacotes, palavras essas que estão ausentes no léxico da “cultura Meli” [3].
Três Ministros defendem o Governo e elogiam o Mercado
Em seguida, falam três ministros do governo: Márcio França, Luiz Marinho e Fernando Haddad. Representam, respectivamente, o Ministério do Empreendedorismo e das Pequenas Empresas, o Ministério do Trabalho e o Ministério da Fazenda. Além dos agradecimentos formais, não mencionam qualquer programa de governo diretamente ligado ao Mercado Livre ou a seus trabalhadores. Ressaltam políticas públicas anteriormente anunciadas pelo governo, como o crédito consignado para celetistas e o aumento da faixa de isenção no imposto de renda. Em um momento de empolgação, Luiz Marinho conclama: “deixa o homem [Lula] trabalhar, deixa o homem liderar o Brasil!”. O Ministro do Trabalho não menciona as condições de trabalho na Mercado Livre, mostrando estar mais preocupado com as condições de trabalho do Presidente do que com as dezenas de milhares de pessoas mencionadas por Yunes minutos antes, ou com aquelas milhares que vão à Justiça por seus direitos violados.
Destacamos as conclusões dos senhores Ministros. Para o Ministro do Empreendedorismo, “quando o Mercado Livre melhora, os empreendedores que dependem do acerto do Mercado Livre também melhoram”, pois dentre as 19 milhões de empresas pequenas no Brasil (99% por cento dos CNPJs, responsáveis por 70% dos empregos), meio milhão dependem do market place da Mercado Livre ou do acesso ao crédito da Mercado Pago. França resume: “essa é a parceria Brasil e Argentina que deu certo”. O Ministro do Trabalho, cujas falas de defesa da política econômica do governo mencionamos acima, destaca que as trabalhadoras e trabalhadores que encontraram naquele dia agradeceram ao Presidente e ao Ministro da Fazenda por políticas públicas das quais se beneficiaram, como o PROUNI, o FIES e o SUS. Sem fazer qualquer menção à empresa argentina, conclui que “vamos juntos continuar gerando empregos e oportunidades e mais riqueza para o país”. Por fim, o Ministro da Fazenda, dirigindo-se diretamente às trabalhadoras e aos trabalhadores, dá dicas sobre como conseguir crédito bancário mais barato fazendo “bom uso” das políticas econômicas e explicando o que significa a mudança na faixa de isenção no Imposto de Renda. Além disso, menciona o programa e-Social que facilita o acesso ao crédito, pede para que pressionem os parlamentares a votarem na taxação das grandes fortunas e elogia as pessoas que conheceu trabalhando na Mercado Livre.
Sobre este último ponto, citamos o Ministro Fernando Haddad: “é muito impressionante o trabalho que vocês fazem aqui, enche os olhos o trabalho que vocês fazem aqui, a diligência, a dedicação, a precisão, é uma coisa muito legal de ver”. A impressão do Ministro está próxima daquela relatada a ele por empresários de outro setor em Montes Claros, quando foram questionados sobre os motivos que os levaram a trazer suas atividades para o Brasil. Para os diretores estrangeiros questionados pelo Ministro, o que os levou a investir no Brasil foi “o trabalhador e a trabalhadora brasileira, eles é que fazem a diferença”. A menção de Yunes à quantidade de lucro gerada pelo trabalhador brasileiro no total dos rendimentos da Mercado Livre mostrou que esse elemento parece de fato estar entre os mais importantes.
O Presidente e “a construção de um sonho”
Após os ministros, o presidente assume o púlpito. Abre a pasta com o discurso escrito, olha para ela, fecha-a e anuncia que preparou uma fala, mas que não a seguirá. As distintas falas, do empresário e da trabalhadora por um lado e, do outro, dos Ministros do governo, ganham liga na longa oração de 17 minutos do Presidente da República. Afirma que qualquer outro ministro poderia ter sido chamado para acompanhá-lo ali, ao invés dos ministros do Empreendedorismo, Trabalho e Fazenda. Poderiam mesmo ser outros os Ministros presentes? Uma análise mais detalhada do discurso presidencial mostra, ao invés, a conveniência dos atores políticos que estão (e dos que não estão) participando do evento. Destacamos dois eixos desse discurso: a política econômica do governo e a cultura do trabalho no Brasil.
