Por Ademar Lourenço

Para mim, ter sido monitorado pela chamada “Abin Paralela é o mesmo que ganhar uma medalha de honra ao mérito. De acordo com investigações, durante o governo Bolsonaro, um grupo usou a estrutura da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para monitorar adversários políticos da familícia. E estou entre eles. Faço questão de ostentar com orgulho o fato do meu nome constar na lista oficial de inimigos de um fascista que provocou a morte de milhares de pessoas durante a pandemia.

A parte ruim é que essa honraria deve ter custado um bom dinheiro do pagador de impostos. A hora de trabalho de um servidor da Abin custa bem caro. E, de acordo com as investigações, um servidor gastou seu tempo de expediente fuçando o GPS do meu celular. Isso na época em que o Brasil passava pela pandemia de Covid-19. O governo Bolsonaro não tinha um centavo para comprar máscaras de proteção. Mas provavelmente tinha dinheiro disponível para me monitorar.

Agora não falta assunto na mesa de bar. Posso chegar em qualquer lugar dizendo que fui “espionado pelo serviço secreto”. Eu já me imagino falando isso em frente à mesa de sinuca de um boteco de cidade do interior. Não sou da prática da autopromoção, mas o “monitorado pela Abin” está na minha bio do Instagram. Me permito esta pequena vaidade, fiz por merecer.

Porque essa ênfase em mostrar que não me preocupo e encaro a situação com humor? Porque esse monitoramento, se ocorreu, foi um ato de intimidação. Eu poderia ser ameaçado. Ou alguma informação poderia ser usada para me caluniar. Quem sabe para me ferir. E vamos esquecer o termo “paralela”. As possíveis trapalhadas de bolsonaristas não são um fato isolado. Sabemos qual é a natureza e a história da Agência Brasileira de Inteligência.

Órgãos como a Abin brasileira, a Ocrana da Rússia czarista, a Gestapo da Alemanha Nazista, a CIA estadunidense, a KGB da era soviética, o MI6 britânico, a Stasi da antiga Alemanha Oriental ou o Mossad israelense têm historicamente a função de intimidar pessoas e desmobilizar movimentos. É o papel das polícias políticas. Sim, esse é o nome adequado para aquilo que a mídia romantiza nos filmes e chama de “serviço secreto”.

Via de regra, os agentes dos “serviços de inteligência” atuam de acordo com os interesses autoritários dos governos. Em geral, estão atrás de líderes de movimentos sociais que reivindicam direitos. Pode esquecer o charmoso James Bond enfrentando o cientista maluco que quer dominar o mundo. Na vida real, temos um burocrata xeretando a vida de um líder sem-terra ou de um sindicalista.

No Brasil não seria diferente. A história da polícia política do nosso país está no livro “Ministério do Silêncio”, do jornalista Lucas Figueiredo. O chamado “Serviço” foi criado em 1927. Por quase 100 anos, ele espionou, intimidou, gerou discórdia e perseguiu aqueles que lutavam pelos direitos do povo. A “inteligência” brasileira nunca monitorou grupos empresariais mafiosos ou organizações nazistas.

Durante a Ditadura Militar, o então Serviço Nacional de Informações (SNI) foi responsável direto pela morte de vários militantes que queriam o fim do regime autoritário. Era uma estrutura grande, cara e cheia de funcionários preguiçosos e desqualificados, alguns distribuídos para o órgão na base do “Quem Indica”. Apesar disso, o órgão funcionava razoavelmente bem para perseguir adversários políticos.

Dois Presidentes da República durante a Ditadura Militar também foram chefes do SNI: Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo. Isto mostra a importância que o “Serviço” tinha. Mas depois da redemocratização, o SNI mudou de nome e se tornou a “Agência Brasileira de Inteligência”.

Ainda é a mesma estrutura burocrática, inchada, ineficiente, mas ainda perigosa para a democracia. E também continua politicamente aparelhada. Segundo Lucas Figueiredo, a Abin já investigou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e tem como principal foco a perseguição a movimentos sociais.

Em mais de 14 anos no Poder, os governos petistas não extinguiram a Abin. Com Bolsonaro, o “Serviço” voltou a ter protagonismo. Os bufões que se acham “James Bonds” da vida real se deleitaram com o dinheiro e a tecnologia à disposição. Na falta de coisa melhor para fazer, que tal monitorar um jornalista militante, não é mesmo?

De acordo com o que foi investigado, eles não conseguiram muita coisa. Não tiveram acesso às minhas mensagens. Mas invadiram meu celular e colheram metadados, que são informações secundárias, como localização ou horário de uso do aparelho. Se tivessem um pouco mais de competência, talvez os agentes da Abin poderiam fazer algo para me prejudicar, jamais vou saber.

Mas uma coisa é certa. Se o objetivo foi me intimidar ou me desmobilizar, o tiro saiu pela culatra. Minha disposição para a militância política se redobrou. Agora sou oficialmente alvo da polícia política brasileira. Alguma coisa certa eu devo ter feito.

