Por Jan Cenek

Para Justina

Há escritores que dizem escrever sobretudo para eles mesmos. Desconfio. Não é bem assim. Eles escrevem fundamentalmente para a posteridade. Pretendem que seus textos sobrevivam ao tempo, além de ultrapassar fronteiras e idiomas. Podem não confessar abertamente, talvez por modéstia ou medo se frustrarem, mas é por aí. Um escritor só se aproxima de algo parecido com “escrever para si mesmo” depois que venceu o tempo, além de ter ultrapassado fronteiras e idiomas. Saber que seus próprios escritos sobreviverão é um feito alcançados por poucos. Franz Kafka, por exemplo, está entre os maiores escritores do século XX, mas morreu jovem e não percebeu o tamanho e a força da própria obra. Um contraexemplo, Carlos Drummond de Andrade teve uma vida longa, tempo suficiente para perceber o tamanho e a força da própria obra. Por isso escreveu, no fim da vida, poemas memorialísticos e eróticos, como a série Boitempo e o livro O amor natural, que são o que são por serem de Drummond. Quem se interessaria por memórias e desejos de um velho? É neste ponto que um escritor que venceu o tempo se diferencia dos demais.

O romancista e ensaísta peruano Mario Vargas Llosa sabia que seus escritos haviam vencido o tempo, além de terem ultrapassado fronteiras e idiomas. Foi a impressão que tive ao ler o romance Dedico a você meu silêncio [1]. Conforme avançava na leitura, me vinha a sensação de que o romancista escreveu sobretudo para si mesmo, registrando memórias e confissões, se divertindo, como se fosse uma despedida. No epílogo a impressão se confirma. Vargas Llosa registrou que concluiu o rascunho do romance em 27 de abril de 2022, em Madri; que depois revisou o texto fazendo pequenas alterações; e que fez uma viagem ao norte do Peru (Chiclayo e Puerto Eten) para rever lugares que havia mencionado no texto. Um pequeno documentário [2] mostra a viagem do romancista pelo norte do Peru. No mesmo epílogo, Vargas Llosa afirmou que Dedico a você meu silêncio era seu último romance, registrou que ainda escreveria um ensaio sobre Sartre. Não sei se teve tempo para isso.

Dedico a você meu silêncio é a história de um crítico musical – Toño Azpilcueta –apaixonado pelo Peru e, sobretudo, apaixonado pela música criolla peruana. Toño vive em Lima com a esposa e duas filhas, ganha a vida com o dinheiro que recebe em troca dos artigos que escreve para revistas de pouca expressão. A esposa completa a renda familiar lavando e costurando roupas. Em várias passagens Mario Vargas Llosa se confunde propositalmente com Toño Azpilcueta, como se este fosse uma possibilidade não realizada daquele. Essa confusão proposital entre o autor e o personagem deixa o texto saboroso. A tese do crítico musical [3] – que o romancista às vezes parece endossar – é: “Os cortiços de Lima foram o berço da música que, três séculos após a conquista, podia ser chamada genuinamente de peruana. E nem é preciso dizer que o orgulhoso autor destas linhas a considera a mais sublime contribuição do Peru ao mundo.” Um dia Toño Azpilcueta recebe um convite para comparecer a um sarau e conhecer um jovem violonista “fora de série” vindo de Chiclayo. Lalo Mofino [4]: “fazia suspirar, lacrimejar, subir e descer diante daquela plateia de um jeito que Toño Azpiculcueta nunca tinha ouvido antes”. Vargas Llosa usa o crítico musical (Toño) e o violinista (Lalo) para falar do Peru, de Lima, de Chiclayo, da música criolla e da huachafería peruana. Mistura os dois personagens com artistas históricos, como “bardo inmortal” Felipe Pinglo Alva, o violonista Óscar Avilles e a cantora e compositora Chabuca Granda. O romancista passa também por historiadores, poetas e interpretes, como a cantora Cecilia Barrazas, que é a paixão da vida do crítico Toño Azpilcueta. Também do próprio Vargas Llosa? Não posso deixar de fazer um mexerico – chisme – literário. A cantora Cecilia Barrazas aparece também num outro excelente romance de Vargas Llosa, Travessuras da menina má [5]. Seria normal – porque a arte do romance é sobretudo jogo e brincadeira – se não fosse um detalhe: a presença da cantora no romance Travessuras da menina má parece ser muito mais um desejo do autor do que uma necessidade do texto. Cecilia Barrazas é cantora favorita do tradutor Ricardo Somurcio. Só que o personagem viveu a maior parte da vida na Europa, quase sem contato com o Peru, como podia ser fã de Barrazas? Fica ainda mais estranha a aparição da cantora no romance se lembrarmos que a história se passa num tempo em que não havia internet e a intensa circulação de informações que conhecemos atualmente.

