É a experiência individual no âmbito da auto-organização o que guia a visão de cada um de nós frente as diversas estratégias de emancipação. Por Lucas
Era uma faculdade pública de humanidades com forte presença das mais variadas tendências políticas de esquerda. O Centro de Estudantes tinha na presidência uma grande frente de partidos trotskistas e as várias “secretarias” do Centro divididas pelas demais agrupações que disputaram as eleições e tiveram a maioria dos votos. Estas secretarias funcionavam apenas como legitimação política para seus eventos partidários, já que não eram executivas. Além da presidência e das secretarias, existiam as comissões de base do Centro, que após uma grande ocupação passaram a ser reconhecidas, por assembleia, como um espaço legítimo do Centro de Estudantes no qual todos os estudantes podiam tomar parte sem ter que disputar eleições e ganhar mandatos. Isso havia ocorrido num período de auge de lutas uns 5 anos antes. Naquele auge, serviam como comissões executivas abertas que respondiam diretamente às assembleias gerais. Devido ao dinamismo da situação, diversos militantes de partidos entraram nas comissões pela pressão que as bases aplicavam ao tomar para si as tarefas executivas da assembleia. Nas comissões se expressava a enorme pluralidade política do estudantado, um ativismo composto de militantes das mais variadas agrupações além dos estudantes de base organizados por cursos ou por interesse.
Com o passar do tempo e o refluxo da mobilização, algumas agrupações foram se retirando das comissões na medida em que estas já não mais atendiam aos seus interesses. Essa dinâmica evidencia com clareza aquelas agrupações que tinham como linha política explícita o abandono dos espaços de base (para focar sua energia militante em outras atividades, em sua maioria externas à faculdade), e com menos clareza aquelas que contavam com poucos militantes, os quais diminuíam sua atividade ali pelas poucas pernas que tinham para tocar as diversas reuniões durante sua semana, priorizando suas orgânicas durante o refluxo da base estudantil. Naquele cenário de total refluxo, as comissões estavam esvaziadas, contando com bem menos da metade do número de integrantes dos anos mais agitados, contando com uma pluralidade organizacional e ideológica muito menor. Ainda estavam presentes militantes de organizações (variando entre “turistas”, que apareciam nos últimos minutos da reunião, e indivíduos que de fato estavam entre os que mais ativavam as comissões), por parte dos “não-orgânicos” havia ex-militantes de agrupações, amigos, estudantes organizados por cursos etc. (entre os quais, aqueles que acabavam aparecendo mais interessados na cerveja pós-reunião do que no trabalho organizativo).
Uma grande parte do total de integrantes das comissões eram autonomistas, muitos deles formados num laço de solidariedade criado pela resistência contra a reintegração de posse violenta de um centro cultural autogestionado no centro da cidade que ocupava um prédio da prefeitura. Entre todos era presente um grande ódio pelos partidos, especialmente aqueles que ganhavam a presidência do Centro de Estudantes. Criticavam a burocratização e o “mocionismo” das assembleias, criticavam a baixa frequência, o modo engessado com o qual eram feitas. Qual não foi o espanto quando, havendo a presidência convocado uma assembleia, alguns destes autonomistas defendiam o seu boicote, devido a uma análise desfavorável a respeito da votação de suas pautas! E então quando, havendo a assembleia dos estudantes tomado uma decisão, debatia-se a legitimidade da assembleia frente os espaços “autogestionados” dos estudantes!
Dentro da faculdade havia um grande porão ocupado no qual funcionava um centro cultural autogestionado por uma comissão de base específica. Também foi aventada a tese de que pelo fato de pessoas não vinculadas à faculdade participarem da gestão do espaço, este não estaria submetido às decisões da assembleia. O que tornava tudo ainda mais confuso, afinal, foi grande a luta para que as comissões de base fossem reconhecidas como parte integrante do Centro de Estudante, como uma forma de democratizar o Centro, de criar espaços de decisão e ação direta da base e reivindicar estes métodos como métodos próprios da luta estudantil. Uma parte do Centro que não fosse regida pela lógica eleitoral e que fosse aberta a todos os estudantes. Parecia que alguns companheiros autonomistas esgrimiam argumentos autogestionários para explicar que, na realidade, aquele espaço não respondia à assembleia como instância máxima de decisão dos estudantes, mas se tratava de propriedade da comissão que o gestionava.
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É a experiência individual no âmbito da auto-organização o que guia a visão de cada um de nós frente as diversas estratégias de emancipação, sejamos estudantes, trabalhadores, desempregados etc., diferentes setores de uma mesma classe. Por mais que tenhamos algum tipo de formação ideológica, são as experiências pessoais com outros companheiros e companheiras o que no final das contas vai balizando a visão que temos sobre como levar adiante as lutas de base e da classe. Muitas vezes, companheiras ou companheiros que têm uma visão de mundo muito diferente das nossas acabam sendo os mais próximos e os mais empenhados nas construções cotidianas, na faculdade, no local de trabalho, no bairro, nos espaços onde o cotidiano é o último critério de verdade. Da mesma forma, indivíduos com quem compartilhamos ideais podem se mostrar os menos prestativos para as tarefas do dia a dia.