- Primeiro destaque: a política econômica do consumo e da oportunidade.
Retomando a menção feita por Haddad anteriormente ao crédito consignado e às facilitações no pagamento dos juros graças ao programa e-Social, o presidente afirma que seu governo fez o Brasil crescer mais do que os “especialistas” e políticos afirmaram e continuam afirmando, e que o microcrédito chega nas mãos de milhares e milhares de pessoas: “Todo país que tem muito dinheiro na mão de poucos é pobre, mas todo país que tem pouco dinheiro na mão de muitos é rico (…). E por que a gente está fazendo isso? Porque a gente quer que o dinheiro circule. Na hora que todo mundo tem um pouco de dinheiro, as pessoas vão ao supermercado, as pessoas vão numa loja, as pessoas vão num shopping, as pessoas vão no Mercado Livre fazer compras. Na hora que o comércio começa a funcionar, ele gera emprego.”
No discurso presidencial, o indicador de um país que faz sua economia crescer e, consequentemente, produz o bem estar da população é o consumo de mercadorias e serviços via acesso ao crédito (além de melhores salários, mas estes não são o foco, como veremos no segundo destaque). A equação é clássica e se retroalimenta: mais dinheiro circulando gera mais consumo, alavancando a produção e provocando mais criação de empregos, o que resulta em mais dinheiro nas mãos do povo. Essa opção pela “inclusão via consumo” já foi amplamente comentada na ocasião dos primeiros governos da coalizão liderada pelo PT. Agregamos que o tipo de consumo realizado em lojas, shoppings físicos e market places (“shoppings virtuais” como a Mercado Livre e a Amazon) tem consequências diretas para o planeta[4], que foram bem retratadas no documentário ”A conspiração consumista“ realizado pela diretora Nic Stacey para a Netflix. Os condomínios e galpões logísticos que movimentam o comércio virtual de mercadorias têm sido apontados por estudos como os principais causadores da queda da qualidade do ar nas cidades onde são instalados. A região de Cajamar é um evidente exemplo desse impacto, seus condomínios logísticos sendo construídos às custas de nascentes de rio soterradas, deslocamento de ocupantes rurais de terra e de trabalhadoras e trabalhadores sem teto [5]. As consequências objetivas desse modo de vida já são conhecidas.
Por outro lado, o endividamento crescente da população e suas consequências subjetivas também não são consideradas um problema, já que a facilidade do pagamento dos juros aliviaria de imediato esse efeito secundário. Mas, quanto e como o tipo de consumo realizado em lojas, sobretudo aquelas online, acarreta efetivamente o crescimento do mercado de trabalho brasileiro? Não tenderia a fazer crescer, ao invés, a produção industrial dos países produtores das mercadorias (China, Índia, Paquistão, sudeste asiático), cujas operações estão submetidas as cadeias imperialistas de circulação do capital financeiro? Neste caso, o que cresce, nestas condições, é o trabalho envolvido na circulação de mercadorias, o setor de serviços. É o crescimento de trabalhos do tipo que é realizado nos galpões logísticos, como aquele visitado por Lula, composto por um exército de trabalhadores e trabalhadoras, muitos dos quais jovens, que trabalham com contratos por tempo limitado, sobretudo nos momentos de pico do comércio em coincidência das festividades, em jornadas extenuantes e trabalhos robotizados. Sobre este tema, indicamos o excelente trabalho de pesquisa de Alessandro Delfanti Amazon, Trabalhadores e robôs (ed. Unicamp, 2023).
- Segundo destaque: a cultura do trabalho e os “sonhos” de quem trabalha.
