Por Jan Cenek
O que choca nos cancelamentos é a inversão de valores civilizatórios: a presunção de culpa, a obrigação de provar a inocência. É como se, para os canceladores, todos fossem culpados e faltasse apenas a revelação do crime. Se é assim, a dosimetria pode até ser discutida posteriormente, a punição às vezes não é a mais indicada, mas é sempre legítima, porque o homem é sobretudo culpado, ainda que não saiba exatamente do que, como Joseph K. Para cancelar bastam pequenos indícios e alguns indivíduos com sede de vingança, ímpeto punitivista e vontade de linchar. Outro ponto chocante nos cancelamentos é ausência de rito processual. Quem conhece a justiça burguesa em teoria ou na própria pele sabe que, mesmo quando o objetivo principal, ainda que velado, é punir; o acusado tem direito ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal. Violações desses princípios podem significar o arquivamento do processo. No reino dos cancelamentos não é assim. Canceladores não têm – nem querem ter – nenhuma noção do que é direito ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal. Bastam pequenos indícios, porque a culpa é indubitável. Os acusadores são juízes, carcereiros e carrascos ao mesmo tempo. A presunção de inocência não interessa aos punitivistas porque estão absolutamente convencidos de que os outros são culpados, e porque gozam reprimindo. Difícil separar uma coisa da outra, elas se retroalimentam e se reforçam. Se as infrações ainda não foram denunciadas, é porque estão para ser reveladas. Questão de tempo. O pecado é original e universal. Um ou mais pecados para cada homem. Daí a justeza da punição, sempre.
Há vários exemplos de cancelamentos absurdos, que têm menos a ver com os fatos do que com a sede de vingança, a vontade de linchar e o gozo punitivista. Até o finado Franz Kafka foi cancelado recentemente. Mas eu não lembrava a razão. Precisei recorrer ao Google para recordar e não vale sequer comentar o caso. Avancemos. Mais à frente retornaremos à Kafka. Certa vez, discutindo com alguns canceladores (a maioria eram canceladoras) afirmei que, para serem coerentes, deveriam levar o argumento até as últimas consequências e defender a pena de morte, que é um cancelamento completo e definitivo. Sintomaticamente, houve quem rebateu dizendo que a pena capital só seria aplicada aos pobres, como se essa fosse a questão. Se a pena de morte fosse aplicada para todas as classes sociais tudo bem? Por serem canceladores ligados à esquerda, ficaram irritados com a associação à pena capital e disseram que meu argumento não fazia sentido. Como sempre acontece, o caso que motivou aquela discussão foi esquecido – a exemplo do cancelamento de Kafka – e, com esquecimento, o debate desapareceu.
Li recentemente as Reflexões sobre a guilhotina, do escritor franco-argelino Albert Camus [1]. Na primeira metade do século XX a pena de morte ainda não havia sido abolida em países como Inglaterra e França. As execuções não aconteciam mais em praça pública, mas continuavam previstas em lei. Albert Camus perdeu o pai, Lucien Auguste Camus, quando tinha apenas um ano. Mas uma experiência do pai marcou profundamente o filho, ainda que nunca tenham conversado sobre a questão. Certo dia Lucien Camus acordou cedo para assistir uma execução pública. Quando voltou para casa vomitou e nunca mais foi o mesmo. Albert Camus conheceu a história indiretamente, por meio de familiares, mas, mesmo assim, ficou marcado por ela. As execuções reaparecem posteriormente na obra do escritor franco-argelino, no romance O estrangeiro, por exemplo. Em 1957, publicou Reflexões sobre a guilhotina para denunciar a pena de morte, que ainda não havia sido abolida na França. O próprio Camus reconhece que não formulou novos argumentos, apenas recolheu e compilou ideias elaboradas anteriormente, além de agregar depoimentos de carrascos e capelães. Um dos argumentos me fez pensar nos cancelamentos do tempo presente. Os defensores da pena de morte sustentavam que a prática inibiria criminosos. Camus rebateu com dados e argumentos. Não vou reproduzi-los. Apenas destaco um questionamento do romancista. Se a pena de morte servia para inibir, porque cada vez menos se fazia publicidade das execuções? Por que as execuções foram removidas das praças públicas para o pátio das cadeias, sendo acompanhadas por um público cada vez mais reduzido. Se o objetivo fosse realmente pregar com o exemplo, o correto e coerente seria publicizar as execuções ao máximo. Mas estava acontecendo exatamente o contrário. Provavelmente porque o único efeito prático das execuções públicas era o trauma que causavam em homens como Lucien Camus.
