Por Jan Cenek

Acrescentei um ponto de interrogação a um verso de Carlos Drummond de Andrade no título da coluna. Mas não é exatamente sobre poesia que escrevo. Pensei em intitular a coluna como Um livro corajoso. Porque é disso que se trata aqui, uma resenha sobre um livro corajoso, que, diga-se de passagem, carrega um verso de Fernando Pessoa como título. A poesia é sempre útil quando estamos diante de situações limite. Além disso, li o livro corajoso pensando no verso de Drummond. A pergunta – a vida é uma ordem? – pressupõe duas possibilidades, a positiva e a negativa. Enfim, sem mais delongas, o livro corajoso trata de um tema difícil: suicídio. Posto isso, caro leitor, não hesite em interromper a leitura neste parágrafo, se preferir.

Albert Camus [1] cravou: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.” O escritor franco-argelino [2] sabia que “começar a pensar é começar a ser atormentado”, mas não recuou. É que um belo dia surge o “por quê?” e não há escapatória. O cenário desaba. Tudo se transforma em lassidão e assombro. O absurdo se impõe. O universo ignora homem e sua nostalgia de unidade, seu apetite de absoluto, sua fome de soluções, sua ânsia de coesão, seu desejo desvairado de clareza. Ainda Camus [3]: “o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo.” É preciso julgar se vale a pena viver uma vida finita num universo privado de luzes. Mesmo caminhando entre os escombros do cenário e tomado pela sensibilidade absurda, Camus [4] avançou na reflexão, rejeitou o suicídio e disse sim à existência: “Anteriormente tratava-se de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Agora parece, pelo contrário, que será tanto melhor vivida quanto menos sentido tiver.” Para o escritor franco-argelino, a questão era viver irreconciliado: partir da sensibilidade absurda – jamais abrir mão dela – e viver.

Tivesse elaborado a mesma reflexão no século XXI, especialmente se fosse interrompido na primeira parte do percurso, na etapa da negação; se fosse um trabalhador precarizado e não um escritor consagrado; Camus seria encaminhado a um serviço de saúde mental e, provavelmente, medicado. É que a vida foi transformada numa ordem inquestionável. É preciso viver, produzir e consumir. A indústria farmacêutica precisa vender. O capital exige trabalhadores/consumidores dóceis e produtivos. Se começar a pensar é começar a ser atormentado, por que não abrir mão do pensamento? Simples. Porque o ser humano é fundamentalmente um bicho que pensa, e é preferível morrer como um homem do que viver como uma planta! A reflexão pode levar à conclusão de que a vida não vale a pena; é raro, mas há sim o que Camus definiu como “suicídio filosófico”, um possível abrir mão da existência partindo da razão. É uma possibilidade e um risco. E viver é exatamente isso. Por outro lado, apesar do desmoronamento dos cenários e sem abrir mão da sensibilidade absurda, é possível concluir que, exatamente por isso, a vida será melhor vivida. Suponhamos que Albert Camus fosse um trabalhador desempregado tomado por pensamentos sobre o silêncio irracional do mundo e o caráter absurdo da vida, poderia ser encaminhado a um serviço de saúde mental, medicado e – é este é ponto importante – impedido de avançar na reflexão e impossibilitado de chegar, posteriormente, na rejeição do suicídio e na afirmação da vida. O trabalhador desempregado poderia ficar travado na primeira etapa do raciocínio, na fase da negação. Importante registrar: a reflexão sobre o silêncio irracional do mundo e o caráter absurdo da vida é mais importante para os romancistas do que para os trabalhadores desempregados. No caso do trabalhador do exemplo, caso decidisse dar fim na vida por conta própria, o desemprego provavelmente seria mais determinante que a reflexão filosófica. O que não depõe a favor da medicalização e da indústria farmacêutica, porque nenhuma das duas resolve questões sociais e existenciais.