O critério do dia a dia é o mais importante para um ativista de base, pois é a partir daí que se pode conhecer os limites da ação, entender os acordos mínimos que pautam as atividades levadas a cabo com companheiros de diferentes opiniões, entre militantes que estão diariamente disciplinando-se para a revolução e companheiros que nunca abriram um livro de Marx nem pensam em fazê-lo (a grande maioria da humanidade, fora das universidades). A mobilização a partir das bases pressupõe essa pluralidade de subjetividades, de formações, de interesses. E se, por um lado, o caso universitário se mostra como enviesado para uma fração pequeno-burguesa e intelectualista, fato é que os estratos mais baixos da classe trabalhadora apresentam um quadro igual no que tange à pluralidade de opiniões, formações e interesses. A igualdade política libertária em qualquer ambiente de construção de base parte de um pressuposto material e subjetivo: se trata das diferenças entre cada sujeito no que diz respeito à sua história de vida e formação subjetiva dentro da sociedade capitalista, uma consciência hegemonicamente individualista. Nestas condições, o interesse de classe não é um dado material claro em cima da mesa, mas sim uma abstração, um fenômeno comunicativo que se cria no calor da auto-organização destes sujeitos díspares dispersos pela cadeia produtiva e reprodutiva.
Nesta relação entre desiguais individuais, é apenas através dos exercícios de abstração prática e coletiva que se coloca em movimento as ações, que se chega a acordos a respeito das ações conjuntas ao nível da base. E a direção dessa abstração prática é justamente aquilo que é disputado por qualquer sujeito que tome a iniciativa de propor algo, haja visto que a ideologia individualista e imobilista funciona como default das massas nas relações sociais capitalistas. A iniciativa da auto-organização nunca é ingênua, nunca é pura, sempre está encarnada em um sujeito e seus pressupostos. Por isso, mesmo quando a auto-organização não vem impulsionada por uma organização programática, ela já é uma direção, tanto em seu conteúdo com em sua forma. Iniciativa é direção, ainda que se evite a palavra, ainda que a direção dada seja justamente a mais democrática e a mais universalizante possível, aquela que potencialize a direção como algo compartilhado e não exclusivo. Aquela que inclua e convoque os que não estão ainda organizados.
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A capacidade de uma construção dirimir diferenças e conflitos internos também é índice da fertilidade de sua direção. Aproveitemos o exemplo recente que acendeu o debate: houvesse no MPL-SP a possibilidade de expressarem-se tendências internas de forma aberta, seria possível instalar-se uma crise na qual alguns setores são acusados de “entristas” e “dissidentes”? Vista de longe, a ruptura ocorrida nesta organização poderia inclusive se parecer com uma ruptura própria de organizações operando sob o regime de centralismo democrático, confirmada a hegemonia operante de um setor que aplicou uma “virada pequeno-burguesa”, ou “autonomismo multiculturalista”.
Mas afinal, do que se trata o MPL no plano da militância? Seriam “usuários de transporte de base”? Ou mais propriamente militantes orgânicos? A primeira opção não procede, haja visto que as reuniões não são abertas a qualquer “usuário de base”. Se se tratava de uma militância orgânica, não estamos tão longe de poder classificar o MPL como uma organização reformista, onde se nucleam militantes sob o programa máximo da reforma do transporte público. Afinal, para isso serve um programa, para nuclear militantes que concordam com um mesmo projeto de sociedade a fim de potencializar suas atividades militantes, não apenas para o eleitoralismo de programas de transição ou para as ilusões autoritárias dos treinees de burocratas.
Não restam dúvidas de que a dinâmica militante do MPL teve grandes acertos, especialmente numa sociedade como a brasileira, onde a cultura militante e ativista nunca foi profundamente instalada no imaginário da classe trabalhadora. A capacidade de dar dinamismo às lutas, de construir uma pauta nevralgicamente de esquerda no decorrer da ressaca neoliberal, na decidida independência frente o projeto de conciliação petista, foram acertos que renderam os devidos frutos, principalmente a confiança da juventude e de alguns setores da classe trabalhadora que participam da cultura nacional de ojeriza à militância política, mas que têm clareza com relação às pautas econômicas mais objetivas e tomaram em estima (como direção) um tipo de agrupação que propunha uma novidade. Isso fica claro com as mobilizações do começo de 2015 em São Paulo, quando os diversos partidos e organizações tentaram mendigar com o MPL a direção dos atos. O patético da história era que, somados todos juntos, tais partidos e organizações tinham um poder de influência na massa miseravelmente menor que o MPL, o que faria com que sua participação na direção prática necessariamente equivalesse a uma burocratização ao pé da letra: delegados eleitos representando uma fração menor que ínfima da “base de usuários de transporte público”.
