Por Joshua Clover

Esclarecimento: o presente artigo foi publicado em 8 de março de 2025, às vésperas de um evento no qual o ativista de extrema-direita Charlie Kirk discursaria na Universidade de Davis, Califórnia. O autor, Joshua Clover, faleceu logo depois, em 26 de abril de 2025 — antes, portanto, do atentado que matou Kirk no dia 10 de setembro.

Há sete janeiros, Milo Yiannopoulos, um picareta de extrema-direita com uma animosidade especial contra pessoas trans, foi expulso do campus de Davis antes de uma palestra; algumas semanas depois, ele recebeu o mesmo tratamento na UC Berkeley. Entre esses dois eventos, Richard Spencer, um picareta de extrema-direita e admirador de Hitler, levou o soco que fez com que socar nazistas se tornasse uma coisa importante. Mas foi o bloqueio dos campi à sua presença no final daquele ano que o ajudou a afastar-se do palco. É assim que a resistência se parece.

Charlie Kirk é um picareta de extrema-direita que lidera a Turning Point USA [Ponto de Virada], uma organização de admiradores de Hitler com uma animosidade especial contra pessoas trans. Kirk disse recentemente, insistindo em relação às pessoas trans, que “alguém deveria ter tomado conta disso como costumávamos lidar com as coisas na década de 1950”. Ele quer dizer linchamento. As restrições da figura proeminente da TPUSA, Candace Owens, com relação ao Führer dizem respeito, vejam só, ao excesso. Ela acha que o genocídio é aceitável dentro das suas próprias fronteiras. A associação da TPUSA com os Proud Boys, um grupo de ódio oficialmente designado de “chauvinistas ocidentais”, é bem documentada; o grupo foi visto pela última vez no campus de Davis servindo como braço armado da TPUSA, ou seja, jogando spray de pimenta nos estudantes. Fotografias tiradas esta semana mostram o orador regular do TPUSA, Stephen Davis, posando com os Proud Boys muito orgulhosos que atacaram estudantes naquela noite.

A TPUSA propaga a crença de que as universidades são “uma fraude” dedicadas à doutrinação dos estudantes. Eles despendem um esforço considerável marcando professores com cuja política eles não concordam, ameaçando-os com perda de emprego e violência mais direta (com uma especial atenção para os professores não-brancos). Ou seja, são profundamente hostis à educação.

Alguns dias antes do início da primavera, Charlie Kirk está escalado para falar aqui em Davis, a convite da filial da TPUSA da própria universidade. Gary May [reitor da UC Davis], torcendo as mãos com tanta força que provavelmente vai quebrar o pulso, afirma que a universidade, uma instituição estadual, é obrigada a receber qualquer palestrante convidado por um grupo do campus. Liberdade de expressão, Primeira Emenda, mercado de ideias, você conhece o discurso.

Tal argumento não é especialmente convincente: pessoas admiráveis desafiaram todos os tipos de leis antiéticas em busca da libertação, de Rosa Parks à Atlanta Forest. Gostamos de nomear feriados em sua homenagem. Uma pessoa honrada, uma pessoa humana, uma pessoa que se preocupa com o bem-estar da comunidade, não se esconderia atrás de leis eticamente repugnantes. Será que devemos realmente imaginar que Gary May, por exemplo, liberaria um evento de recrutamento liderado por alguém reivindicando limpeza étnica ou violência abertamente eugenista? Certamente ele não o faria. E se o fez, deveria ser afastado da sua posição.

Mas vamos seguir com o experimento mental. Suponhamos um orador tão virulento defensor da supremacia branca que defendesse a posição política do atirador do supermercado de Buffalo; do atirador da Igreja Emanuel AME de Charleston; do atirador da Mesquita de Christchurch; ou do fabricante de bombas e atirador dinamarquês que matou 77 e cujo manifesto demandava a deportação de todos os muçulmanos da Europa. Todos assassinos em massa. E, como muitos estudiosos da extrema-direita destacaram, estes números não são evidentemente uma coincidência, uma série incessante de lobos solitários. Eles compartilham um projeto vinculado e mortal seguindo o mesmo roteiro. Cada um desses e muitos outros foram postos em movimento por sua própria versão da “Teoria da Grande Substituição”. Esta é a ilusão perversa que atua como princípio de coordenação do nacionalismo branco assassino: que a raça branca está sob ameaça demográfica como parte de alguma conspiração global e que os brancos devem armar-se para lutar contra as imaginárias hordas sombrias que colidem com as fronteiras da nação.