Conforme avançava nas páginas de Camus, lembrei da associação que havia feito entre pena de morte e cancelamento, na discussão que tive com alguns punitivistas. Se o objetivo principal dos canceladores realmente fosse inibir atos indevidos, o correto seria discutir e publicizar ao máximo os cancelamentos realizados. Ocorre que a divulgação ampliada vai até o ponto em que os canceladores conseguem cravar a sentença – que eles próprios definiram – na carne, na alma e na biografia dos cancelados. Depois disso os casos desaparecem. Caem no esquecimento. Como se objetivo já tivesse sido alcançado. Como se o importante fosse apenas e simplesmentente punir. Esse movimento me fez pensar na remoção de execuções das praças públicas para dentro das cadeias. Provavelmente para não chocar homens como Lucien Camus, que mudariam de lado ao presenciar a brutalidade da pena capital. Os leitores de Franz Kafka já devem ter percebido aonde quero chegar.
Na colônia penal [2] é um conto pesado de Kafka. Foi escrito em 1914 e publicado em 1919 [3]. Durante a leitura pública do texto na galeria Goltz, em Munique, duas senhoras desmaiaram [4]. Mais ou menos na mesma época Lucien Camus acordou cedo para assistir uma execução pública. Depois voltou para casa, vomitou e nunca mais foi o mesmo. No conto de Kafka um “explorador” europeu visita uma colônia penal nos trópicos para conhecer o método de execução local. Ele é conduzido e informado por um “oficial” que é também juiz e carrasco. Ou seja, acumula funções, como os canceladores do tempo presente, que atuam como promotores, juízes e carcereiros. Há outros dois personagens no conto. Um “soldado” e um “condenado”. Como na maioria dos textos de Kafka, os personagens não têm nomes próprios, o que despersonaliza os homens e aumenta a tensão. O “oficial” recebe, conduz e explica o processo de execução ao “explorador”. Naquela colônia penal as execuções eram realizadas com uma máquina desenvolvida por um comandante já falecido. Tradição mantida e defendida com unhas e dentes pelo “oficial”. A máquina de matar era formada por três partes. Embaixo uma cama que vibrava, onde o executado era deitado de bruços e amarrado. No meio um rastelo – com agulhas afiadas – que descia para “desenhar” a sentença no corpo do condenado. Em cima um desenhador – com as engrenagens dispostas conforme o teor da sentença – que comandava os movimentos do rastelo. As execuções duravam aproximadamente doze horas. Os primeiros encontros das agulhas com a carne do condenado eram praticamente indolores, o homem sentia apenas um arrepio. Nas reflexões sobre a guilhotina, Camus [5] ironiza um comentário do Dr. Guilhotin: os decapitados sentiam muito mais que um “leve frescor na nuca”. Na colônia penal kafkiana os executados morriam em doze horas. No início as agulhas quase não machucavam. Mas aos poucos iam desenhando a sentença cada vez mais fundo na carne do condenado. Com duas horas o executado era incapaz de gritar. Depois de seis horas deixava de se alimentar com a papa de arroz que lhe era oferecida porque perdia “o prazer de comer” [6] e, mais importante, começava “a decifrar a escrita […] com seus ferimentos” [7]. Na décima segunda hora o executado estava morto [8]: “o rastelo o atravessa de lado a lado e o atira no fosso, onde caía de estalo sobre o sangue misturado à água e o algodão. A sentença está então cumprida e nós, eu e o soldado, o enterramos.”
As palavras desenhar e desenhador não estão à toa no conto de Kafka. As sentenças eram peças artísticas, elaboradas com caracteres especiais, para serem desenhadas – com agulhas – nos corpos dos executados. As sentenças faziam referência aos “mandamentos” descumpridos pelos condenados. Kafka mencionou duas sentenças no conto: “Honra teu superior!” e “Seja justo!” O amor do “oficial” pelas sentenças em forma de peças artísticas e o amor dele pela máquina de matar é o ponto forte e chocante do conto. Se repito a palavra amor é porque é exatamente disso que se trata. É a partir do amor do “oficial” (carrasco) por seu trabalho que vou saltar para os canceladores do tempo presente. Antes quero citar dois trechos intrigantes e antecipatórios do conto kafkiano. É um diálogo do “explorador” que visitava a colônia penal com o “oficial” responsável pelas execuções [9]:
– Ele conhece a sentença?