Um dos fatores que mais aparece nos diferentes textos publicados neste site a respeito da crise interna do MPL diz respeito à expansão do movimento-organização. Nenhuma novidade para o “circuito autonomista”. Os diferentes coletivos de afinidades e de pauta específica que conformam essa constelação são estruturalmente limitados. O próprio propósito de muitos destes coletivos não é o de organizar um número maior de ativistas, senão o de acumular formação a respeito de temas caros à esquerda e reproduzi-los para outros indivíduos e, a partir do momento em que se ganha moral no “circuito”, passar a influenciar nos demais coletivos. Não se conformam como frente de massas pois não têm qualquer tipo de organização que vá mais além da pauta específica e se estruturam quase sempre na base da informalidade, despreparados para absorver indivíduos que se aproximam por interesse ideológico sem compartilhar qualquer laço afetivo com algum militante. O desafio sempre não saudado é o de massificar os processos de auto-organização autônoma, atuar como verdadeira vanguarda: servir de exemplo para os setores menos mobilizados, não apenas no conteúdo, mas também na forma; sem atuar de forma dirigista, disputando a tapas a direção de assembleias e as presidências do que seja. Mas como fazer isso com uma quantidade diminuta de militantes, sem uma proposta de massificação organizativa que envolva a absorção de ativistas aos mecanismos de democracia direta ou a coordenação de linhas de contato com novos ativistas que se interessem pela experiência e desejam reproduzi-la em seus espaços de base? Isso no melhor dos casos, num cenário de ascenso de lutas. Mas como combater as burocracias nos diferentes espaços de organização da classe trabalhadora, se não se tem em vista ganhar porções da base para as propostas de plano de luta auto-organizada, se não se tem em vista conquistar ativistas em número mínimo para que uma panfletagem deixe de ser uma profissão de fé e passe a ser uma ferramenta de agitação efetiva?
Por mais amplo e universalista que seja um projeto de construção de base, a divergência e o conflito de ideias é um dado ineludível de qualquer ferramenta de democracia classista. Seja na composição de organizações, seja na disputa de posições dentro de uma base ampla: uma construção classista de base não pode ignorar a necessidade de constituir mecanismos para aceitar, dirimir e praticar o combate político das diferentes posições e opiniões. Além do sectarismo que evita disputas criando espaços paralelos, o risco também está nas rupturas de organizações populares que evitam (ou proíbem) tendências programáticas por tomar a classe como um coletivo homogêneo de indivíduos. Por outro lado, idealizar um purismo vanguardista congênito à auto-organização ou fechar-se nos pequenos grupos de afinidades de pautas específicas parece ter levado o autonomismo a ignorar mecanismos de massificação organizativa e a uma menor capacidade de expandir seu projeto a novos setores e a um número maior de ativistas, tendo sim colhido muitos e muitos “simpatizantes”, importantes num auge de lutas; nulos nos refluxos.
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O conceito político de autonomia é categoricamente diferente daquele de socialismo, por mais que ambos possam ser “sacos de gato” no que diz respeito aos diferentes grupos que os reivindicam. Socialismo é um conceito integral que caracteriza as trocas econômicas estabelecidas pelas relações sociais não de uma empresa, de um bairro, mas sim da totalidade da circulação econômica da sociedade. Em qualquer uma de suas acepções, o socialismo é antagônico ao capitalismo, de onde decorre também a complexa questão econômica de classificar os regimes inspirados no socialismo e os momentos revolucionários: não se trata apenas de matemática, a economia demanda uma consciência conceitual sem a qual a mera descrição e cálculo não explicam nada. Por sua vez, o autonomismo é alheio à condição do mundo à sua volta. De fato, quando foi usada por primeira vez na história da literatura grega, a palavra autonomia denominava a pequena liberdade de algumas comunidades gregas submetidas ao império ateniense em contraposição àquelas comunidades que eram integralmente submetidas (Tucídides em sua Guerra do Peloponeso). É um conceito fragmentário, idiossincrático, incapaz de oferecer uma abertura para uma totalidade social, o fim da lei do valor. Ainda que sob o nome de socialismo se encontre uma diversidade de grupos com estratégias e programas diferentes, há um piso a partir do qual essa disputa de significado pode ser feita, há uma forma de crítica e um parâmetro para avaliação e criação de juízo frente os dados materiais. Autonomismo, com sua idiossincrasia, é incapaz de ser avaliado, de ser criticado. Divide uma natureza relativista com o pós-modernismo ao se contentar com habitar frações e recusar a crítica e o pensamento de totalidade.