Citamos a seguir um longo trecho do discurso de Lula:
“E posso dizer para vocês, depois de tantos anos visitando tantos locais de trabalho, quero te dizer, Fernando Yunes, que eu nunca vi um local em que o povo tivesse mais alegria estampada no rosto do que eu vi hoje aqui [na Mercado Livre]. Não vi. E possivelmente, possivelmente, não é só pelo salário que a gente ganha que a gente gosta de trabalhar no local (…). Possivelmente não seja só pelo salário que vocês ganham, porque a gente nunca está contente com o salário, a gente sempre quer um pouco mais, sempre quer. Quando a gente recebe aumento, aquele aumento só vale para o primeiro mês, no mês seguinte aquele aumento já não vale mais nada. Mas muitas vezes, tão importante ou mais importante que o salário, é o ambiente que a gente trabalha, é o sonho que a gente tem, é a esperança que a gente nutre, é a expectativa de que amanhã as coisas vão dar certo aqui. E a quantidade de meninas e meninos que me falaram: ‘eu já fui promovido; eu estou aqui há três anos; eu entrei aqui e não sabia nada; eu fui promovido; eu estudei; eu me formei’, gente agradecendo ao Prouni, gente agradecendo os institutos federais, gente agradecendo a salvação da vida dela por conta do SUS. E eu acho então que vocês construíram aqui dentro, nesse galpão maravilhoso, um sonho. Eu acho que vocês poderiam ser considerados construtores de sonhos, porque vocês sabem que depende muito de vocês as coisas melhorarem a cada dia. A minha mãe, uma mulher analfabeta que veio de Pernambuco para não morrer de fome com oito filhos, mesmo quando ela não tinha nada para colocar no fogão para fazer para a gente, eu nunca vi minha mãe reclamar da vida. Ela falava: ‘Hoje não tem, mas amanhã vai ter’. E é isso que eu queria dizer para vocês. Vocês estão trabalhando em um local que permite que vocês continuem sonhando, que permite que vocês continuem acreditando. É por isso que eu digo para vocês: não parem de estudar. Não parem de estudar, pelo amor de Deus (…). Nós só queremos ser tratados com respeito, com decência, porque nós temos o direito, porque quem produz a riqueza desse país são vocês. São vocês. Não tem outra pessoa que participa da riqueza. Por isso, Fernando [Yunes], eu quero te agradecer, quero agradecer a direção do Mercado Livre e quero dizer para vocês, valeu a pena eu fazer essa visita aqui.”. (Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 2025)
Chama atenção, na fala do Presidente Lula, a insistência sobre o sonho. Essa insistência sobre os sonhos deixa pensar que Lula não considera o galpão como um modelo de fábrica do século XXI. Não é um lugar para ficar, progredir na carreira até se aposentar, como as montadoras onde ele trabalhou. É um lugar de passagem em vista de novas “oportunidades”, possivelmente após o término do ensino superior. Mas o que sobra na jornada desses jovens, que trabalham em escala 6×1, em turnos que cobrem as 24h do dia em que o galpão fica em atividade, que muitas vezes são impelidos a fazer horas extras (em troca de “bônus” para a compra de mercadorias); em jornadas, por vezes, de 12 horas; horas de trabalho que geralmente implicam em caminhar ininterruptamente pelos imensos corredores do galpão, sem poder ficar parados por mais de 5 minutos. É possível ir ao banheiro, em 5 minutos, percorrendo os imensos corredores de produtos? Só aproveitando o momento em que se passa perto de um banheiro e sendo rápido para não perder a meta de mercadorias movimentadas por hora, com os tempos estritamente controlados pelos dispositivos eletrônicos que direcionam a tarefa e informam o andamento da performance de cada um aos supervisores. Na “nova fábrica”, as trabalhadoras e trabalhadores não somente não precisam ter formação nenhuma, como são claramente descartáveis, substituíveis. Ou seja, o que eles fazem pode ser facilmente substituído por outro trabalhador e, quem sabe, por uma máquina. O conhecimento individual adquirido em suas atividades pode ser expropriado graças ao uso dos dados que os dispositivos eletrônicos recolhem, seus gestos servindo para que as máquinas acumulem dados e saberes, que irão aprimorar as capacidades dos robôs que visam automatizar o trabalho e diminuir cada vez mais o elemento humano.
Anos atrás, durante as gestões dos Presidentes Lula e Dilma, o Brasil fez um esforço junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a elaboração de uma “Agenda de trabalho decente”. Fruto de muitas discussões entre empregadores, representantes do governo e da organização internacional, a Agenda, ao final, não foi aprovada por resistência dos empregadores, ficando, portanto, letra morta. Quantas daquelas normas definidas para o trabalho decente são seguidas por empresas como a Mercado Livre?