É minha obrigação encarar desta forma. Muitos sofreram muito mais e não abaixaram a cabeça. Eu não vou abaixar a minha. Não tenho medo, não tenho vergonha e não vou reduzir o ritmo de minha marcha.

Meu caso individual tem pouca importância diante do absurdo da Abin ainda existir. Esse órgão não cumpre nenhuma função pública e deveria ser sumariamente extinto. Não cabe em uma democracia a existência de uma polícia política. Em quase cem anos de existência, o “Serviço” não fez nada de bom para o Brasil.

5 COMENTÁRIOS

  1. Consideramos importante a discussão e a reflexão acerca dos aparatos de
    espionagem e vigilância, por isso publicamos o artigo. Entretanto, a
    exposição pessoal presente no texto não tem nosso apoio, pois entendemos
    que não contribui para a segurança militante.

  2. Você pede o fim da Abin mas deveria agraciá-la, afinal, ela foi responsável por te deixar ainda mais engajado, ainda que nos seguintes termos individualistas: “Não tenho medo, não tenho vergonha e não vou reduzir o ritmo de minha marcha”. Se é mesmo “inútil” o monitoramento de um suposto “inimigo”, operado por um suposto “fascista que provocou a morte de milhares de pessoas durante a pandemia”, estamos diante de um atestado de irrelevância sua, que enquanto rebotalho da sociedade capitalista do espetáculo, ainda faz questão de inserir essa futilidade na bio de uma rede social. Leia os textos de Clarisse Gurgel, sobre essas ações performáticas. Recomendo que não leve muito adiante essas tendências martíricas.

  3. Não se deixe(m) enganar, se a vigilância vazou foi porque era interessante vazar (provavelmente por motivos estratégicos ou de quem vigiou ou dos novos gestores do aparato). Se não captou dados mais a fundo foi porque era desnecessário captar. A vigilância de hoje não é feita por “um burocrata xeretando” a vida de alguém, e sim por programas altamente poderosos e conectados a IA, que monitoram blocos de pessoas e sistematizam os dados para encontrar tendências de movimento e atuação, linhas ideológicas etc. Uma ou outra pessoa recebe tratamento especial de monitoramento a pedido de alguém poderoso, óbvio, mas isso é residual e só ocorre ainda porque algumas pessoas no poder têm interesses privados e usam a máquina, mas o setor ou a instituição de vigilância estatal e paraestatal é muito mais inteligente e estratégica, e atua num nível muito mais macro (isso é autoevidente pelo menos desde os vazamentos do Wikileaks, Lava-Jato, Cambridge Analytica etc.). O modelo de vigilância que vemos no filme “A vida dos Outros”, que o autor do texto pensa que foi vítima, não existe mais (a menos que seja para um ato físico específico, como por exemplo o monitoramento em tempo real e fisicamente próximo de Alexandre Moraes quando estavam planejando o assassinato). Em vez de monitorar o Joãozinho, que por algum motivo se destacou, se monitora todos os contatos de Joãozinho nas redes sociais, num click só, e se colhe um relatório detalhado com todas as informações estratégicas, como por exemplo o detalhamento das redes de amigos em comum, a frequência dos contatos, o mapeamento da localização geográfica de cada um deles ao longo do período X, as vias de contato entre lideranças e autoridades, os principais assuntos e palavras-chave das interações e postagens públicas e privadas etc. A questão atual não é mais saber o que os adversários políticos pensam, isso é adquirido facilmente com as ferramentas existentes. A questão é o direcionamento estratégico da opinião pública, o manejo dos interesses conflitantes dentro e fora do país, a via menos onerosa e arriscada de neutralizar os adversários etc. Um desses caminhos, inclusive, é levá-los a acreditar que a inteligência é burra e limitada e incompetente.

  4. Pablo,

    Mas nesse caso da tal “Abin paralela” do Bolsonaro, eles realmente eram muito incompetentes. Provavelmente não sabiam usar sequer o aparato tecnológico que provavelmente tinham à disposição. Não houve nada vazado. Trata-se de relatório da Polícia Federal sobre a “Abin paralela”.

    Pegue o caso da Alessandra Orofino, Os arapongas colocaram agentes para vigiar a casa dela. Só que erraram a casa, ficaram vigiando uma casa antiga dela, em que outra pessoa mora. Além disso, são tão aloprados que “vigiavam ela” porque acreditaram no que o Rodrigo Constantino escreveu sobre ela certa vez na Gazeta do Povo, e que não era verdade.

  5. Sobre a disseminação da espionagem, vale a pena ler esta reportagem da revista Piauí: https://piaui.folha.uol.com.br/aplicativo-espiao-celular-007/
    Destaco um trecho: “A espionagem ilegal, no entanto, ganhou outra dimensão com a popularização dos smartphones, que não apenas tornaram mais fácil monitorar as pessoas (afinal, quem não carrega o celular no bolso?) como abriram o caminho para o surgimento de aplicativos que permitem a qualquer um se tornar um araponga. “A oferta desses programas está disseminada na internet”, lamenta a advogada Nuria López, especialista em direito digital.”

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here