Era o dia de maior enfrentamento desde o começo do ano. Se os estudantes não conseguissem paralisar as aulas para fazer a assembleia, demonstrariam fraqueza; mas também poderia ser o dia em que veriam sua capacidade de mobilização independente de qualquer concessão da Direção. Por S., I. e G.

Sexta-feira, 13 de março, 7 horas da manhã. Estudantes estão a caminho da escola, alguns já estão presentes, o que é algo um tanto incomum, já que o costume é se atrasar para as aulas que começam às 7h30. “Apreensão” é a palavra que descreve algumas pessoas. No dia anterior, fora tirada uma assembleia estudantil junto de uma paralisação de aulas, que foram divulgadas pelo boca a boca. Uma assembleia assim só havia acontecido noutro dia porque a Direção cedeu as primeiras aulas em resposta à mobilização de um grupo 60 estudantes. Agora a Direção não dava nenhuma indicação de que isso iria acontecer novamente. As ameaças feitas anteriormente continuavam de pé e apareciam novos casos de advertências para quem repassou os relatos das últimas assembleia em suas respectivas salas de aula. Além disso, a Direção avisou a todas as salas do período da tarde e da noite suas perspectivas sobre os fatos, fazendo estudantes assinarem um documento que dizia que eles não sabiam e não concordavam com as deliberações tiradas pelos alunos da manhã.

Era o dia de maior enfrentamento desde o começo do ano, que iria mostrar de forma clara quem tinha mais força. Se os estudantes não conseguissem paralisar as aulas para fazer a assembleia, demonstrariam fraqueza que desmotivaria tentativas futuras. Por outro lado, também poderia ser o dia em que os estudantes veriam qual era a sua capacidade de mobilização independente de qualquer concessão da Direção, já que a repressão aumentara e a grande maioria dos professores participava da condenação da mobilização estudantil dentro das salas onde davam aula. Era o dia que marcava se a vitória podia estar próxima ou, se depois de tantas coisas, a derrota já estava montada.

1. Como chegamos até aqui

Deu-se que no início do ano letivo, uma medida de implantação de carteirinhas fora deliberada pela comissão administrativa do campus e anunciada pela Direção da Escola Técnica do Estado de São Paulo – a ETESP – aos representantes de sala dos segundos e terceiros anos.Tratava-se de uma possibilidade que já corria havia muitos anos, reforçada sempre com uma faixa amarela pendurada anualmente numa das fachadas de um dos prédios do campus, que dizia que a partir do primeiro semestre as carteirinhas se tornariam obrigatórias para a entrada no campus, ao qual só se mudava o ano, mas que agora dava indícios de se tornar realidade.

A ETESP se mantém entre as melhores escolas públicas e privadas no ranking do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e é tida como referência acadêmica entre as escolas do Brasil. Não se destaca, entretanto, somente pelas pontuações obtidas por quem passa por ela nos vestibulares. É também uma escola de grande tradição de esquerda, marcada historicamente por inúmeras paralisações, atos e um dinâmico e vasto movimento estudantil.

Divide o campus com a FATEC-SP [Faculdade de Tecnologia], na Av. Tiradentes, bairro do Bom Retiro, em São Paulo. E conta hoje com três períodos letivos muito diferentes politicamente entre si, que quase nunca conseguem estabelecer uma comunicação para construir conjuntamente o movimento estudantil. O ensino médio e ensino técnico integrado ao médio, do período matutino, possuem juntos quase 600 estudantes, e estão os mais envolvidos nas mobilizações estudantis; ao passo que o ensino técnico dos períodos vespertino e noturno é completamente alheio às movimentações que acontecem no campus. Assim, com esta configuração geral, quaisquer processos estudantis tendem a ocorrer principalmente no período da manhã.

Em resposta à política de implantação de carteirinhas, os estudantes do ensino médio e integrado da ETESP formaram, como de costume, uma comissão autônoma e horizontal com o intuito de dar uma resposta coletiva a esta medida. Segundo os próprios alunos, esta política significa impedir a livre circulação de pessoas em um espaço público.

Apesar das justificativas dadas pela Direção de que era para a segurança de todos, pois as carteirinhas impediriam a entrada de pessoas suspeitas, sabe-se que tal medida faz parte de uma série de políticas que quando efetivadas em outras ETECs e Federais se provaram ineficazes. Sem contar que este discurso é permeado por uma lógica elitista, racista e excludente.

Há alguns anos, uma perspectiva de maior horizontalidade e autonomia vem se construindo no movimento estudantil etespiano, o que culminou num processo de autogestão do Grêmio Estudantil Livre Bertold Brecht. Esta seria a primeira grande luta depois da formalização da autogestão e da derrota da mobilização contra a aplicação do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) em 2014.