– Não – disse o oficial, e logo quis continuar com suas explicações.
Mas o explorador o interrompeu:
– Ele não conhece a própria sentença?
– Não – repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:
– Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne.
O segundo trecho aparece na sequência, é a continuação do diálogo entre o “explorador” e o “oficial” [10]:
– Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?
– Também não – disse o oficial e sorriu para o explorador, como se ainda esperasse dele algumas manifestações insólitas.
– Não – disse o explorador passando a mão pela testa. – Então até agora o homem ainda não sabe como foi acolhida sua defesa?
– Ele não teve a oportunidade de se defender – disse o oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com coisas tão óbvias.
[…]
– As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal […] O princípio segundo tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável.
O drama do condenado do conto Na colônia penal é semelhante ao de Joseph K. no romance O processo. O primeiro não sabe que foi condenado. O segundo não sabe do que é acusado. Nenhum dos dois desconfia que vai morrer. A sacada é de Milan Kundera [11]: o peso da culpa é insuportável para Raskolnikov, que consente na punição (o crime procura um castigo); não saber do que é acusado é insuportável para Joseph K., que busca alguma falta na sua vida pregressa (o castigo procura um crime). A certeza absoluta da culpa aproxima o “oficial” – que é também juiz e carrasco – da colônia penal dos canceladores do tempo presente. Quantos cancelamentos realizados em nome do princípio de que “a culpa é sempre indubitável”. Quantos linchamentos sem possibilidade de defesa. Quanto gozo punitivista. A presunção de inocência transformada na certeza de que “a culpa é sempre indubitável”. Dirão que nenhum cancelador executou alguém numa máquina como a operada pelo “oficial” da colônia penal. É verdade. Mas também é verdadeiro que os canceladores não têm tanto poder quanto o “oficial” do kafkiano. O que fariam se tivessem?
Minha hipótese é que, como o “oficial” do conto kafkiano, os canceladores estão absolutamente convencidos da culpa dos outros. Além disso, amam os mecanismos de punição que criam e passam a defendê-los com amor semelhante ao que tem o “oficial” da colônia penal pela máquina de matar. Como estão religiosamente convencidos de que a culpa é indubitável e porque gozam reprimindo, o ideal dos punitivistas é que todo homem se transforme num Joseph K., e busque voluntariamente faltas e erros na sua vida pregressa. Não é coincidência, para ser tolerado em tempos de cancelamento, um homem deve – antes de tudo e fundamentalmente – se arrepender. Sobretudo e sempre: arrepender-se. Começar pelo arrependimento. Isso porque a culpa é indubitável e os canceladores gozam reprimindo. É difícil saber o que vem antes. A certeza de que a culpa é indubitável ou o amor pelos mecanismos de punição? O certo é que – nos canceladores e no “oficial” da colônia penal – uma coisa alimenta e fortalece a outra. Quanto maior a certeza da culpa, maior o amor pelos mecanismos de punição, e o inverso é verdadeiro.
No começo do século XX, Franz Kafka visitou uma exposição em Praga junto com o poeta Gustav Janouch. Sobre os quadros de Pablo Picasso, Kafka [12] comentou com Janouch: “ele apenas registra deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência” […] “a arte é um espelho que adianta como um relógio”. Certeiro. Paraíso punitivista: o mundo transformado numa imensa colônia penal. É impressionante como as deformidades dos canceladores são antecipadas no “oficial” da colônia penal. A certeza absoluta da culpa dos outros. O gozar reprimindo. O amor aos mecanismos de punição. E mais, o destino dos canceladores costuma ser semelhante ao do “oficial” da colônia penal kafkiana. Já aconteceu algumas vezes e vai se repetir outras tantas. Mas paro por aqui. Não vou contar o final do conto. Quem leu já sabe. Quem não leu é só procurar o texto. Vale a pena. No mais e parafraseando Marx: canceladores de todo o mundo, cancelai-vos!
Notas
[1] Albert Camus. Reflexões sobre a guilhotina. Rio de Janeiro: Record, 2022.
[2] Franz Kafka. Essencial. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[3] Kafka, op. cit., p. 61.
[4] Kafka, op. cit., p. 61.
[5] Camus, op. cit., p 29.
[6] Kafka, op. cit., p. 77.
[7] Kafka, op. cit., p. 77.
[8] Kafka, op. cit., p. 78.