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A questão da autogestão, quando pensada em forma política deveria, ser muito bem separada da autogestão no campo econômico. Que um conjunto de operários se reúna de forma autônoma para decidir ações que incidam em sua condição de trabalhadores, isso pode ocorrer de forma isolada e espontânea em qualquer parte do globo terrestre. Mas a fábrica de parafusos não pode autonomamente produzir parafusos e manter sua produção no limbo, desligada da rede econômica e social. A autogestão não elimina a lei do valor, não pode dobrá-la como num programa de transição onde os trabalhadores lentamente assumem o controle dos meios de produção de um capitalismo exaurido e incapaz de reagir ao avance proletário. Exigir a gestão do transporte público por seus trabalhadores e usuários é tão plausível quanto decretar por lei o fim das demissões em pleno capitalismo. Se, por um lado, o MPL se parece a uma organização reformista por defender um programa máximo capitalista, por outro, se parece a uma organização trotskista ao acreditar que o capitalismo pode funcionar convivendo com gestões proletárias de setores estratégicos da economia. Os trotskistas ao menos podem argumentar que sua estratégia se pauta em sua análise sobre a decadência do capitalismo. A única coisa que o autonomismo teria para argumentar é sua verve pedagogista de “ganhar derrotas”, agitando as massas apenas em jornadas defensivas ao mesmo tempo em que limita seus programas máximos a reformas capitalistas que não guardam nenhuma lógica com relação à lei do valor?
Ao construir um sindicalismo combativo e classista, as organizações da quarta internacional visam dotar os sindicatos de conteúdo político que supere as lutas economicistas e avancem sobre o capitalismo pelo setor estratégico da produção. O autonomismo, ao fazer a crítica do sindicalismo como hetero-organização capitalista, se volta então para os movimentos sociais. Mas fica a dúvida: seria o objetivo dotar os movimentos sociais de conteúdos políticos que possam finalmente funcionar como vanguarda política da auto-organização genuína da classe, ou o horizonte fica na luta economicista formadora de quadros? Em que direção vamos ao fazer a opções estratégica pelos movimentos sociais? Parece haver um abandono da teoria revolucionária por parte do autonomismo, o que merece uma séria reflexão a respeito de se fazer ou não sentido considerá-lo como parte da esquerda revolucionária, se a ideia é referendar este abandono em troca de não sujar as mãos com poder.
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Como é que setores da juventude trabalhadora qualificada podem buscar que jovens trabalhadores precarizados da periferia se organizem politicamente em seus territórios como base, se a juventude qualificada ao invés de se organizar como base prefere se organizar por meio de agrupações temáticas e grupos de afinidades? Como fazer “trabalho de base” sem ativar em base nenhuma? O termo “trabalho de base” muitas vezes soa com uma conotação de direção descendente, incentivando a mobilização de base sempre a partir de uma posição externa às bases em questão. Se não somos o sindicalista que não pisa o chão da fábrica há mais de mês, podemos ser o jovem que mora no centro e vem propor um tipo de organização que não é a que ele mesmo pratica, dado que ele faz política com os amigos e não com os vizinhos, com os colegas, com aqueles que foi Deus quem escolheu.
A artificialidade das bases autonomistas se apresenta como limite estrutural para a massificação, pois não são unidades de organização entranhadas na esfera da produção e reprodução. Nos coletivos de afinidades ou de pauta exclusiva, a igualdade e a horizontalidade existe entre amigos, excluído todo o resto da classe. A massificação revolucionária da autonomia seria um processo essencialmente basista, onde as massas não se mobilizam desorganizadas, mas sim organizadas politicamente a partir de seus espaços habitados de produção e reprodução, locais de trabalho, bairros, escolas e universidades, exercendo a democracia direta, de base, com todos os conflitos que a democracia pressupõe. Conflitos dos quais o consenso parece ser uma defesa, os quais não costumam ser levados em conta quando se analisa a classe como ser homogêneo reativo e imune a qualquer clivagem ideológica no próprio processo de auto-organização. No fundo, o risco é supor que os trabalhadores não têm capacidade de por conta própria desenvolver suas ideias e contrapô-las entre si de forma política.
As fotos publicadas neste post são de Marcelo Hide / Fotos Públicas
“A iniciativa da auto-organização nunca é ingênua, nunca é pura, sempre está encarnada em um sujeito e seus pressupostos”
Já dizia Bakunin:
“Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.”
O ponto mais importante e, ao mesmo tempo, mais ignorado e/ou negado neste pensamento de Bakunin é a “NATUREZA HUMANA”. Quer às “direitas”, quer às “esquerdas” desconhecemos e fazemos desconhecer esta natureza humana, portanto, algo natural a todos os homens, mulheres, etc, brancos, negros, etc, ricos, pobres, etc… Bakunin fala não apenas aos marxistas, mas a todos nós e sobre todos nós…
É só isso.
Valeu!