Diogo de Oliveira Boccardi [5] publicou um livro corajoso e intrigante: Viver não é preciso: discursos sobre suicídio no século XXI. O verso do poeta Fernando Pessoa – “viver não é preciso” – é um achado que encaixa perfeitamente. Não há precisão nem no viver nem no morrer, especialmente para quem decide por fim na própria vida. É o que aparece em todo o livro, desde o prefácio até a conclusão, passando pela introdução e os três capítulos, que são: 1. Mais aquém ou mais além do suicídio: saber e subjetivação; 2. “Conjecturas” e “Refutações”: o suicídio segundo o Dr. Ubu; 3. O suicídio que se vive e o que se narra: casos clínicos. Boccardi mostra como o entendimento sobre o ato de se matar evoluiu até chegar na sociedade neoliberal do século XXI. O histórico não é aprofundado porque não é o objetivo do autor, mas serve para localizar as ideias, além de deixar pistas e referências interessantes para quem quiser se aprofundar. A crítica do terapeuta e pesquisador mira na medicalização e na biologização do fenômeno suicídio, que a sociedade neoliberal limitou a objeto de estudo e de intervenção para o saber médico. Por trás da manobra – encaixotamento do fenômeno suicídio na caixinha do saber médico – se esconde a demanda do capital por indivíduos adaptados, dóceis e produtivos. Só que, se é verdade que a indústria farmacêutica e o saber médico se desenvolveram intensamente nas últimas décadas; como explicar o crescimento paralelo da taxa de suicídios? A resposta é razoavelmente simples: o fenômeno suicídio é complexo e ultrapassa as possibilidades explicativas e de intervenção da indústria farmacêutica e do saber médico.

Na sociedade neoliberal o suicida é considerado um doente e um fora da lei. A ordem é viver para produzir e consumir. Se é assim, quem se mata não chega a subverter, mas descumpre um mandamento social. Corajosamente, o terapeuta e pesquisador Diogo de Oliveira Boccardi mostra como o discurso segundo o qual a vida indiscutivelmente vale a pena é socialmente construído e interessado, além de ser moralizante e limitado. A vida não é uma graça divina, indiscutível e irrecusável, ainda mais numa sociedade despedaçada pelo capital. Boccardi problematiza a abordagem sanitária e preventivista, questiona a compreensão do suicídio como fenômeno individual e obrigatoriamente patológico (às vezes atentar contra a própria vida não é a questão central, registrou, corajosamente, o pesquisador). Na sociedade neoliberal, ao contrário do que se poderia imaginar à primeira vista, até se discute o fenômeno suicídio. Mas sempre de uma perspectiva pré-determinada e patologizante, excluindo de antemão qualquer possibilidade de conceber o ato de tirar a própria vida como uma decisão possível. Boccardi problematiza o moralismo e senso comum neoliberal. O suicídio não é um fenômeno unívoco e quem se mata não é necessariamente um doente, um alienado mental. Viver não é preciso. Morrer também não. É necessário discutir o fenômeno suicídio, mas sem moralismos e mistificações que desconsideram quem desvia das normas e padrões.

O encaixotamento do fenômeno suicídio na caixinha do saber médico leva a pensar a questão de forma patologizante. Daí o emprego de termos como “contágio” e a utilização dos “fatores de risco”. Se é assim, trata-se de identificar fatores de risco e meios de prevenção, que em geral passam por confinar, conter e vigiar. As práticas e os discursos moralistas e patologizantes transformam “os sujeitos em objetos do manejo dos clínicos” [6]. Boccardi discute dois dos principais fatores de risco para suicídio referenciados pela literatura especializada – os transtornos mentais e o uso de substâncias psicoativas – de uma perspectiva teórica. Outros fatores risco – idade, gênero, desesperança, desemprego, doenças crônicas, conflitos familiares, eventos adversos na infância e na adolescência – são problematizados nos casos clínicos recriados pelo pesquisador. Destaco dois: A mulher mais bonita da quebrada e O retorno de Diógenes.