Talvez você esteja pensando: “Mas é apenas Charlie Kirk em sua camisa de botão! Ele não é um nacionalista branco! Ele diz que nem sequer sabe o que é a Teoria da Grande Substituição!” Hmmm. Aqui ele está em seu próprio podcast há um ano, alegando que os EUA estão enfrentando uma “invasão”, e que devemos armar uma milícia cidadã, “colocá-los na fronteira, e acabar com isso”. Ele insiste que existe uma grande conspiração com o objetivo de “diminuir e reduzir a população branca nos Estados Unidos. Vamos dizer isso em voz alta”.

A alegação é… evidente. É isso que Charlie Kirk é: o Amigo da Grande Substituição. E ainda assim, Gary May segue sua narrativa.

A questão é que essa narrativa é falsa. Perguntei a um amigo da Faculdade de Direito de Harvard se havia alguma jurisprudência estabelecida sobre esse assunto. Ele me indicou uma troca de ideias entre os eminentes juristas Erwin Chemerinsky e Robert Post. O primeiro, um professor de Berkeley, sustenta que o discurso de ódio é protegido pela Primeira Emenda: não se pode, por conseguinte, impedir que oradores com discursos de ódio falem numa universidade pública. Pode ser que sim.

O segundo, um ilustre professor de direito em Yale, pensa exatamente o contrário. De olho exatamente na situação que temos diante de nós, ele escreve sobre as universidades que “a menos que estejam desperdiçando seus recursos em brincadeiras e desvios, elas só podem apoiar palestrantes convidados por estudantes quando isso serve aos propósitos da universidade. E esses fins devem envolver o propósito da educação.” Charlie Kirk é uma brincadeira e um desvio, minha nova expressão favorita para idiotas fascistinhas. A posição de Post é clara: “Não existe o direito segundo a Primeira Emenda de falar num campus universitário”.

Mais uma vez, talvez sim. Não sou jurista. Mas essas pessoas são. Especialistas, inclusive, em relação a essa questão específica do Direito Constitucional. E a questão é: discordam. É uma questão controversa. Não existe uma lei estabelecida que determine o que tem de acontecer a seguir. Gary May fingir que existe, e que ele está agindo por alguma imposição legal, em vez de fazer uma escolha específica que ele poderia fazer de outra forma, constitui um ato de pura desonestidade. Autorizar Charlie Kirk não é uma obrigação; Gary May está expressando sua preferência por meio de seus atos, independentemente do que ele ou sua assessoria de imprensa digam.

O Amigo da Grande Substituição está vindo aqui em 14 de março, para recrutar em nome de uma organização que, em sua forma atual, é abertamente hostil à educação e hostil especificamente à educação dada na UC Davis. Não há defesa moral para isso. E a exigência legal… não existe. Vale a pena recordar que confrontar Yiannopoulos e Spencer iria, como foi amplamente dito na época, lhes fazer um favor, concedendo-lhes publicidade gratuita, cliques gratuitos. Sabemos agora que a decisão ética e intransigente de os expulsar do campus foi, em vez disso, parte de uma sequência que efetivamente encerrou as carreiras políticas de ambos. A história é educativa nesse sentido. Afinal, esta é uma universidade. Talvez seja a hora de dar uma lição em Charlie Kirk.

Joshua Clover (1962-2025) era professor de Inglês e Literatura Comparada na UC Davis.

Traduzido por Marco Túlio Vieira

A fotografia em destaque é de um protesto convocado por ativistas de direita exigindo a demissão de Joshua Clover da UC Davis

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