PS: Já dizia o Lulu Santos:
Não existiria som
Se não houvesse o silêncio
Não haveria luz
Se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim
seguidor de Bakunin, não sei se entendi bem a relação entre a citação do Bakunin e a frase selecionada do texto.
sei que o meu texto não prima pela ordem e clareza, mas creio que com relação a isso não ficam dúvidas: entre abster-se da iniciativa para preservar a pureza e tomar partido pela auto-organização contaminada pela natureza humana, a segunda opção foi sempre a responsável pela resistência dos expropriados em todas as épocas da história humana. A primeira é apenas a expressão individualista e romântica de uma mente leitora.
Nada mais simples e ideológico que pensar uma suposta natureza humana. A natureza humana é uma segunda natureza, construida socialmente, portanto, não essencial. O homem é o único animal que não é definido por instintos, por isso, falar de natureza humana é leviano. É não reconhecer que o homem é um ser social. A fala de Bakunin é infeliz e faz coro com os dogmáticos essencialistas neoliberais que defendem a meritocracia porque a luta da natureza humana é hobbesiana, ou seja, uma luta de todos contra todos. Pura baboseira.
O interessante é que essa tendência à naturalização encontra-se muito em voga, apesar de não mais, necessariamente, sob a forma aplicada por Bakunin, atribuindo uma natureza específica à humanidade em geral, que a todos parece muito retrógrada, muito iluminista. Fala-se, no campo da esquerda em geral e, talvez com mais força, no campo libertário, mais em “naturezas”, não propiamente “humanas”, pois o humano encontra-se fragmentado, do que em “relações sociais”, ou se deduz as “relações sociais” desta ou daquela “natureza”. Portanto, vemos como, do campo libertário, sobretudo, parece se projetar uma tendência teórica centrada na busca de explicações naturalizantes para qualquer problema social. Talvez seja esse o cerne de todos os problemas atuais envolvendo a extrema-esquerda e a luta anticapitalista. Enquanto não estivermos convencidos, todos nós, os anticapitalistas, de que a natureza humana é nada mais nada menos do que uma relação social, e de que as relações sociais são mutáveis, sendo, portanto, históricas, nada restará, além das explicações naturalizantes. Enfim, já dizia Marx: “o comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores porque revoluciona os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio precedentes e porque pela primeira vez aborda conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados (K. Marx; F. Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 67)”.
“O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, NÃO FAZER PARTE DE SUA NATUREZA, e por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido (…)
Chegamos a conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo em suas funções animais – comer, beber e procriar, ou no máximo também em sua residência e no seu próprio embelezamento – enquanto que em suas funções humanas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal.
Comer, beber e procriar são, evidentemente, também funções genuinamente humanas. Mas, consideradas abstratamente, à parte do ambiente de outras atividades humanas, e convertidas em fins definitivos e exclusivos, são funções animais” (Karl Marx – Manuscrito Econômicos Filosóficos) disponível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap01.htm
Mais uma vez: “O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, NÃO FAZER PARTE DE SUA NATUREZA!…
Embora tanto Marx, quanto Bakunin, falem em natureza humana, eles não falam nem levianamente, nem de maneira secundária. Para ambos é algo que, sim, está na essência da compreensão das relações sociais, o que não significa que estas não podem determinar àquelas, que é o que na verdade acontece: uma natureza transformada, objetiva e subjetivamente, pelo homem. A compreensão que se imputa à “natureza humana” é que acaba sendo deturpada, querendo igualá-la literalmente à “natureza natural” e/ou naturezas “multifacetadas e independentes entre si” , a exemplo das justificativas para a existência dos espaços “exclusivos” segundo a “natureza” dos seus participantes…
Aos que se engajam pela autonomia na vizinhança, trabalho, ônibus, trem e rua com uma perspectiva de transformação global do mundo (felicidade universal), guardem bem esse meu conselho de 2385 anos:
“Falar abertamente é a característica própria do espírito livre, e o perigo está em não saber o momento exato para fazê-lo.” (DK 68 B 226)
Gostaria de pontuar algumas coisas:
1) Na verdade, pelo menos no coletivo do MPL de que faço parte, houve tentativas recorrentes de tornar as reuniões abertas a qualquer pessoa. Convocamos reuniões abertas, em diversas ocasiões, o que foi feito de todas as formas possíveis (ou, ao menos, de todas as formas que nos pareceram possíveis). Na maior parte das vezes, porém, poucas pessoas compareceram. E, em certos casos, ninguém compareceu. Mas reconheço que isso foi feito insuficientemente. Aliás, penso que isso deve ser retomado. Como não foi feito suficientemente, creio que acabamos nos resumindo a um grupo de militantes que se reúnem em torno de um programa. Mas a perspectiva é superar essa realidade.