Dados divulgados recentemente pela Fundação Getúlio Vargas [6] mostram que, no último trimestre de 2024, “a taxa de desemprego dos jovens com idade entre 18 e 29 anos (10,1%) era mais que o dobro da observada no grupo de pessoas com idade entre 30 e 59 anos (4,5%), além de ser mais elevada que a média nacional (6,2%)” (Fundação Getúlio Vargas, 2025). Além disso, 38,6% desses jovens trabalham na informalidade. O mesmo relatório afirma que “o rendimento real de jovens com idade entre 18 e 29 anos (R$2.297) foi 37,8% menor que os com idade entre 30 e 59 anos (R$3.690) e quase 31% menor do que o do Brasil (R$3.315)” (Fundação Getúlio Vargas, 2025). As 10 ocupações que mais concentram jovens são (na ordem): balconistas e vendedores em lojas, escriturários gerais, trabalhadores elementares da construção, caixas e expedidores de bilhetes, recepcionistas, especialistas em tratamento de beleza, trabalhadores de controle de abastecimento e estoque, condutores de moto, trabalhadores de serviços domésticos, mecânicos. Ou seja, todos trabalhos que não requerem nenhuma qualificação, onde a taxa média de informalidade é 44,6% superior à média nacional. Nesse quadro, trabalhar com carteira assinada para a Mercado Livres seria, efetivamente, uma oportunidade, se os trabalhadores trabalhassem em condições decentes e não fossem descartáveis.
As novas oportunidades disponíveis para aquelas pessoas que passam por um posto de trabalho como o do centro de distribuição onde estavam reunidos seriam aquelas que o Ministério do Márcio França deveria estar propiciando? Ou seja, a ampliação da oportunidade de empreender e ter sucesso no próprio negócio, via formação para elaborar um bom plano de negócios e para dar visibilidade à própria mercadoria, via acesso ao crédito para investir e facilidade para vender – possivelmente, por meio de plataformas de comércio eletrônico como Mercado Livre.
Há mais de 20 anos que o léxico das oportunidades passou a fazer parte dos gestores públicos, junto a termos como “sonhos”, “resiliência”, “protagonismo”, “empoderamento”, “criatividade”, “empreendedorismo”, “inovação”, “impacto positivo”, que aludem a uma celebração das capacidades e responsabilidades individuais. O mesmo léxico que encontramos nas vagas de emprego ofertadas pela Mercado Livre orienta as ações do Ministério do Empreendedorismo e das Pequenas Empresas e de outros órgãos do governo. Exemplo disso é a Secretaria das Periferias, que apoia a Expo Favela, quermesse da celebração das capacidades “naturalmente” criativas, resilientes e empreendedoras dos moradores das favelas. Os relatórios do SEBRAE [7] apresentam informações sobre o número sempre crescente de MEIs no Brasil: foram aproximadamente 5,4 milhões de novos MEIs nos últimos três anos. Sabemos, no entanto, que 28% dos MEIs, no mesmo ano, estavam inscritos no Cadastro Único, ou seja, estavam em busca de um auxílio social do governo por ter renda familiar de, no máximo, meio salário mínimo por pessoa. Dos MEIs ativos em 2021, mais da metade aderiram ao programa há menos de 3 anos. Ou seja, não há uma grande longevidade. Apenas 13,3% possuem ensino superior. Quase 15% deles possui vínculo empregatício, isto é, exerce a atividade autônoma junto com o trabalho assalariado. Segundo o SEBRAE, os microempreendedores cadastrados como MEI eram, em 2022, 14.820.414, ou seja, 73,4 % do total de empresas formais do país. A maioria dos MEIs apresenta uma receita média mensal de R$3.507,57 em troca de uma jornada exaustiva de 43,4 horas. O valor da receita evidentemente não representa os ganhos, sobre os quais curiosamente não há dados.
A qual sonho, portanto, se refere o presidente Lula?
Conclusão
A presença do Líder e da trabalhadora da Mercado Livre no palanque representa o movimento de expansão que a empresa propagandeia a seus investidores. No final de março, o BTG Pactual anunciou um fundo de investimentos no valor de R$750 milhões que sustentará a construção de um galpão logístico de 227 mil m², provavelmente o maior armazém atendendo a um comércio virtual no Brasil, com um contrato de locação de 12 anos para a empresa argentina [8]. O local deste colosso logístico é Cajamar, a “Faria Lima dos galpões”, que naquela tarde recebeu a comitiva televisionada. O prefeito da cidade, inclusive, estava presente e foi mencionado nos agradecimentos de Yunes, dos ministros e do presidente Lula.
