Já anoiteceu um tanto. Vemos lá no fundo, num bar, uma luz que pisca ao som do Pablo “nos teus braços eu me sinto um rei de sangue azul…” Penso nisso… É o que resta: um bar e um abraço. Por Kena Chaves[*]
Jhony é uma criança mirrada. Um menino pequeno, magrinho, moreno de cabelos lisos e curtinhos, olhos esbugalhados e atentos. Tem por volta de 11 anos. Cheio de energia. Brinca com o irmão menor, corre atrás do cachorro, recolhe com cuidado uma e outra lata de alumínio pelo caminho. Pula pra lá e pra cá equilibrando-se entre o que restou da casa do vizinho. A família de Jhony vive desde 2007 num dos bairros que estão sendo deslocados aqui em Altamira. O início da ocupação foi entre os anos de 2002 e 2003, num terreno alagadiço às margens do igarapé Ambé, afluente do Xingu, área que pertencia à prelazia da igreja do Bispo Dom Erwin e que por isso recebe o nome de “Invasão dos Padres”. Parte do bairro, a região seca deste, foi “regularizada” pela igreja, que vendeu os terrenos a preços simbólicos para os moradores. A região alagadiça manteve-se ocupada desde então, sem regularização nem solicitação de reintegração da posse e sem intervenção do poder público.
Chegamos a Invasão dos Padres por volta das 17h30, um entardecer bonito, céu claro, tarde fresca do inverno amazônico. Tinha chovido ao longo de todo o dia e por baixo das palafitas já corria um fio d’água aqui e ali. Nas ruas estreitas ainda transitáveis – apesar da lama, buracos e poças d’água – muito lixo espalhado, poucos transeuntes, algumas crianças, que, assim como Jhony, tinham como principal distração entrar e sair das casas e escombros da vizinhança. É um cenário de guerra. Casas pelo chão, parte delas sustentando o pouco que sobrou de uma ou outra família. Banheiro pela metade. Fogão solitário na cozinha. Uma sem portas, nem janelas. Outras só o telhado. Marcas dos tratores. Algumas casas ainda inteiras com famílias morando ali e convivendo com a falta dos vizinhos, com o fim de uma parte da vida que vai sendo arrancada pelas retroescavadeiras da Norte Energia… Pensei imediatamente no rodoanel de Taipas em São Paulo, nas casas em pedaços e a intimidade das pessoas ali exposta. É um cenário parecido, adaptado à região, claro. As casas aqui são de madeira. Suspensas por vigas que tentam impedir que sejam inundadas durantes as cheias do rio. Ruas estreitas, escadinhas que levam às varandas, pontes que ligam uma casa à outra, passarelas que levam às casas que estão no fundo longe da rua, outras que levam à padaria, pro mercadinho, vão se conectando e formando um emaranhado de caminhos de madeira. As palafitas são um tipo de construção muito comum à região amazônica. Tanto pelo regime de variação do nível dos rios como pela disponibilidade de material construtivo. A madeira é abundante por aqui assim como os rios. Na precisão de ocupar, dá a palafita. E é bonita. A madeira bem tratada, ajustada uma tábua à outra com cuidado e destreza. Adereços nos cantinhos, na beira dos telhados, cercadinhos torneados nas varandas, coloridas às vezes, com pisca-pisca de natal, luzes cor neon, assim vivas com todo mundo dentro, lindas. Talvez mais lindas pra mim, que estou olhando de fora e nunca dormi numa palafita, que para quem vive toda uma vida vendo o rio andar ali por debaixo ameaçando subir a qualquer momento… sei que palafita em cidade grande é algo duro. Palafita e favela dão uma combinação precária, insalubre e dolorida. Água, esgoto, lixo, mosquito, casas apertadas…
As 18h começava a reunião entre o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e algumas famílias de atingidos. Andamos, rodamos, nos perdemos e por fim chegamos à colônia de pesca de Altamira, sediada ali no bairro, onde seria a reunião. Havia cerca de 30 pessoas: mulheres, senhores, adolescentes, crianças (entre elas o Jhony), rapazes de moto ou de bicicleta, cachorros, gatos, e nós… A reunião foi rápida. Ouvimos alguns relatos de falta de transparência, ameaças, maus tratos e propostas indecorosas de indenizações baixíssimas por parte da Norte Energia. Encaminhou-se uma pequena manifestação para o dia seguinte na sede da empresa responsável por negociar as desapropriações com a população. Ao final todos assombrados e pouco esperançosos. Aqui em Altamira todos sabemos que o pedido da Licença de Operação está previsto para meados de março. Até lá a Norte Energia precisa cumprir grande parte das condicionantes da Licença de Instalação e vai fazê-lo da forma mais perversa possível. Eles estão apertando, seu tempo encurta, a cidade explode em manifestações fragmentadas que vão sendo diluídas com dinheiro, mão pesada, ameaças… Agora que Belo Monte é um fato, com data prevista para girar a primeira turbina, as coisas estão ficando ainda mais tensas por aqui. Antes precisavam se adequar, agora querem acabar logo, assinar logo, começar logo. Dá para sentir as pressões dos tratores em todos os lugares. “Eles têm dois meses para indenizar e realocar todo mundo. Vocês acham que vão conseguir?” perguntou o rapaz do MAB. “Não”, disse um senhor de olhos cansados, pele enrugada e queimada pelo Sol. “Não, mas se eles não têm casa para me dar. Eu não tenho nada além de muita força para amaldiçoar toda aquela Belo Monte”, disse outra senhora com raiva na voz e nos gestos explosivos. “Temos que fazer como os índios que vão lá e param tudo”, disse uma garota jovem com um bebê no colo.”Eu só quero que aquele pouco dinheiro que me ofereceram quando assinei o papel venha pra minha conta pra eu ir embora daqui”, disse o pai do Jhony. “Eles garantiram que vão me levar pro bairro novo, mas tá saindo todo mundo e eu estou ficando. Dá 17 horas os bandidos já estão pulando aqui na minha casa, não dá mais pra sair na rua. Ficou vazio, ficou perigoso”, disse o presidente da associação dos pescadores.