2) Resumir todos os coletivos autonomistas (e os coletivos do MPL, em particular) a coletivos cujo propósito “não é o de organizar um número maior de ativistas, senão o de acumular formação a respeito de temas caros à esquerda e reproduzi-los para outros indivíduos e, a partir do momento em que se ganha moral no ‘circuito’, passar a influenciar nos demais coletivos” me parece equivocado. Não estou dizendo que isso não acontece, mas desconsiderar que existiram, e ainda existem, propostas de outro tipo é se contentar com uma parcela da verdade.
3) Sobre a questão das afinidades: acho que o texto está correto, em grande medida. Mas, novamente, sempre existe o outro lado da moeda. O meu ingresso no MPL, por exemplo, não foi mediado por qualquer laço afetivo prévio com qualquer militante. Textos publicados por uma organização, por exemplo, podem funcionar como elemento de atração (aliás, não é por outra razão que os principais meios de comunicação de massa são devidamente controlados pelos capitalistas, restringindo o campo de ação das organizações anticapitalistas). Nesse sentido, o texto considera, como elemento de atração, apenas as afinidades, ou as superestima. Acho que a questão é mais complicada, tanto no que se refere à atração de novos militantes quanto no que se refere à manutenção de uma quantidade diminuta de militantes: ora, os autonomistas são os párias de toda a extrema-esquerda, convivendo com uma oposição geral, que vai de cada tendência do stalinismo, passando por cada tendência do trotskismo, até cada tendência do anarquismo. Você pode nutrir simpatias pela impressionante trajetória do camarada Mao, ou pela trajetória trágica do camarada Gramsci… Você pode se entusiasmar pela direção invisível, ou pelo sindicalismo revolucionário… Em todos os casos, você sempre buscará (e encontrará, certamente) alguma razão para criticar e rejeitar as ideias e práticas autonomistas (tudo bem, mesmo porque os autonomistas também vão, necessariamente, criticar e rejeitar as ideias e práticas dos grupos acima mencionados). Mas como se massificar, diante de uma tal situação? Os homens fazem a história, mas não a fazem como querem, e os autonomistas inserem-se num campo de batalha onde a herança da história é o total isolamento. É certo que os movimentos autônomos não se massificarão contando com a colaboração da restante extrema-esquerda, mas, então, que fazer? Organizar, ou tentar organizar, alguma luta. Só a luta pode, em última instância, funcionar como elemento agregador e, ao mesmo tempo, como elemento de massificação. Ora, em 2013, o MPL foi a parcela da extrema-esquerda mais atrativa de todas. O que mudou, desde então? É sobre isso que se deve refletir. Nesse sentido, por que os grupos de amigos mais ou menos sectários, aos quais se reduzem, supostamente, o MPL e o autonomismo, eram atrativos em 2013, deixando de sê-lo nos anos seguintes? Novamente, o que está escrito é verdade, mas é uma parcela da verdade.
4) A meu ver, autonomia e socialismo não são conceitos “categoricamente diferentes”: a problemática da autonomia, em diversas épocas, esteve intimamente associada à problemática da reorganização das relações de produção, à problemática da superação da lei do valor, em favor de outra lei que governasse o sistema econômico e, portanto, o sistema político. A articulação do conceito de autonomia com o conceito de socialismo é não só possível como necessária. Hoje, o campo autônomo tem se afastado dessa perspectiva, creio que, de um lado, (a) por conta da difusão de um comportamento intelectual irracionalista, quer dizer, não-sistemático e avesso à sistematização, além de anticientífico, avesso a uma perspectiva que encontra o eixo para as reflexões sobre a autonomia nas questões da mais-valia e da luta de classes, bem como avesso a um conhecimento científico dos processos naturais e da relação do homem com a natureza – por ser não-sistemático e avesso à sistematização, esse comportamento intelectual repousa sob a sombra agradável do ecletismo, pretendendo articular, num único discurso, toda a tradição teórica revolucionária, com ênfase para o marxismo e o anarquismo, sem hierarquizar os seus conceitos, de modo a conferir a uns conceitos a predominância sobre os demais, e dialogando com sistemas teóricos produzidos à direita e à extrema-direita; e ao ecletismo somam-se um subjetivismo que parte de impressões subjetivas para a realização de generalizações, além de um pragmatismo totalmente desonesto, para o qual interessa dar visibilidade à versão da realidade que serve aos interesses políticos do grupo, e a esta versão apenas (trata-se do modo como a esquerda autônoma tem, de modo predominante, produzido ideologias); e, de outro, (b) por conta de outro comportamento, não intelectual mas referente às práticas desenvolvidas na luta política, que se expressa ideologicamente na necessidade de afirmar que a luta é “classista” e, ao mesmo tempo, “libertária”, além de voltada para a emancipação dos grupos sociais mais oprimidos, que o conceito de “classe” é, supostamente, incapaz de abarcar, mas que se destina, na verdade, à afirmação de uma nova burocracia (trata-se do modo como parte da esquerda autônoma tem afirmado novos burocratas).