Voltemos a Dedico a você meu silêncio. O apelo aos sentimentos – o fazer suspirar e lacrimejar – seria a principal força da música criolla nascida nos cortiços de Lima, que se espalhou posteriormente por todo o país. Toño Azpilcueta – Vargas Llosa também? – atribui valor positivo ao sentimentalismo, à huachafería, que o romancista não define exatamente o que é, mas que pode ser entendida como uma espécie de kitsch peruano, com possibilidades positivas. Para o crítico Toño Azpilcueta – Vargas Llosa também? –, todos os grandes artistas peruanos são huachafos. E não só, a huachafería – “essa grande distorção dos sentimentos e das palavras” – seria a maior contribuição cultural peruana para a humanidade [6]. A poesia de Los heraldos negros (Cesar Vallejo) seria huachafa. O violonista Lalo Mofino teria sido, apesar de não saber, a “mais exímia expressão” da huachafería. Por essa razão o crítico Toño Azpilcueta resolveu escrever a obra Lalo Mofino e a revolução silenciosa, que é um livro dentro do romance Dedico a você meu silêncio. Apenas o grande contista Julio Ramón Ribeyro teria escapado do sentimentalismo huachafo. Neste ponto autor e personagem se separam, trate-se de uma opinião de Vargas Llosa e não de Toño Azpilcueta.

Há outras passagens do romance em que se nota a presença do romancista e ensaísta Mario Vargas Llosa. A crítica a Abimael Guzmán e ao Sendero Luminoso. O mesmo ocorre com a provocação sobre a unificação da América Latina por meio da língua espanhola [7]: “a conquista e o posterior domínio da Espanha sobre a América Latina teve ao menos um benefício: o idioma espanhol, responsável pela façanha de integrar a região em sua maneira de falar e pensar. Em que outro lugar do mundo se pode atravessar de ponta a ponta um continente entendendo o que as pessoas dizem em todos os países e sendo entendido por elas?” Na sequência, Vargas Llosa alivia a provocação [8]: “Quer dizer então que o idioma espanhol e a religião católica justificam a conquista? Não, não é fácil decidir isso, meus amigos […] A verdade é que a Espanha construiu igrejas, criou universidades, gráficas, tribunais; conferiu à América Latina, desde o início da ocupação, a relevância de ser uma duplicata da Espanha nos territórios conquistados […] Foram criados vice-reinados e capitanias gerais, e também, claro, a sinistra Inquisição com seus torturadores fanáticos, tal como acontecia na Espanha.”

Assim como na afirmação de que apenas o contista Julio Ramón Ribeyro teria escapado do sentimentalismo huachafo, há uma outra passagem em que o romancista Vargas Llosa [9] demarcar posição e se afasta do personagem narrador Toño Azpilcueta, é a crítica ao Tahuantinsuyo (o império Inca): “Aqui vai outra das minhas confissões, paciente leitor: não tenho muita simpatia pelo Tahuantinsuyo, o império dos Incas […] há algo nesse passado que me incomoda: o sistema que os imperadores de Cusco criaram para tratar seus cidadãos mais rebeldes, aqueles que murmuravam contra as instituições do império e, mais tarde, poderiam se tornar seguidores de líderes dissidentes. Isso ficou conhecido como sistema dos mitimaes, o que provavelmente poderia ser traduzido do quíchua como ‘expatriados’ ou ‘desenraizados’: consistia em afastar de Cusco os descontentes de menor importância, confinando-os em regiões ou aldeias distantes onde eles, claro, se sentiam estranhos, talvez nem falassem a língua local e eram forçados a trabalhar cercados de gente que os desprezava, sabendo que aquilo nunca teria fim e que seriam enterrados ali, no meio de uma multidão desconhecida.” Um crítico musical nacionalista, como Toño Azpilcueta, não faria a mesma crítica ao império Inca; já um romancista que venceu o tempo e ultrapassou fronteiras, como Vargas Llosa, não tem porque deixar de registrar o que pensa, especialmente no seu último livro.