[9] Kafka, op. cit., p. 71.
[10] Kafka, op. cit., p. 71 e 72.
[11] Milan Kundera. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 107.
[12] Kafka, op. cit., p. 155.

Levo o debate um pouco mais longe do que o ensaio permite.
O ensaio parte da distinção entre os direitos ao contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e devido processo legal obrigatórios na “justiça burguesa”, de um lado, e de outro sua completa ausência entre os canceladores. O ensaio parte dessa distinção para denunciar a injustiça — para dizer o mínimo — dos cancelamentos.
Concordando com a denúncia e indignação do autor, parto da mesma distinção do ensaio para trazer duas contribuições meio dissonantes.
(1)
Apesar de a distinção acima estar inscrita em constituições da quase totalidade dos países atuais, ela só tem validade no âmbito da “justiça burguesa”, afeta apenas punições pelo Estado (quando há outras, privadas e informais, muito mais prevalentes) e é historicamente muito recente (cerca de 250 anos, contra milênios de presunção de culpa, condenações “automáticas”, punições arbitrárias, regras cambiantes e voluntaristas, etc.).
Direito (no singular) e direitos (no plural) não passam de relações sociais: existem enquanto praticados, jamais como regras abstratas, vigentes de uma vez para sempre.
Daí dizer: ao mesmo tempo em que a denúncia se enquadra nessa luta muito mais ampla para espraiar por toda a sociedade o tipo de relações sociais em que se respeitam contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e devido processo legal, penso que se deve partir de uma posição na qual esses “valores civilizatórios” não estão dados, estabelecidos e consolidados de uma vez para sempre, como regras abstratas de validade eterna, mas ainda são precários, estão por implementar, pois mesmo os responsáveis por sua aplicação (juízes, escrivães, oficiais de justiça, policiais, detetives, etc.) são gente, vivem numa sociedade onde esses “valores civilizatórios” ainda são mais aspirações que regras eficazes, e “contaminam” a “justiça burguesa” com valores contrários àqueles “valores civilizatórios” que defendemos (daí os debates sobre “justiça seletiva”, por exemplo).
(2)
Logo no primeiro parágrafo do ensaio fala-se em “sede de vingança, ímpeto punitivista e vontade de linchar”. Do ponto de vista que adoto, o diagnóstico está correto até o ponto em que opera, alusivamente, uma assimilação entre cancelamento e linchamento. Isto porque o “trisavô” dos cancelamentos não é o linchamento, mas o banimento.
Essa diferença tem certa relevância na discussão sobre o assunto, porque, historicamente, o banimento foi usado como alternativa à pena de morte (como é o linchamento) que preservava a vida biológica do acusado, mas estabelecia sua “morte civil”.
O banimento aplicava-se tanto aos vivos (ex.: homo sacer, vogelfrei, bitlahas, ḥērem, interdictio aquae et ignis, bara’a, Reichsacht, kasepekang) quanto aos mortos (ex.: deixar o corpo de Polinice sem ritos fúnebres, para ser comido pelas feras).
O banimento tanto podia ser permanente (exs.: bitlahas, kasepekang, homo sacer, vogelfrei, etc.) quanto podia ser temporário (ex.: ostracismo ateniense).
Diferentemente do linchamento, a “morte civil” decorrente do banimento podia ser estendida além da pessoa do “defunto” — alcançando desde sua família (p. ex.: crime de lesa-majestade das Ordenações Filipinas, com pena de infâmia “aos de sua linhagem”) até todos que, de algum modo, ajudassem o “defunto” fora-da-lei (p. ex.: dando-lhe alimento ou abrigo, como na pena de interdictio aquae et ignis).
Por fim, o banimento tanto podia ser uma pena aplicada pela autoridade governante (novamente: homo sacer, vogelfrei, interdictio aquae et ignis, etc.) quanto por agrupamentos sem autoridade política (bitlahas, ḥērem, bara’a, etc.).
Agora, veja-se o que acontece ainda hoje, em meio a certas denominações cristãs, com quem se deixa levar pelas “coisas do mundo”, ou “proibidas”: penso especialmente em Testemunhas de Jeová, mas já vi banimentos muito severos acontecerem tanto entre adventistas quanto entre aderentes à Assembleia de Deus.
Tudo isso é a continuidade do banimento bíblico (ḥērem), ainda em vigor e funcionamento, sem a menor chance de ser “contaminado” pelos “valores civilizatórios” do contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e devido processo legal.