Apesar da participação dos estudantes ter aumentado quantitativa e qualitativamente nos processos realizados pelo movimento estudantil, a burocratização da autogestão já está claramente detectada. Mas ainda que tenha se tornado um dos fatores determinantes de alguns erros, não impediu que acontecesse o processo de luta mais intenso que o movimento estudantil etespiano já vivenciou.

2. Criminalização dos estudantes: o início

Cartazes afixados na fachada do prédio Ary Torres no final de fevereiro haviam sido removidos arbitrariamente a mando da Direção, sem nenhuma justificativa plausível. Sendo assim, postou-se na página do Facebook “Jornalete da ETESP” um texto dizia que a Direção da ETESP possui um histórico de omissão diante de casos de opressões ocorridas dentro do campus, e que, quando alunos são contrários a isso, sua lógica é criminalizá-los. Que prefere silenciar os oprimidos de tal maneira a não “sujar a imagem” da melhor escola estadual do país.

Diante do texto postado, a Direção da ETESP convocou aos gritos quatro alunos para uma reunião de portas trancadas a chave, onde realizou uma série de colocações arbitrárias e criminosas aos alunos considerados culpados pelo texto, alegando que o mesmo era permeado de calúnia e difamação, e que os alunos responsáveis pela postagem seriam processados e iriam para a FEBEM [antigo nome da Fundação Casa, penitenciária para crianças e adolescentes].

As pessoas que estavam no campus e presenciaram tal fato imediatamente repudiaram o ocorrido, e logo realizaram um ato na frente da sala da Direção, com aproximadamente 60 pessoas, pedindo para que os estudantes fossem liberados. Duas viaturas da Polícia Militar foram chamadas pela Direção, que alegou que não havia nenhuma alternativa senão contatar a polícia.

Uma assembleia fora convocada para o dia seguinte (5/3), para a qual a Direção cedeu as duas primeiras aulas, e nela foi deliberado que ocorreria uma audiência pública com a finalidade de estabelecer um diálogo entre o corpo estudantil e a própria Direção para que se esclarecessem os fatos ocorridos. Caso esta não ocorresse, os estudantes organizariam uma paralisação seguida de um ato. Além disso, os alunos confirmaram a veracidade do texto postado, e que o corpo estudantil assumiria a responsabilidade pelo mesmo. A partir desta última, iniciou-se uma campanha online com a seguinte inscrição: “Eu também escrevi o texto do Jornalete”, onde os estudantes receberam apoio de diversas pessoas, entre elas alunos, ex-alunos e organizações.

A audiência aconteceu na segunda-feira seguinte, contando com a presença massiva dos alunos do ensino médio e integrado, funcionários, professores, ex-alunos e alguns pais, além de integrantes do Centro Acadêmico XXIII de Abril [da FATEC], que prestava apoio à luta dos estudantes da ETESP. Em meio a questionamentos incisivos feitos por alunos e alguns pais e mães presentes, aos quais o discurso preparado pela Direção não respondia mais, esta deixou o espaço sem que ele tivesse tido um fim satisfatório.

A Direção passou, então, a distorcer todos os fatos nas salas do técnico da tarde e noite, e por consequência os colocou contra os alunos do ensino médio e integrado. Um aluno, ao relatar em sua sala do ensino técnico a movimentação que estava acontecendo no campus e seus reais motivos, fora recriminado e ameaçado de ter seus responsáveis convocados. Após o ocorrido, todos os alunos do ensino médio e integrado foram impedidos de entrar nas salas dos técnicos para dar qualquer informe, prática frequente anteriormente. Tal atitude dificultou ainda mais a comunicação entre os períodos, que já costuma ser incrivelmente debilitada.

Durante este meio tempo, a posição de professores e funcionários se polariza entre um grupo maior que assina uma carta se posicionando contra o movimento estudantil e prestando apoio à Direção, enquanto um grupo menor mostra sinais de apoio aos estudantes. Poucos dias depois a primeira carta recebe uma resposta, assinada por alguns professores e pais, defendendo a liberdade de mobilização dos estudantes e contra a repressão sobre o movimento estudantil.

3. A resposta do movimento estudantil

Na sexta-feira da mesma semana, às 7h30 da manhã, sem que a Direção tivesse permitido, os estudantes organizaram uma assembleia na qual a linha política “por um campus livre de opressão, repressão e carteirinhas” e um ato até o Centro Paula Souza a se realizar naquele mesmo momento foram deliberados. Ao fim da assembleia, os alunos começaram a fazer barulho para chamar os estudantes para se incorporarem ao ato.

Ao chegarem ao prédio Ary Torres, este era bloqueado por funcionários da escola. Mesmo com jograis que diziam que os alunos estavam ao lado dos funcionários e professores em prol de uma real educação libertadora, relembrando também o apoio dado aos funcionários e professores que entraram em greve no ano anterior, estudantes foram impedidos de entrar ou sair do prédio.

