Por Juliana Antunes
Nota da autora:
O texto em questão se trata de uma versão sintética de uma comunicação, outrora apresentada na 10ª Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (ReACT), realizada em Outubro de 2025 no Rio de Janeiro. Devo destacar, além disso, que os pensamentos aqui transcritos se tratam de uma investigação em curso e, justamente no interesse de prosseguir com essa – bem como ‘passar a palavra’ – lanço tais questões ao debate.
“[…] a técnica liberta o objeto do domínio da tradição. Na medida em que multiplica a reprodução, substitui a sua existência única pela sua existência em massa. E, na medida em que permite à reprodução vir em qualquer situação ao encontro do receptor, atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos vão abalar violentamente os conteúdos da tradição – e esse abalo da tradição é o reverso da atual crise e renovação da humanidade” (Walter Benjamin, no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”)
As linhas que se seguem correspondem a uma aposta de discussão, situada na recuperação do debate benjaminiano da estetização da política e da reprodutibilidade técnica. Ademais, são também a representação de inquietações pessoais em relação ao porvir; a inquietação tem sua gênese, por sua vez, a partir de alguns recortes imagéticos, dos quais destaco os dois seguintes:


A Imagem 01 se trata de uma arte veiculada em 2024 nas redes sociais para divulgação dos atos em prol da libertação dos presos pelo 08 de Janeiro. A Imagem 02, por sua vez, se trata do fotograma de uma série de vídeos curtos que expressava a convocatória de caminhoneiros, entregadores e profissionais do agronegócio em prol da defesa de Jair Bolsonaro, já em 2025.
Existem alguns pontos que ligam as imagens em questão. O primeiro deles diz respeito a quem as gera. O outro, o que representam e, por fim, como foram geradas e circuladas.
A resposta ao primeiro aspecto é quase subentendida. As imagens em questão, pequenas amostras dentro de um mar imagético e simbólico, foram geradas no bojo da extrema-direita brasileira, mais especificamente bolsonarista. Essas imagens – e aqui responde-se também ao segundo ponto, correspondente àquilo que representam – emergem no ínterim já descrito por Walter Benjamin em relação ao fim da estetização da política: dar às massas maneiras de se representar, mas sem representar os seus ideais.
Isto posto, as imagens detêm diversas camadas simbólicas. A Imagem 01 nos traz a narrativa religiosa, através da imagem dos anjos, a força nacionalista, por meio das bandeiras do Brasil e das camisetas da seleção brasileira de futebol, a construção de um Nós vs eles, pelo atrelamento dos bolsonaristas a uma posição de povo justo e perseguido. Há de se notar, ainda, a reconstituição do mito da nação proletária, situado aqui na construção de boas nações, correspondentes aos elementos que fazem referência ao Brasil e a Israel. A Imagem 02, por sua vez, traz também a evocação de elementos nacionalistas, presentes na escolha do figurino da personagem que protagoniza o vídeo, além da representação populista, ao trazer a criação de uma persona acessível, um trabalhador qualquer que está se mobilizando a favor de Bolsonaro. Por fim, deve-se destacar na imagem, também, a construção da imagem de Bolsonaro enquanto líder, seja no discurso ou na legenda do vídeo, a partir das hashtags escolhidas.
A forma de geração dos materiais imagéticos aqui analisados – e talvez esse seja um dos pontos mais importantes da presente discussão – é o que inquieta.
Se retornamos ao cerne da teoria sobre a reprodutibilidade técnica em Walter Benjamin, temos que, muito embora a possibilidade de reproduzir uma obra de arte sempre estivesse na seara, a mediação de tal processo a partir dos recursos técnicos representaria uma libertação do objeto da tradição, abrindo brechas à implementação múltipla de sentidos ao mesmo. Ademais, ocorre a substituição do valor de culto pelo valor de exposição.
Nesse sentido, e levando em consideração a constatação também de Benjamin de que a reprodução técnica é catalizadora de mudanças na maneira como as massas recebem e consomem o produto a elas direcionado – “Quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segundo a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absolve-a em seu fluxo” [1] – temos em emergência um processo de identificação dessas com tal conteúdo. Aqui está a abertura à estetização da política: dar às massas a possibilidade de se expressar, mas não de expressar os seus ideais.
Situemo-nos no presente. Ainda que o recurso explicativo aqui esteja atrelado sobretudo à teoria de Walter Benjamin, é vital refletir que o elemento máximo de representatividade da reprodutibilidade técnica, à sua época, correspondia ao cinema. Aposto aqui, em nossa contemporaneidade, que as plataformas digitais e os recursos nelas embutidos, como a própria inteligência artificial, correspondem a novos recursos de reprodutibilidade técnica.
Mas nos orientemos, apesar da necessidade de romper com a mística que ronda a inteligência artificial, colocando-a muitas vezes em um paralelo em relação ao próprio âmago tecnológico geral, como definir o que é a I.A.? Depreende-se por inteligência artificial o uso maquínico para a simulação de atividades humanas – como o ato de compreender, resolver problemas e criar coisas novas. A ação de maior destaque da inteligência artificial nos últimos dois anos corresponde à sua capacidade de gerar – textos, imagens, vídeos e áudios – em resposta aos prompts (os comandos lançados pelo usuário). Isso, por sua vez, se dá por meio do treinamento da máquina para identificar, processar e relacionar grandes volumes de dados.
Além da capacidade da máquina em gerar conteúdo, há também a sua ação de circular esses conteúdos, pelo processo comumente nomeado algoritmização. Algoritmo se significa, preliminarmente, como o conjunto de instruções que guiam a tomada de decisões da máquina. Algoritmização, por sua vez, diz respeito à agência dominante dos algoritmos para processar dados vinculados ao nosso comportamento, às nossas preferências e às nossas informações; uma vez que esses dados são assimilados, a máquina tem o poder de agir na seleção, rankeamento e distribuição dos conteúdos a cada usuário.
Não é tarde retornar aos apontamentos de Theodor Adorno e Max Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. Os processos digitais aqui descritos são desnudados de neutralidade e, conforme descrito pelos autores referenciados na frase anterior, é inelutável a complementariedade entre “progresso” e barbárie. Mais ainda, como descrevera Herbert Marcuse, “Diante dos elementos totalitários dessa sociedade, a noção tradicional de ‘neutralidade’ não pode mais ser mantida. Tecnologia como tal não pode ser isolada do uso ao qual é submetida; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e construção das técnicas.” [2]
Uma das grandes problemáticas situadas nos recursos das plataformas digitais, doravante dos próprios recursos aqui descritos nos últimos parágrafos, corresponde à produção de representações simbólicas e fictícias da realidade, com a mínima intervenção humana. Walter Benjamin, no século passado, descrevera que tais processos levam a apenas um fim. Ao quê caminharemos hoje?
Notas:
[1] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
[2] MARCUSE, Herbert. O Homem Unidimensional: a ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Edições, 1973.