Destaquei o cristianismo pela proximidade e relevância, mas poderia avançar rumo a outras religiões, ou mesmo a grupos unidos por afinidade filosófica ou política.
O cancelamento opera mais ou menos como o banimento: sendo impossível ou indesejável a morte física, aplica-se a “morte civil” a alguém indesejável pela comunidade, cuja coesão se reafirma pela expulsão do dissidente, do diferente, do dissonante. (Sinais dssa “impossibilidade” ou “indesejabilidade” são vistos, por exemplo, em certas entrevistas com parentes de vítimas de homicídio onde aparece repetidamente o clamor pela “justiça de Deus” em paralelo ou além da “justiça dos homens”: o clamor soa estranho para quem não o percebe como expressão de desejo de vingança, da transferência a “Deus” da responsabilidade, dever e missão vingadora de matar o acusado.)
Pior: o banimento sempre se opera partindo do princípio de que o acusado é culpado pela sua própria punição. “Não fomos nós que o expulsamos; foi ele (ou ela) quem violou nossas regras e causou a própria expulsão”.
Numa sociedade onde o banimento ainda é amplamente disseminado, como esperar que seus integrantes raciocinem e ajam em termos de contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e devido processo legal? É um verdadeiro trabalho de Sísifo.
Esta é mais uma razão pela qual considero que esses “valores civilizatórios” não são regras abstratas “escritas na pedra”, mas aspirações precárias, frágeis, limitadas, ainda por implementar, pelas quais se deve lutar a cada instante, a cada momento. Ou é isso, ou é ceder ao reino do arbítrio.
Manolo, excelente. Valeu. Realmente os cancelamentos tem muito a ver com os banimentos. Também concordo que “valores civilizatórios” como a presunção de inocência e o direito ao contraditório e à ampla defesa são recentes, e são conquistas “pelas quais se deve lutar a cada instante”. Acrescento apenas um comentário. As religiões desconhecerem princípios civilizatórios é razoavelmente previsível. O complicado é a esquerda – a extrema esquerda inclusive – desconhecer “valores civilizatórios” como a presunção de inocência e o direito ao contraditório e à ampla defesa. Para que serve a esquerda se ela não é capaz de compreender e defender “valores civilizatórios”? Os tribunais de exceção montados na/pela esquerda para promover cancelamentos são pavorosos.
Excelente texto e comentários.
Por coincidência estou pesquisando o tema e as indicações históricas de Manolo vão ajudar em muito. O mais grave, acho, é que os tribunais feitos pela esquerda (identitária ou não) são uma regressão em relação à justiça burguesa, que ao menos exige algumas formalidades etc., e são em muito piores do que os tribunais feitos em igrejas e na direita:
a) as técnicas da conciliação/mediação típicas da justiça restaurativa, por exemplo, têm sido aplicadas para reinserir fiéis desassociados das Testemunhas de Jeová, algo que não é feito no âmbito do identitarismo, onde a pessoa fica marcada e é morta para sempre;
b) nos banimentos e mortes simbólicas das igrejas e da direita a vítima sabe exatamente o que fez e o que pode fazer para ser “perdoado” ou algo similar. No identitarismo (que está infiltrado/absorvido em todas as correntes de esquerda) as denúncias não têm regras claras (sequer se exige qualquer prova ou se dá direito ao contraditório) e a perseguição e julgamento muitas vezes são difusos e dissimulados, assim como não são claros os mecanismos de punição, a “dosimetria da pena” e o que a pessoa poderia ou não fazer para reverter a situação. É um stalinismo refinado que pinta tribunais de exceção de vermelho.
c) não sei se chega a ser um item C ou parte dos anteriores, mas na direita e no exemplo das Testemunhas de Jeová a pessoa é punida pelo que fez (algo identificável e rebatível) e não pelo que “é”, num sentido ontológico e subjetivista. Na esquerda, ainda, se usa o histórico “positivo” do sujeito contra ele mesmo, potencializando a denúncia e alegando que tudo que o sujeito fez ou construiu antes não passava de simulação, falsidade, etc., como no caso dos acusados de serem “esquerdomachos”. O que na justiça burguesa entra como atenuante no identitarismo entra como agravante.
Esse ensaio, e os comentários, andam em lugares parecidos àqueles por onde andei neste ensaio de 2015: https://passapalavra.info/2015/02/102865/
Talvez valha a pena colocá-los em diálogo.