A provocação e a crítica pouco comuns devem ampliar a desconfiança dos peruanos em relação a Vargas Llosa. Por exemplo: Justina, a peruana a quem dedico este texto, definiu Vargas Llosa com certa ironia quando comentei o romance Dedico a você meu silêncio. Eu citei o escritor peruano, ela afirmou perguntando: “Ah, o nosso escritor, o espanhol?” É compreensível que assim seja, ainda mais num país em que se vê uma bandeira nacional em cada quarteirão. Os peruanos não digeriram o “afastamento” do escritor em relação ao seu país de origem, como se um romancista fosse obrigado a permanecer toda a vida onde nasceu. Só que o poeta peruano César Vallejo morou muitos anos na Europa e não recebe o mesmo tipo de cobrança. É o movimento da esquerda para o liberalismo que irrita em Vargas Llosa. Em defesa do romancista, vale mencionar que ele não fez nenhuma questão de esconder o que pensava, relatou sua conversão política no livro de ensaios intitulado O chamado da tribo [10].

Um liberal é capaz de escrever bons romances? Certamente. Mario Vargas Llosa é um exemplo. A arte do romance é sobretudo jogo e brincadeira. Respeitadas regras elementares da verossimilhança, vale tudo. No livro fictício – Lalo Mofino e a revolução silenciosa – que só existe dentro do romance – Dedico a você meu silêncio –, o crítico Toño Azpilcueta [11] vai da costa à selva, passando pela serra, para apresentar uma nova visão da peruanidade: as valsas, as marineras e os huainitos criariam um país de iguais. A música criolla e a huachafería eram as grandes contribuições peruanas para a cultura universal. Além de imortalizar a música do violonista Lalo Mofino, Toño Azpilcueta considera que sua interpretação da peruanidade o colocaria ombro a ombro com grandes peruanos como o poeta César Vallejo, o teórico José Carlos Mariátegui e o escritor Ricardo Palma. Considerando que a arte do romance é, sobretudo, jogo e brincadeira; levando em conta que o romance Dedico a você meu silêncio mistura personagens reais e fictícios, há uma possibilidade que poderia ter sido explorada. O que o crítico nacionalista Toño Azpilcueta diria do romancista cosmopolita Mario Vargas Llosa? O que o peruano diria do “espanhol”? Há huachafería nos romances e nos ensaios de Llosa? Seria huachafa a passagem do romancista da esquerda para o liberalismo? Ou huachafa seria justamente a aproximação inicial do romancista com a esquerda? Há huachafería na relação do romancista com o Peru e vice-versa? Llosa personagem de Llosa seria uma possibilidade interessante. Cheguei a pensar que o romancista jogaria e brincaria fazendo o crítico musical Toño Azpilcueta comentar os livros de Mario Vargas Llosa. Teria sido interessante.

