Por Emily Turnbull

Apresentação do tradutor

Temos visto a incapacidade dos trabalhadores impedirem o genocídio em Gaza e a limpeza étnica na Palestina. Embora ações significativas de trabalhadores organizados como categoria e em seus locais de trabalho tenham ocorrido em diversos países para acabar com o genocídio, numa expressão de internacionalismo que aponta o caminho para um outro mundo, elas têm sido insuficientes. Nos Estados Unidos, a ação da classe trabalhadora é fundamental. Trata-se do país primordialmente responsável por armar Israel (cerca de 70% das importações militares de Israel) e por dar a cobertura diplomática e bélica. Mas por que não ocorreram ações disruptivas da produção e distribuição de produtos e serviços militares a Israel nos EUA, além de um bloqueio no porto de Oakland realizado por ativistas e que durou cerca de doze horas?

O artigo que segue traz elementos para responder a essa pergunta. Ele foi publicado em setembro de 2024, no número 1182 do jornal Workers Vanguard, do grupo trotskista Spartacist League/US. Ele discute a rejeição de uma resolução pelo sindicato que representa os portuários da costa oeste dos EUA e do Canadá, o ILWU, para boicotar as cargas militares para Israel. O ILWU possui uma tradição mais progressista do que o ILA, o sindicato que representa os portuários da costa leste e do Golfo do México. O papel da burocracia sindical, como parte do status quo – mesmo um status quo que empreende e normaliza um genocídio – , emerge no artigo. Embora talvez também transpareça no artigo uma tendência comum no trotskismo de reduzir tudo a um problema de direção, isto é, da ideologia da burocracia sindical.

É certo que na medida que os trabalhadores parassem a produção ou transporte de produtos e serviços militares nos EUA, encontrariam uma reação repressiva sem precedentes. Como tem sido sem precedentes a repressão no ambiente acadêmico nos EUA, principalmente após os acampamentos de abril e maio de 2024 – repressão e perseguição piores do que nos macarthistas anos 1950. Uma categoria que conseguisse comprometer ou atrapalhar suficientemente a produção ou envio de armas a Israel teria que ter o apoio de outras categorias de trabalhadores e da sociedade civil como um todo. Em suma, não é difícil perceber diante das ações e reações das classes dominantes nos EUA que, em última análise, para sair vitoriosa a ação dos trabalhadores necessitaria de um virtual levantamento de classe, uma verdadeira onda de ascensão da classe trabalhadora capaz de ameaçar o próprio poder do capital.

Seja como for, nem sequer o que poderia ser um primeiro passo para paralisação de produção e transporte, de forma consistente pelos próprios trabalhadores, foi dado. A tradução do artigo abaixo ajuda os leitores em língua portuguesa apreenderem algo do que se passa em uma categoria que poderia ser central para bloquear as armas do genocídio.

Relatório da Convenção

ILWU rejeita boicote de carga militar a Israel

Workers Vanguard recebeu a seguinte carta de 30 de agosto de Emily Turnbull, membro do conselho executivo da International Longshore & Warehouse Union (ILWU) Local 10.

Participei da 30ª convenção internacional do ILWU em junho. A seção sindical Local 10 havia enviado à convenção uma resolução (iniciada pelo estivador aposentado Jack Heyman) para que nosso sindicato boicotasse o envio de suprimentos militares para Israel, a fim de impedir o genocídio de palestinos em Gaza. Embora eu não fosse uma delegada eleita, fui lutar pela resolução. O movimento pela libertação da Palestina se encontra num impasse. Milhões de pessoas foram às ruas, mas o apoio imperialista dos EUA a Israel permanece “inquebrável”. A única coisa que pode impedir o genocídio é a classe trabalhadora dos EUA tomar medidas que ameacem os interesses dos imperialistas não apenas no Oriente Médio, mas também aqui em casa.

Muitos no movimento de solidariedade aos palestinos têm olhado para o ILWU, com sua reputação “progressista”, como um sindicato que poderia iniciar tal ação. Se a resolução da Local 10 tivesse sido implementada, poderia ter desencadeado ações dos trabalhadores nacional e internacionalmente. Mas foi derrotada por ampla maioria. Em vez disso, a convenção aprovou uma resolução para um cessar-fogo em Gaza que reflete a mesma retórica hipócrita do governo Biden/Harris. Acredito que seus leitores estariam interessados em saber mais sobre os debates (ou a falta deles) na convenção, porque eles demonstram o quanto as políticas Democratas liberais promovidas pela liderança do ILWU e por toda a burocracia sindical dos EUA minam a força dos trabalhadores e desarmam a classe trabalhadora.