Cassiana é o nome fictício da mulher mais bonita da quebrada. Sofreu abusos sexuais do pai, do irmão e de um amigo deste. “Por ser bonita meu pai me estuprava” [7]. Fugiu de casa aos 12 anos. “Casou” com um homem quase vinte anos mais velho. Não escapou da violência, passou a sofrer com abusos praticados pelo “marido”. Pariu um menino quando tinha 15 anos e uma menina antes de completar 18 anos. Conseguiu se separar e foi morar com uma amiga aos 23 anos. Com 30 anos casou com um traficante possivelmente homossexual e interessado em manter uma relação de fachada para ocultar a própria sexualidade. Mas tempos depois se envolveu com outro homem e começou a apanhar do marido traficante. Isolada e sem rede de apoio, enforcou-se em casa, com as cordas do varal [8]: “o corpo desnudo mostrava as marcas de um espancamento recente.” Num grupo de mulheres organizado pelo serviço de saúde mental – quando se discutiam questões como autoestima, autocuidado e beleza -, a mulher mais bonita da quebrada comentou [9]: “Não quero pensar em ficar bonita, sabe? Quero ficar invisível um pouquinho…” Impossível isolar o caso de questões de gênero, do machismo, do patriarcado, do tráfico, da pobreza, do desemprego, da falta de acesso. Os limites do saber médico são evidentes no caso da mulher mais bonita da quebrada.

Oscar é o nome fictício do morador de rua de 62 anos. O título do caso clínico – O retorno de Diógenes – é uma referência ao filósofo homônimo. Oscar tinha sotaque lusitano e percorria a cidade com um carrinho de supermercado, ferramentas e dois gatos. Tirando a vontade de morrer, não havia indícios de transtornos psiquiátricos. Não atentava com violência contra a própria vida, buscava a morte se privando de comer e beber. A situação se repetia: desmaiava, era socorrido, se recuperava e se frustrava por continuar vivo. Mesmo informando que não havia nada de errado, que apenas gostaria de morrer, foi encaminhado para o serviço de saúde mental. Discutia tranquilamente com os profissionais de saúde [10]: “As pessoas dizem se preocupar comigo, mas só se preocupam que meu corpo esteja funcionando. Não me permitem ser quem sou hoje, um homem que quer morrer. Também não se permitem ser elas mesmas. Acho que as pessoas precisam mudar a importância que dão para as coisas, as regras que seguem sem pensar.” Chegou a ser encaminhado para um hospital psiquiátrico, recebeu alta e o diagnóstico de transtorno depressivo, “mas os próprios psiquiatras não estavam muito convencidos.” [11] Oscar morreu mais ou menos como Diógenes. Estava enrolado numa manta fina, atrás de um supermercado, numa manhã fria. Amigos e profissionais de saúde improvisaram um funeral para o homem que queria morrer [12]: “a impressão de todos era que Oscar havia finalmente alcançado o que por tanto tempo contemplara.” Diogo Boccardi aproximou a história do homem que queria morrer do filósofo homônimo. Já eu fiquei pensando em Camus, no Mito de Sísifo e em Oscar, que julgou que, naquele momento, que a vida não valia a pena. Era o tal “suicídio filosófico”.

Nos anos 1930, Carlos Drummond de Andrade [13] escreveu um poema marcante, Os ombros suportam o mundo:

[…]

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

Quanto mais avançava na leitura de Viver não é preciso: discursos sobre suicídio no século XXI, de Diogo Boccardi, mais me ocorriam os versos de Drummond e a sensação de que, no tempo presente, a vida é uma grande desordem. A imposição da vida como uma ordem é uma mistificação, como sabem os “delicados”. O que fazer quando os ombros não suportam o mundo? Como lidar com os delicados que preferem morrer? Com respeito e sem mistificações! Boccardi [14]: “Não há acolhimento possível sem reconhecimento da liberdade e da singularidade, sem garantia de cidadania àquilo que legitimamente pode divergir, sem respeito à alteridade. Assim, não deve surpreender que as estratégias coercitivas-compassivas não tenham logrado reduzir a incidência de suicídios.” Boccardi [15] novamente: “Deve haver solidariedade e abertura para compreender, em cada ocorrência suicida – sejam pensamentos vagos, tentativas não letais, mortes -, sua singularidade – como, singulares são as vidas”. O tema é espinhoso e difícil, mas a coragem e o humanismo de Diogo Boccardi recompensam com vantagem. A vida não é uma ordem, especialmente no tempo presente, mas ainda há livros corajosos.

Notas

[1] Albert Camus. O mito de Sísifo. 34. ed. Rio de Janeiro: Record, 2025. p. 17.

[2] Camus, op. cit., p. 19.

[3] Camus, op. cit., p. 42.