A utopia/distopia de uma sociedade sem vida privada já foi retratada em Nós, de Zamiatin. No entanto, a transformação das relações de produção não extinguirá o aspecto privado e pessoal da existência humana — a menos que se trate de uma transformação regressiva e obscurantista. Nós, que lutamos pelo comunismo, devemos defender o desenvolvimento pleno dos indivíduos, e a intimidade é uma herança fundamental do progresso humano.
Afinal, enquanto o mundo da política busca construir códigos e razões coletivas, cada integrante desse coletivo possui, por sua vez, uma vida privada. Um grupo político que, devido a diferentes pressões internas, aplica uma metodologia formal para resolver conflitos (como a vitória de setores que reivindicam os “valores civilizatórios”), trata publicamente a questão com o objetivo de alcançar acordos e consensos nas decisões — sempre que possível. Isso dentro do esquema das boas intenções.
No entanto, no âmbito privado, a situação se modifica. É justamente nesse espaço que alguns setores do feminismo identificam um terreno fértil para julgamentos e punições — inclusive, outra forma de banimento. Por exemplo, quando um indivíduo (geralmente do gênero masculino) rompe os vínculos sociais de outro por meio de diferentes formas de violência. Quem votou para que essa punição ocorresse? Qual coletivo político se responsabiliza por esse indivíduo que julga e castiga outro por ciúmes ou crises de insegurança? Quem ouviu a outra parte antes de condená-la?
Sofrer julgamentos e punições na intimidade é uma injustiça que nenhum banimento poderá reparar. Ser banido, na melhor das hipóteses, pode ser uma oportunidade para o turismo, pois o mundo é vasto e há muitas pessoas atormentadas por aí. Certamente, alguma comunidade acabará por acolhê-las.
Queria muito ter sido pai. Minha companheira engravidou e não quis prosseguir com a gestação. O corpo é dela, mas o filho era meu também! Ela disse que não queria arcar com os cuidados e as despesas dele, nem prejudicar sua carreira e seu modo de vida. Eu disse que poderia cuidar dele e me responsabilizaria por todas as despesas. Minha família disse que me ajudaria. Nos separamos. Não sei como ela abortou. Que dor! E quando expus minha dor na faculdade, tive de ouvir as piores infâmias possíveis… Que eu era machista, misógino, binário, etc. Sinto que não posso mais falar…
O texto de Jan Cenek e os comentários trouxeram-me a questão de que talvez um dos instrumentos do cancelamento seja o que nesse site foi também chamado de trashing (https://passapalavra.info/?s=Trashing), que praticado por tempo variável leva, em alguns casos, ao cancelamento/banimento. Quem o utiliza consegue ir minando a reputação da pessoa (ou pessoas) junto ao grupo ou coletivo social ao qual pertencem, ou que compartilham interesses e visões de mundo comuns. O cancelamento passa a ser uma questão de tempo ou oportunidade diante de uma reputação já atacada.
É não é uma prática exclusiva de grupos identitários. Mesmo grupo e coletivos dos mais críticos ao cancelamento, ao trashing e ao identitarismo adotam essa prática.
O combate contra tais práticas tem que ser constante para que os “valores civilizatórios” deixem de ser mera ideia abstrata.
Um tema tão traumático como os cancelamentos não tinha como não trazer à tona outros temas tabus, como a dor e a vulnerabilidade masculina. É muito comum em homens, adultos, não desenvolver um vínculo de confiança sentimental com nossos amigos. Colocamos todo esse peso nas nossas companheiras, e quando elas vão embora, pelo motivo que seja, sentimos uma solidão arrasadora, como se não pudéssemos falar das nossas dores com ninguém.
Eu recomendaria ao camarada em luto, pensar que o melhor seria desejar essa paternidade com alguém com quem você possa compartilhar os sonhos, os desejos. Se esse aborto causou em você tamanha tristeza, como se fosse o assassinato de um projeto seu, pense que a tua companheira não deveria estar obrigada a hospedar em seu próprio corpo um desejo que não era o dela. É comum que a produção de esperma fértil pelo ser humano tenha vigência até idades avançadas. Você ainda tem outras chances. Boa sorte!
Tenho dó do luto. Minha ex, mesmo eu usando camisinha, engravidou. Eu não quis a criança, mas serei eternamente responsável por este ser humano. No mundo da produção, há produtos pra todos… E a raposa é quem toma conta do galinheiro…