Mario Vargas Llosa [12]: “o Peru é uma doença incurável, minha relação com o país é intensa, áspera, cheia da violência que caracteriza a paixão”. Os peruanos, em geral, têm restrições em relação Vargas Llosa. O romancista teria abandonado o país. Há quem diga que o melhor é ler apenas os primeiros livros de Llosa, os demais não seriam “peruanos”. Lembremos que no Peru se vê uma bandeira nacional em cada quarteirão… Detalhe. Li o romance mais famoso da “fase peruana” de Llosa: Conversa na catedral [13] não me atraiu tanto quanto Dedico a você meu silêncio e Travessuras da menina má. A relação dos peruanos com o romancista também é intensa, áspera e violenta. Há quem sustente que Vargas Llosa plagiou o escritor Oswaldo Reynoso. Há quem use a defesa que Llosa fez de Celine [14] para atacar o romancista peruano/“espanhol”: “o talento literário pode coexistir com a cegueira, a imbecilidade e os desvios políticos, cívicos e morais”. Mas a crítica mais dura, a que talvez doesse mais no romancista, por ser seca é direta, é a da minha amiga Justina. Para ela, Llosa odeia o Peru e os peruanos, ele não teria aceitado perder a eleição presidencial em 1990. Justina não esquece e não perdoa o romancista por ter chamado os peruanos de cacasenos (desprezíveis e tolos). Retruquei dizendo que pode ter sido um deslize no calor dos acontecimentos, se Llosa odiasse o Peru e os peruanos, não teria se despedido com o romance Dedico a você meu silêncio. Perguntei se ela havia lido o último livro do escritor. Não. Nem ia ler. Mas por quê? Vale a pena. Insisti. O poeta César Vallejo aparece. O teórico José Carlos Mariátegui aparece. O violonista Lalo Mofino existiu realmente? Em quem Llosa teria se baseado para criar os personagens? O crítico Toño Azpilcueta busca a peruanidade na costa, na serra e na selva. O romance elogia a cultura, o popular, o cájon e os cajonista. O “bardo inmortal” Felipe Pinglo Alva é reverenciado. O violonista Óscar Avilles também. A cantora e compositora Chabuca Granda idem. A talentosa artista Cecilia Barrazas é a grande paixão do personagem principal, talvez do próprio autor. Lima é um cartão postal, um convite para uma visita prolongada. A huachafería – esse kitsch à peruana – é um caminho para se pensar a América Latina. Eu comentava e Justina me interrompeu com sua serenidade andina: “que bom que o espanhol se despediu pedindo desculpas para o Peru!” Tive vontade de rebater. Dizer que o romance Dedico a você meu silêncio é uma declaração de amor ao Peru e aos peruanos, e não um pedido de desculpas. Mas seria deselegante da minha parte. Justina havia encerrado o assunto que ela não queria ter começado. Não convenci Justina a ler Dedico a você meu silêncio nem ela me convenceu que romancista odeia o Peru e os peruanos. Posteriormente, refletindo sobre a áspera e intensa relação de Vargas Llosa com os peruanos e destes com aquele, especialmente depois da conversa que tive com Justina, compreendi melhor a tal huachafería peruana: que dá origem a belas canções, mas pode provocar desencontros apaixonados.

Notas
[1] Mario Vargas Llosa. Dedico a você meu silêncio. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2024.
[2] Un viaje personal por Le dedico mi silencio, la última novela de Mario Vargas Llosa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qhqu4m8GGn8
[3] Llosa, 2024, op. cit., p. 17-18.
[4] Llosa, 2024, op. cit., p. 22.
[5] Mario Vargas Llosa. Travessuras da menina má. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2006.
[6] Llosa, 2024, op. cit. p. 98.
[7] Llosa, 2024, op. cit. p 153.
[8] Llosa, 2024, op. cit. p 154.
[9] Llosa, 2024, op. cit. p 162.
[10] Mario Vargas Llosa. La llamada de la tribo. Lima: Penguim, 2025.
[11] Llosa, 2024, op. cit. p 169.
[12] Martín Riepl. La “áspera y violenta” relación de Vargas Llosa con Perú, donde pasó sus últimos e intensos meses de vida. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/articles/ce3qwk9n9ego
[13] Mario Vargas Llosa. Conversa na catedral. São Paulo: Saraiva, 2006.
[14] Mario Vargas Llosa. Lós réprobos. Disponível em: https://anchaesmicasa.wordpress.com/wp-content/uploads/2011/01/los-rc3a9probos.pdf

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here