O Jhony já estava cansado, puxando a saia da mãe, querendo jantar, querendo brincar, querendo voltar pra casa. Nós ali. Com nossa pinta de universitários bem alimentados vindos do sudeste. Com nossa alma maltratada pelos relatos e pelo cenário. Incomodados com o cheiro de peixe podre e esgoto que o bairro todo emanava. Um cheiro que foi grudando na pele. Um cheiro de morte que está presente em toda Altamira. Algo me faz pensar nas carpideiras do Valter Hugo Mãe, derramam lamentos e até sofrem por um morto que não é delas. Penso nisso… Sentimos aqui uma dor de quem observa. De quem de longe sofre mas não se responsabiliza. Tentando acreditar que esse mal não arranca nenhuma parte. Como se ao final fosse possível seguir vivendo. Sentindo o corpo ainda inteiro. Como se a mim não me estivessem amputando nada. Saio daqui e não me falta parte alguma. “Esse morto não é meu”. Esse morto não é meu? De repente um senhor perdido e meio bêbado grita lá do fundo “Eu queria dizer que paguei a associação a vida inteira e não ganhei nada desses pescadores”. Sua fala, meio fora de lugar, me traz de volta pro lugar onde estou. O rapaz do MAB responde em tom simpático “Certo, senhor, mas aí a reunião tem que ser outra”, a conversa acaba e vamos saindo aos poucos. Todos quietos. Já anoiteceu um tanto. Vemos lá no fundo, num bar, uma luz que pisca ao som do Pablo “nos teus braços eu me sinto um rei de sangue azul…” Penso nisso… É o que resta: um bar e um abraço.
[*] Kena Chaves é geógrafa, pesquisadora, vive em Altamira desde outubro de 2014.
Que lindo o texto, Kena! O cenário é triste, uma metáfora de várias lutas desiguais pelo Brasil e mundo a fora! Suas reflexões me fizeram pensar que me sinto parecida. “Esse morto não é meu”….e sigo vivendo, mas cada dia mais marcada, por que na verdade, infelizmente ele é sim! Uns pagam mais que outros, mas todos pagamos, de certa forma!
Um grande abraço e muita luz para todos aí em Altamira.
Muito triste, e olha que estou de longe só imaginando o cenario. Me remeteu também a uma favela de palafitas em São Vicente chamada México 70. Cidadezinha que tem uma cultura escrota, onde se gasta milhões por ano, milhoes, em uma encenação mega estruturada no meio do mar que fala sobre a colonização. Como se isso fosse um belo de um motivo para os moradores se orgulharem de serem frutos desse estupro português. Detalhe, atores globais enchendo o bolso de grana, grana destinada a “cultura” da cidade enquanto os moradores trabalha VOLUNTARIAMENTE pra que essa merda de evento ocorra. Lugarzinho podre esse nosso brasil, desde 1500.
Lindo texto. Conseguiu retratar bem a situação dos atingidos por barragens. Ainda esperamos que tenham tratamento digno do ser humano.
Olá Kena….sincero e contundente o seu texto…lindo, comovente e real…tão real que não acontece somente ai, mas em cada Altamira desse nosso Brasil, tão lindo e tão absurdamente desigual. Que um dia tenhamos condições de respirarmos aliviados pelo fim de situações desumanas e que nos fazem apesar da dor e do sofrimento, ainda agradecermos pelo que temos e pelo muito que somos. Um beijo com toda admiração e meus desejos de tudo de bom. Parabéns!
Preciosa narrativa de mais um episódio trágico e lamentável no qual vamos forjando nossa história. Uma nação que tortura e suplicia seus pares. Quantas Canudos mais açoitaremos em nome de um progresso irresponsável e classista. Ao ler o texto, lembrei-me de um trecho do livro de Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, que transcrevo esse excerto aqui:
“A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela que é incandescente, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos.”
Parabéns e obrigado por essa denúncia poética!