5) Discordo que a autogestão não elimina a lei do valor. Para mim, a autogestão é, em si mesma, a negação da lei do valor. O problema é pensar e praticar a autogestão isoladamente, nos quadros de uma empresa ou num setor da economia, ou, ainda, num quadro territorial limitado, que pode variar de um bairro a uma cidade, a uma região e a uma nação inteira. O problema é, justamente, o da internacionalização da autogestão, até agora nunca alcançada. Não sei se o MPL, em geral, acredita que a autogestão do transporte, sem se expandir para a totalidade do sistema econômico, já basta. Eu faço parte do MPL e não penso assim. Lutar pela autogestão do transporte deve ser um passo da luta pela autogestão da sociedade, não apenas num país como também no mundo. E experiências isoladas e fugazes não deixam de ser significativas: poderíamos negar a importância da autogestão do transporte num bairro, por algumas semanas, por exemplo? Creio que não. O problema é que o MPL não conseguiu evoluir da revolta popular para o estímulo à difusão da autogestão, nem do transporte e nem de outras lutas, quer dizer, ele nem obteve a autogestão do transporte e nem serviu de exemplo para outros movimentos autônomos lutando por outras pautas. Serviu de exemplo para a extrema-direita, que se apropriou da tática da revolta popular. O que foi feito no meio do caminho, que levou a isso? Essa é uma pergunta-chave.
6) Também não acho que o autonomismo implica a negação do sindicalismo. Pelo contrário, acho que, no caso do transporte em particular, a luta sindical dos motoristas e demais funcionários e as lutas do usuários do tranpsorte devem ser integradas. Em certa medida, tentamos algo nesse sentido, já há algum tempo, no coletivo de que faço parte, mas os resultados não têm sido muito satisfatórios, creio que, em parte, devido à posição do sindicato, que, apesar de ser combativo em muitos momentos, tem sido, a meu ver, muito reticente quanto à nossa presença, com medo de ter a sua imagem ligada a um movimento criminalizado, talvez.
7) A prática revolucionária só existe se houver teoria revolucionária? Bem, essa é a opinião dos leninistas e afins. O autonomismo (ou, melhor, o MPL) não está dando certo e, por causa disso, vamos negar o autonomismo, em favor de outra perspectiva? Acho isso equivocado, mesmo porque, dentro do que se chama de autonomismo, existem muitas tendências, e uma delas defende uma perspectiva centrada na questão da autonomia como antítese da lei do valor. O problema é que, dentro do autonomismo, uma tendência específica tem sido vitoriosa, a que resulta da influência pós-moderna. Nesse sentido, o autonomismo não está dando certo na perspectiva “autonomia versus lei do valor”, mas, por outro lado, para a esquerda pós-moderna, o autonomismo vai muito bem, obrigado, pois o seu objetivo é o de fragmentar a luta. O sexismo a que se convencionou chamar, neste site, de feminismo excludente está indo muito bem, obrigado: ora, o seu objetivo é, justamente, o de promover um tipo de segregação social baseada no sexo. E o racismo hoje vigente na extrema-esquerda tem, por sua vez, o objetivo de promover outro tipo de segregação social, baseada na cor de pele. Temos, hoje, um sexismo invertido e um racismo invertido, atuando dentro do campo autônomo. Creio que podemos falar, sem risco de incorrer em exagero, na afirmação e na expansão de uma burocracia “autonomista” que pretende fazer as vezes de uma ditadura das minorias, que se comporta, na verdade, como uma ditadura sobre tais minorias, bem como sobre a tendência classista/anticapitalista do autonomismo. A luta interna ao campo autônomo está sendo vencida, por um sexismo e um racismo irracionalistas.