Eu sabia que havia poucas chances da resolução ser aprovada. Ela foi apresentada depois que a diretoria executiva da Local 10 rejeitou minha moção para realizar um protesto com paralisação do trabalho no Dia do Trabalho, no porto de Oakland. Esse protesto poderia ter mobilizado caminhoneiros e outros sindicatos em apoio aos estivadores, em uma demonstração de força dos trabalhadores para exigir o fim do genocídio em Gaza. Tendo se oposto a um protesto de paralisação do trabalho sobre Gaza, a liderança da Local 10 precisava melhorar suas credenciais pró-palestinas. O presidente Trent Willis apoiou a resolução de Heyman, argumentando que “resoluções radicais” deveriam vir das seções locais. Resoluções “progressistas” no papel como essas são comuns na Local 10. O texto da resolução não foi distribuído para os membros lerem e não houve uma discussão séria sobre o que seria necessário para implementá-la.

A resolução de Heyman descreveu o boicote aos embarques de armas para Israel como parte integrante da tradição “progressista” do ILWU de apoio à causa palestina, citando ações anteriores da Local 10 contra a empresa de navegação israelense Zim. Também citou a recusa da Local 10 em 1978 de carregar peças de bombas para a junta militar de Pinochet no Chile e seu boicote em 1980 a um carregamento militar para a junta militar salvadorenha. Mas essas duas últimas foram ações pontuais tomadas em conjunto com um setor da opinião liberal do Partido Democrata. O que a resolução de Heyman propunha era um boicote contínuo aos embarques militares dos EUA para Israel, um boicote que colocaria o sindicato contra todas as alas da classe dominante dos EUA, que veem Israel como seu aliado indispensável para policiar o Oriente Médio.

Esse é o tipo de ação que o ILWU nunca empreendeu porque sua liderança sempre apoiou a ala liberal do imperialismo americano. O fundador do ILWU, Harry Bridges, apoiou os EUA durante a Segunda Guerra Mundial e defendeu uma promessa permanente de não paralisação após o fim da guerra. Embora bastante capaz de táticas sindicais militantes e de críticas ocasionais à política externa dos EUA, Bridges sempre garantiu que o sindicato se submetesse às prioridades de transporte das Forças Armadas dos EUA. Mesmo durante a Guerra Fria, quando o governo dos EUA rotulou Bridges de comunista e tentou destruir o sindicato, o ILWU manteve o fluxo de suprimentos militares. O sindicato tinha uma posição formal contra a Guerra do Vietnã, mas continuou a transportar o material, que foi crucial para a guerra imperialista dos EUA contra a Revolução Vietnamita. Até hoje, o acordo coletivo do ILWU inclui uma cláusula que o obriga a transportar carga militar, mesmo em feriados.

Ao destacar as ações anteriores do sindicato, Heyman minimizou significativamente os obstáculos à implementação de sua resolução. O presidente do ILWU, Willie Adams, tem sido um dos líderes sindicais mais francos em apoio a Biden, apoiando os imperialistas da OTAN na Ucrânia, gabando-se de suas visitas à Casa Branca de Biden e recusando-se a proferir até mesmo um apelo fraco de cessar-fogo diante do horrível genocídio em Gaza. Em uma publicação de 20 de julho no site “Labor for Palestine”, Heyman atribui o fracasso da resolução à “guinada à direita” do sindicato sob a liderança de Adams. Mas, ao apoiar o Comandante-em-Chefe do Partido Democrata, Adams se mantém firme na tradição de Bridges. Os burocratas sindicais “progressistas” não são menos parte do problema; na verdade, suas críticas ocasionais à política externa dos EUA, publicadas em jornais, permitem que desmobilizem a luta sindical de forma mais eficaz.

Defendendo o apoio do sindicato a Biden (agora, é claro, transferido para Kamala Harris) em seu discurso de abertura da convenção, Adams reconheceu que, em novembro, “alguns” no Conselho Executivo Internacional “iriam votar de outra forma e temos que respeitar isso”. Ecoando os Democratas, Adams alertou sobre a ameaça de guerra civil, acrescentando: “Não podemos deixar que esse tipo de doença terrível destrua o sindicato”.