Para além dos discursos, é possível notar como vão se materializando -e financiando – as estruturas físicas que abrigam o crescimento previsto da atividade de comércio online no Brasil, crescimento impulsionado pela concorrência de market places/shoppings eletrônicos como Amazon, Shopee, Aliexpress, entre outros. Também vão sendo produzidas as subjetividades das pessoas que colocam essas estruturas para funcionar. Enquanto isso, as condições de trabalho e a precariedade dos contratos continuam formalmente enquadradas pela legislação trabalhista em vigor, resultado da ofensiva neoliberal da última década e da inação do governo Lula em alterar a reforma imposta a partir do golpe de 2016.
Uma série de impactos poderiam ser listados como ausentes nos discursos registrados no evento do dia 07 de abril de 2025 em Cajamar. A ausência de participação, no evento, dos sindicatos que representam as categorias envolvidas nas diversas atividades da Mercado Livre -lembrando as práticas antissindicais características das big techs-; a descaracterização dos contratos frente ao tipo de atividade que as trabalhadoras e trabalhadores exercem; a subjetivação da cultura empreendedora correspondente a postos de trabalho com alta rotatividade; a objetificação da atividade humana laboral através de dados quantificáveis; o deslocamento forçado de famílias para construção de novos galpões; a morte de nascentes pelo soterramento massivo de terras; o estímulo desenfreado pelo consumo de produtos industrializados. Mais do que indicar as ausências, procuramos demonstrar acima a conveniência dos presentes.
Notas:
[*] Unicamp / Conexão – Pesquisa e Extensão em Trabalho
[**] UFMG / Laboratório de Pesquisa-Ação sobre Trabalho e Território
[1] A transmissão do evento e a transcrição do discurso presidencial estão disponíveis no link: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2025/04/pronunciamento-do-presidente-lula-durante-anuncio-de-investimentos-e-contratacoes-do-mercado-livre.
[2] Segundo levantamento feito em 2024 pelo Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados e Tecnologia de São Paulo, o SINDPD-SP, foram identificados 2388 processos trabalhistas em tribunais regionais do trabalho no Brasil. Para mais informações, indicamos a matéria O que explica o sucesso do Mercado Livre, maior varejista online do Brasil, disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2024/05/15/o-que-explica-o-sucesso-do-mercado-livre-maior-varejista-online-do-brasil.htm.
[3] Abordamos em trabalho anterior o léxico utilizado pela Mercado Livre nas ofertas de vagas, comparando-o com relatos nas redes sociais sobre as condições de trabalho na empresa. A análise foi apresentada no Encontro Anual da Associação Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS). Disponível em:
https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/9845/version/10404.
[4] Sobre os impactos do estímulo ao consumo, indicamos o documentário “A conspiração consumista” realizado pela diretora Nic Stacey (Netflix, 2024).
[5] Sobre os impactos da construção dos condomínios logísticos, indicamos o trabalho de Alexandre Yassu de 2021, ”A reestruturação imobiliária e os arranjos escalares na (re)produção da metrópole: o caso de Cajamar-SP“. O livro pode ser acessado pelo portal Observatório das Metrópoles, disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/a-reestruturacao-imobiliaria-e-os-arranjos-escalares-na-reproducao-da-metropole-o-caso-de-cajamar-sp/.
[6] Dados disponíveis em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/jovens-no-mercado-de-trabalho.
[7] Dados disponíveis em: https://sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/brasil-tem-quase-15-milhoes-de-microempreendedores-individuais,e538151eea156810VgnVCM1000001b00320aRCRD e https://fdr.com.br/2024/08/22/pesquisa-mostra-media-de-renda-do-mei-e-decepciona-com-valor-menor-que-1-salario-minimo/.
[8] As informações sobre o fundo da BTG podem ser encontradas na matéria da Exame, disponível em: https://exame.com/mercado-imobiliario/btg-pactual-levanta-r-750-milhoes-para-fii-de-galpao-para-o-mercado-livre/.
As artes que ilustram o texto são da autoria de Ossip Zadkine (1890-1967).