[4] Camus, op. cit., p. 67.

[5] Diogo Oliveira Boccardi. Viver não é preciso: discursos sobre suicídio no século XXI. Rio de janeiro: Via Verita, 2024.

[6] Boccardi, op. cit., p. 177.

[7] Boccardi, op. cit., p. 138.

[8] Boccardi, op. cit., 144.

[9] Boccardi, op. cit., 143.

[10] Boccardi, op. cit., 157.

[11] Boccardi, op. cit., 158.

[12] Boccardi, op. cit., 160.

[13] Carlos Drummond de Andrade. Nova reunião: 23 livros de poesia – volume 1. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009. p. 99.

[14] Boccardi, op. cit., 131.

[15] Boccardi, op. cit., 178.

2 COMENTÁRIOS

  1. Parabenizo o autor pelo excelente texto.
    “É que a vida foi transformada numa ordem inquestionável”… Mas mesmo quando questionada, este questionamento tem o potencial de vir a ser apropriada pelo capitalismo.
    Dizem que os “Simpsons” prevêem o futuro. Acho que “Futurama” também… Dos mesmos criadores de os Simpsons, em um episódio há as “cabines de suicídio”, com diversas formas e valores para realizá-lo.
    Se a morte sempre foi um setor produtivo no capitalismo, o suicídio não há de ficar de fora, especialmente porque a produtividade é condição sine qua non para sua existência… Parece contraditório, mas destruição (inclusive humana) também produz… O que me faz lembrar Legião Urbana…
    (…)Uma guerra sempre avança a tecnologia
    Mesmo sendo guerra santa, quente, morna ou fria
    Pra que exportar comida
    Se as armas dão mais lucros na exportação?

  2. “Corajosamente, o terapeuta e pesquisador Diogo de Oliveira Boccardi mostra como o discurso segundo o qual a vida indiscutivelmente vale a pena é socialmente construído e interessado, além de ser moralizante e limitado. A vida não é uma graça divina, indiscutível e irrecusável, ainda mais numa sociedade despedaçada pelo capital.”

    A perspectiva do autor parece ir ao encontro do que Karl Marx já anunciava em 1846: “Tudo o que se disse contra o suicídio gira em torno do mesmo círculo de ideias. A ele são contrapostos os desígnios da Providência, mas a própria existência do suicídio é um notório protesto contra esses desígnios ininteligíveis. Falam-nos de nossos deveres para com a sociedade, sem que, no entanto, nossos direitos em relação a essa sociedade sejam esclarecidos e efetivados, e termina-se por exaltar a façanha mil vezes maior de dominar a dor ao invés de sucumbir a ela, uma façanha tão lúgubre quanto a perspectiva que ela inaugura. Em poucas palavras, faz-se do suicídio um ato de covardia, um crime contra as leis, a sociedade e a honra.” (MARX, K. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p. 27)

    Neste sentido, a atualidade de Marx parece incontesti: Tarnau, nosso suicida, dizia nos papéis que deixou “que, não podendo mais ser útil a sua família, e sendo forçado a viver à custa de sua mulher e de seus filhos, achava que era sua obrigação privar­-se da vida para aliviá­-los dessa sobrecarga; ele recomendava suas filhas à duquesa de Angoulême; esperava, da bondade dessa princesa, que se tivesse piedade de tanta miséria”(MARX, 2006, p. 49). Neste sentido, a afirmação do autor “se fosse um trabalhador precarizado e não um escritor consagrado; Camus seria encaminhado a um serviço de saúde mental e, provavelmente, medicado. É que a vida foi transformada numa ordem inquestionável”… embora correta, é incompleta… A vida, no modo de produção capitalista só é inquestionável enquanto o trabalhador pode produzir e consumir. Não à toa a celebre frase de FHC: Aposentado é tudo vagabundo…
    E a vida passa a ser cada vez mais sob uma ótica econômica: do aborto ao aposentado…

    *** *** ***

    Um adendo:

    Interessante notar o quanto o tema morte e suicídio é um tabu inclusive “nas esquerdas” e o quanto estas “esquerdas” são contraditórias: ao mesmo tempo em que defendem o aborto, se colocam, muitas vezes, contra o suicídio…

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