Essa doença está destruindo o ILWU (e a maioria dos outros) porque líderes sindicais como Adams insistem que é do interesse dos trabalhadores manter o “establishment” liberal representado por Biden e Harris no poder. Toda a raiva justificada dos trabalhadores com a queda dos padrões de vida e o rebaixamento social é canalizada por Donald Trump para a intolerância racista, anti-imigrante, antimulheres e antitrans. Enquanto isso, a imposição, pelos líderes do ILWU, da divisão dos estivadores em trabalhadores fixos, “A”, “B”, e trabalhadores temporários criou uma mentalidade de “cada um contra o outro”, que é o principal obstáculo à ação coletiva em defesa do próprio sindicato, quanto mais dos palestinos sitiados.

Temendo que a divisão entre Trump e Biden explodisse no plenário da convenção, a liderança do ILWU fez o possível nos quatro dias seguintes para reprimir ou limitar o debate sobre qualquer questão séria. A resolução para o boicote de armas a Israel foi analisada pelo Comitê de Resoluções logo após o discurso de Adam. Tive permissão para falar e argumentei:

“Os trabalhadores em todo o mundo têm todo o interesse em apoiar a luta palestina por liberdade. Nossos governantes nos EUA desindustrializaram o país, destruíram a infraestrutura e arruinaram a educação pública. Sua prioridade é gastar bilhões para sustentar seus postos avançados, como Israel, e defender seus investimentos no exterior. Eles criaram um país polarizado em linhas totalmente reacionárias — basta olhar para as próximas eleições. A única maneira de romper essa polarização é a classe trabalhadora lutar por seus próprios interesses, de forma independente e contra os capitalistas.

“É um crime que nossa liderança sindical esteja totalmente nas mãos do Joe [Biden] Genocida. Dizer aos trabalhadores que Biden é a única alternativa para a classe trabalhadora é alimentar a polarização. É hora de contra-atacar!”

Nenhum dos burocratas que compunham a maioria dos delegados queria discutir um caminho alternativo para os trabalhadores. Todas as alas da liderança do ILWU estão comprometidas com a lucratividade do fundo de pensão e com a força do exército dos EUA que a protege.

A resolução de Heyman foi repassada do Comitê de Resoluções para o plenário da convenção. Mesmo aqueles que se opunham achavam que o verdadeiro debate deveria acontecer ali. Mas a liderança adiou o debate sobre essa e todas as outras resoluções substanciais para as horas finais da convenção. (As exceções foram, é claro, as moções aprovadas para aumentos salariais para os dirigentes e um aumento na porcentagem das contribuições que as seções locais enviam para a Internacional.)

Quando líderes da Federação Internacional de Transporte (ITF), da CFMEU australiana, da MUA e de outros sindicatos de estivadores/portuários saudaram a convenção, todos elogiaram Adams, enquanto alguns também defenderam um cessar-fogo ou outras medidas para defender os palestinos. Seu mantra era “Paz é Assunto do Sindicato”. Quando o debate sobre o boicote de armas a Israel finalmente ocorreu, os delegados da ILWU que se manifestaram a favor dele, em sua maioria, ecoaram os comentários dos delegados internacionais, citando os horrores em Gaza e o perigo de uma guerra mundial.

Todos citaram a tradição “progressista” do sindicato, mas nenhum abordou os obstáculos que impedem a ação sindical. Entre os obstáculos, não apenas Adams e o restante da liderança internacional do ILWU (nenhum dos quais se pronunciou sobre o assunto), mas também a consciência predominante de que o que é bom para o imperialismo dos EUA é bom para os trabalhadores. Isso foi incutido nos membros do sindicato por anos de apoio aos Comandantes-em-Chefe do Partido Democrata. Alguns dos que se opuseram à resolução falaram abertamente em apoio a Israel. Outros insistiram que o sindicato não podia “tomar partido”. A maioria dos delegados da Local 23 em Tacoma — um centro logístico estratégico para as Forças Armadas dos EUA e onde o ILWU regularmente transporta carga militar em um píer militar exclusivo — insistiu que precisava votar “não” para preservar seu trabalho. Em contraste, todos esses delegados votaram com satisfação a favor da resolução de cessar-fogo em Gaza, que foi aprovada por unanimidade. Longe de ser um “passo na direção certa”, a resolução de cessar-fogo simplesmente permitiu que a burocracia do ILWU encobrisse sua recusa em defender os palestinos com uma retórica de “paz” sem sentido. Você procurará em vão por qualquer menção ao debate sobre o boicote de armas a Israel no relato higienizado da convenção publicado no Dispatcher de junho.

