O homem inventou a penicilina, criou formas instantâneas de se comunicar, irrompeu uma guerra de proporções mundiais, e elevou seu conhecimento a devaneios espaciais até caminhar sobre a lua ou mandar uma sonda à Marte. Em Salvador, contudo, ainda sequer conseguimos manter fincados alicerces no chão. Por André Uzêda

Em um maio chuvoso, na Baixa do Fiscal, casas foram varridas pela força da chuva que se abateu em Salvador. Aqui, peço máxima vênia, para ser mensageiro de um fato passado — uma variante inusitada no ramo de quem pretende informar o “aqui & agora”.

Sim, mas é por uma nobre causa, minha comadre. Pois veja, em maio de 1935 — e se não me falha a boa álgebra isso indica exatos 80 anos –, a Baixa do Fiscal foi palco de uma tragédia que envolveu elementos similares aos quais, esta semana, forçaram os jornais a estampar pesarosas manchetes.

Em 1935, um deslizamento de terra levou a pique os casebres de sopapo desta comunidade que fica ali no início da Avenida Suburbana. Este limítrofe onde, para muitos, a cidade se acaba — e que, levando em consideração o caráter ambivalente do termo, não deixa de ser uma irônica verdade.

baixa fiscal

O fato é que, como tragédia ou farsa, a mesma história se repete. É a mesma cidade. O mesmo lugar. A mesma desgraça. Os quatro mortos recentes da Baixa do Fiscal (três deles da mesma família, enterrados ontem) somam-se aos outros 11 do Barro Branco e aos cinco do Marotinho para endossar a cruel estatística dos 20 mortos de uma chuva que não cessa, há 80 anos.

Neste intervalo de oito décadas, o homem inventou a penicilina, criou formas instantâneas de se comunicar, irrompeu uma guerra de proporções mundiais, e elevou seu conhecimento a devaneios espaciais até caminhar sobre a lua ou mandar uma sonda à Marte. Em Salvador, contudo, ainda sequer conseguimos manter fincados alicerces no chão. Tropeçamos na terra. Molhada.

E nossas impolutas autoridades ainda conseguem remedar estas feições estupefatas diante de temporais anunciados — ao qual repito, sem temer a redundância, são 80 anos de uma tragédia exatamente no mesmo lugar.

Ah, o que seriam destas sobrancelhas arqueadas e destes olhos girando fora da órbita se fôssemos acometidos por um infortúnio para além das nossas programadas incapacidades. Chispe pensamento ruim! Não venha que atrai.

Vamos pensar em coisas boas. Tipo, o Carnaval. Sim, conforme anunciado ontem pela briosa prefeitura, Ele (caixa alta) vai começar mais cedo. Já terá bloco na rua em janeiro, com nosso gracioso furdunço.

Em tempo: a foto [acima] que acompanha o texto é um registro da tragédia de 1935, em Salvador. Na legenda lê-se: “Na Baixa do Fiscal, o pessoal da Limpeza Pública, retirando os destroços de uma casa caída”.

20mai2015

1 COMENTÁRIO

  1. Seria a mesma desgraça se milhares de proteções de encostas não tivessem sido feitas diminuindo o noúmero de óbitos drasticamente, hoje causados muito mais por venderem casas que recebem e não obedecerem a defesa civil apesar dos inúmeros programas assistenciais que obviamente inexistiam há 80 anos.

    Antes morrer era destino, hoje é escolha. Antes eram centenas, hoje são casos isolados de quem não aceitou ajuda oficial e não saiu de casas condenadas.

    Felizmente estão realizando a retirada compulsória, algo que já deveria ter sido feito há muito tempo e que receberia condenações populistas semelhantes.

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