O portão foi aberto para o Diretor, logo após o mesmo parabenizar ironicamente os alunos por terem conseguido reunir um número relativamente alto de pessoas. Indignados com as posturas assumidas pela Direção, os alunos começaram a pressionar a entrada de todos ao som da palavra de ordem “O diretor vai cair, vai cair, vai cair…”. Nisto, a comissão que se posicionava defronte o prédio alertou para que os alunos se afastassem, já que algumas pessoas estavam se machucando na frente. Quando estes se afastaram, um dos funcionários que estavam dentro do prédio quebrou acidentalmente uma das vidraças do portão.

E ainda que os seguranças tenham orientado o Diretor da ETESP a abrir o portão, este manteve sua posição autoritária. E só o abriu quando um policial militar, chamado pela própria Direção para impedir a mobilização, ordenou a sua abertura após ouvir os relatos dos alunos acerca do ocorrido. Fato um tanto irônico, diga-se de passagem! Tal como quando um feitiço volta contra seu próprio feiticeiro.

Um ex-aluno pertencente à comissão que estava logo defronte para negociar a entrada anteriormente foi acusado de ter danificado o patrimônio público, e levado à delegacia por um policial militar. Mas tamanha era a incoerência da acusação feita pela Direção da escola, que o delegado do 2º DP se recusou a acusá-lo no Boletim de Ocorrência, e o considerou testemunha do ocorrido, já que havia uma gravação em vídeo da quebra da vidraça.

Apesar do ocorrido, os estudantes decidiram em assembleia dar continuidade ao ato até o Centro Paula Souza. Bloqueando vias importantes como parte da Av. Tiradentes, os estudantes seguiram gritando em coro palavras de ordem contra a repressão e por uma educação sem catracas. Contaram com a presença de aproximadamente duzentas pessoas, entre elas alunos e ex-alunos da ETESP e da FATEC-SP.

Ao chegarem à sede do Centro Paula Souza, os estudantes se recusaram a subir alguma comissão para conversar com a superintendência, já que no ano anterior, durante as mobilizações contra a aplicação do Saresp, alguns estudantes que subiram em comissão foram recriminados pela Direção da escola. Deixaram, portanto, um documento sobre as pautas levantadas em assembleia, e um prazo para que a resposta fosse dada.

Na segunda-feira seguinte (16), responsáveis de alguns alunos que estavam presentes na manifestação e nas assembleias, os quais a Direção considerava a direção do movimento, foram convocados para uma reunião que aconteceria na quarta-feira (18/3). Na reunião em questão, a grande maioria dos responsáveis fez frente contra as atitudes tomadas pela Direção de criminalização do movimento estudantil.

O único encaminhamento realizado naquela reunião foi a criação de um espaço geral de debate, que compreendesse todo o corpo estudantil e seus responsáveis, além de funcionários, professores e a própria Direção. Há necessidade de se tomar cuidado nesse tipo de espaço em que o diálogo pode ser uma ferramenta para minimizar a radicalidade e aparelhar o movimento estudantil, já que a sua finalidade é toda em intermediar o diálogo entre os alunos e a Direção.

4. A luta continua!

É preciso revisar algumas práticas de como o processo de luta tem se dado até agora, e para isso se colocam claros alguns desafios. A autogestão do Grêmio partiu de ideais de autonomia, democracia e participação. As relações pessoais e grupos informais sempre podem vir a ser um problema em um espaço de convívio diário. Além de problemas com comunicação sobre a situação dos GTs. Como incluir perfis diferentes de estudantes nos próximos processos de luta? A articulação de movimentos partindo do ensino médio sempre foi problemática com os ensinos técnicos.

A articulação com o técnico era em parte uma função do GT de Comunicação, que, por exemplo, se tivesse sido bem feita, teria ajudado grandemente na luta contra as carteirinhas e na divulgação dos atos de repressão praticados pela Direção da escola. Pensar o movimento estudantil problematizando as facetas identitárias do multiculturalismo é algo a se fazer também, de forma que não se caia num discurso abstrato contra as opressões, que também impeça o desenvolvimento da luta estudantil como um todo.

Há de se reparar a burocratização da autogestão do Grêmio Estudantil Livre Bertold Brecht, persistindo na construção de um movimento estudantil horizontal e autônomo de fato. Há de se seguir na luta contra a repressão e o silenciamento do movimento. Há de se seguir na luta contra uma educação sem catracas.

1 COMENTÁRIO

  1. bela contribuição, S, I e G.
    gostaria de pedir a vocês (ou a algum de vocês) que fale um pouco mais, ainda que brevemente, sobre como funciona e como foi o processo que levou à auto-gestão do grêmio. Isso foi construído com companheiros de diferentes tendências políticas ou à sua revelia? E também algo sobre a burocratização da auto-gestão.

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