A liderança do movimento de solidariedade aos palestinos compartilha a mesma política liberal dos líderes sindicais. O Movimento da Juventude Palestina (PYM) lançou a campanha “Tirem as Máscaras da Maersk”. Reconhecendo a natureza estratégica da indústria de transporte marítimo, seu objetivo é “envergonhar” os aproveitadores que comandam a gigante dinamarquesa de transporte marítimo, forçando-a a cancelar todos os seus contratos de transporte de armas para Israel. O PYM argumenta que essa demanda é “vencível” porque o comércio de armas representa uma parcela relativamente pequena dos lucros da Maersk.

No entanto, toda a indústria de transporte marítimo globalizada depende de um forte exército dos EUA, com Israel como seu representante no Oriente Próximo. Apelos morais aos capitalistas não os farão agir contra seus interesses. A guerra em Gaza tem sido boa para os negócios — todos os transportadores estão lucrando mais porque os navios precisam contornar a África para evitar o Canal de Suez e os ataques de mísseis dos Houthis. As distâncias maiores de viagem têm sido motivo para novos aumentos de preços.

Os membros do PYM abordaram os trabalhadores para apoiar sua campanha, mas se baseando no mesmo tipo de apelo moral que dirigem à Maersk. A maioria dos meus colegas de trabalho na Local 10 está horrorizada com o genocídio e se identifica com os palestinos oprimidos. Eles entendem que são os Democratas os responsáveis por armar Israel para que possa arrasar Gaza e massacrar homens, mulheres e crianças palestinos. Mas eles são desarmados pelos traidores dos trabalhadores, que afirmam que os Democratas controlarão seu aliado israelense se a maioria dos americanos deixar claro que querem “paz”. Eles são desarmados pela liderança sindical, que proclama que o imperialismo dos EUA pode ser uma força para o bem no mundo. É precisamente o apoio deles aos governantes dos EUA que está por trás da sabotagem da liderança dos trabalhadores à luta pelas necessidades mais básicas da classe trabalhadora aqui em casa.

A probabilidade da classe trabalhadora entrar em ação para confrontar os governantes dos EUA com base em apelos morais não é maior do que a de Biden/Harris e Maersk serem convencidos a “fazer a coisa certa” pelos palestinos. A única maneira de incitar os trabalhadores à ação para libertar a Palestina é deixar claro que isso é crucial para promover seus interesses de classe às custas do inimigo comum. Isso, por sua vez, só é possível se o propósito da ação não for pressionar o imperialismo dos EUA e as gigantes do transporte marítimo a agirem com humanidade, mas sim desferir um golpe real contra eles. Qualquer esforço sério para mobilizar os trabalhadores dessa forma terá que enfrentar e expor a sabotagem da burocracia sindical pró-capitalista.

Nos portos da costa leste e do Golfo, os proprietários da Maersk enfrentam um possível confronto com a ILA. As negociações entre as empresas de transporte representados pela USMX (que inclui a Maersk) fracassaram devido à introdução de sistemas automatizados de portões pela Maersk no porto de Mobile, Alabama. Ao contrário de Willie Adams, que prometeu a Biden que a ILWU não faria greve durante as recentes negociações contratuais, o presidente da ILA, Harold Daggett, está se manifestando combativamente, ameaçando bloquear todos os portos, do Maine ao Texas, quando o contrato expirar em 30 de setembro.

Daggett não tem intenção de ameaçar os interesses fundamentais do imperialismo dos EUA, assim como Willie Adams. Mas se a ILA entrar em greve, lutarei para que o ILWU tome todas as medidas necessárias para apoiar nossos irmãos e irmãs da costa leste e do Golfo, começando, em primeira instância, pelo boicote às cargas desviadas para a costa oeste. Uma greve que feche boa parte dos portos americanos e arranque grandes ganhos das empresas de transporte contribuiria mais para a luta pela liberdade palestina do que mil protestos do tipo “Tirem as Máscaras da Maersk” ou resoluções sindicais de cessar-fogo [1].

Traduzido do original em inglês por Leo Vinicius. O original pode ser lido aqui: https://iclfi.org/pubs/wv/1182/ilwu

Nota do Tradutor

[1] Em junho de 2025 o movimento de pressão sobre a Maersk conseguiu uma vitória. A Maesrke se comprometeu a não realizar transporte para os territórios ocupados ilegalmente por Israel na Cisjordânia e a cortar laços com empresas ligadas à ocupação israelense desses territórios. Ver, por exemplo: https://www.aljazeera.com/news/2025/6/23/shipping-giant-maersk-divests-from-companies-linked-to-israeli-settlements

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