8) Acho que a questão do trabalho de base, pelo menos de um ponto de vista autonomista, deve ser posta da seguinte maneira: não se trata, ou não se deve tratar, de um trabalho de base como intervenção “externa”, mesmo porque a perspectiva do autonomismo, pelo menos do autonomismo classista/anticapitalista, nunca foi a do leninismo, para quem a teoria revolucionária, sem a qual não existe prática revolucionária, só pode vir “de fora”, do partido, que é necessariamente composto por uma vanguarda intelectual, que só pode ter uma origem social burguesa ou pequeno-burguesa etc. (O marxismo é, na verdade, por exemplo, uma mera síntese, por parte de Marx, Engels e seus seguidores, de diversas formulações teóricas e propostas políticas que já vinham sendo feitas pelos próprios trabalhadores. Aliás, o marxismo só se afirmou como hegemônico devido à derrota da Comuna de Paris e à ascensão do movimento operário na Alemanha, que deslocou o centro internacional do movimento operário para a Alemanha, dando visibilidade aos escritos vindos da Alemanha [cf. Marcos Del Roio, “O império universal e seus antípodas: a ocidentalização do mundo”, São Paulo, Ícone, 1998, p. 177-178]) Voltando ao ponto 7, acima, são os choques entre as classes, nas condições específicas de cada momento, que colocam ou não colocam uma classe em posição de ruptura com as demais. Não é a teoria revolucionária que inspira a ruptura, ou que a suscita. São condições concretas que impõem, em determinados momentos (nomeadamente, quando parece não haver alternativa, ou quando as pessoas estão fartas), a ruptura. Como eu penso que o trabalho de base deve ser? Ele deve servir para aproximar, de alguma forma, grupos políticos que tentam desenvolver alguma luta, no sentido da ruptura, com trabalhadores sem experiência ou com pouca experiência de participação política. Agora, com certeza, virá alguém afirmar que todos os trabalhadores resistem contra o capital, e essa resistência é sempre “política” (um espontaneísmo raso)… Bem, não necessariamente, pois a resistência pode ser individual, pode ser passiva, e pode, o que é mais importante, não ter a perspectiva de ir superando, progressivamente, as conquistas limitadas que podem ser enquadradas no sistema vigente. O problema de alguns autonomistas me parece ser o de negar que o trabalho de base seja fulcral, como se um grupo de pessoas minimamente experientes, no sentido da luta política, da militância, fosse, necessariamente, se afirmar como uma nova burocracia, pelo simples fato de se aproximarem de trabalhadores inseridos num local de trabalho, ou num local de moradia, propondo algum tipo de mobilização de base ou de formação política (é, na verdade, uma posição um tanto elitista, que apresenta os trabalhadores, nos seus locais de trabalho e moradia, como incapazes de alcançar o protagonismo na luta, através do trabalho de base, pois existem os tais militantes por perto, roubando-lhes todo o protagonismo e castrando-lhes toda a iniciativa). Ora, o problema não é esse. A formação política oferecida pelas organizações de esquerda, e a transmissão de experiências acumuladas pelos lutadores, não castra a independência dos trabalhadores, nem lhes rouba o protagonismo. Serve, pelo contrário, de estímulo à solidariedade e à consciência de classe, e ao avanço dos trabalhadores, no sentido da organização e da militância políticas, mesmo que essa formação e transmissão de experiências seja realizada pela extrema-esquerda leninista e afim (mesmo porque, caso contrário, nenhum autonomista teria vindo, originalmente, do campo leninista e afim). O problema é quando as esquerdas burocráticas, depois de mobilizarem e (sim, vou usar este termo, me apedrejem) politizarem os trabalhadores, convertem-se em fator de desmobilização e de despolitização desses mesmos trabalhadores. E é isso que a esquerda autonomista, de caráter classista/anticapitalista, tem criticado, há muito tempo. Um partido pode ser um fator de mobilização e politização? Sim. Um sindicato? Também. Um movimento social? Idem. Mas também podem fazer o contrário. O que deve diferenciar os autonomistas dos leninistas e afins é a noção de que não é a sua militância, e a sua intervenção, digamos assim, pedagógica, que suscita qualquer luta. São os golpes desferidos pelas classes capitalistas, aos quais os trabalhadores, necessariamente, têm de resistir, de uma forma ou de outra. E, por outro lado, de que a sua intervenção não vai deixar os pobres trabalhadores sob uma tutela insuperável. Diante disso, os autonomistas devem atuar como a corrente da extrema-esquerda que promove a autogestão das lutas, que apoia as tendências, no interior de cada luta, que mais avançam, no sentido da superação das burocracias de esquerda e no sentido da democratização e da massificação do enfrentamento ao capital. Trata-se de, no campo das lutas dos trabalhadores, reforçar a tendência mais radical, de ruptura com o capitalismo e com as relações hierárquicas que reproduzem as relações capitalistas. Certo de que o comentário é longo, mas de que, por outro lado, as soluções para os problemas atuais não podem esbarrar em limites de caracteres, paro por aqui.
Fagner, tomarei um ponto específico da tua resposta para dar dinâmica ao debate.
“7) A prática revolucionária só existe se houver teoria revolucionária? Bem, essa é a opinião dos leninistas e afins. O autonomismo (ou, melhor, o MPL) não está dando certo e, por causa disso, vamos negar o autonomismo, em favor de outra perspectiva?”
Bem, primeiramente, eu parto do princípio de que o autonomismo sequer chega a ser “uma perspectiva” no sentido que você coloca. O autonomismo não tem um corpo claro de teoria nem de práticas. Creio que o que está realmente em jogo não é “abandonar o autonomismo” para adotar outra coisa, senão algo como “do que será feito o autonomismo”. A divisão entre um autonomismo classista e outro liberal multiculturalista expressa muito bem a forma laxa como dentro do autonomismo podem coexistir coisas tão distintas, e o problema que isso trás à organização dos militantes autonomistas.
Uma teoria revolucionária serve justamente para unir o hoje com o amanhã, e para aglutinar os companheiros que compartilham essa estratégia. Não há prática revolucionária sem teoria revolucionária e vice versa. Prática revolucionária feita sem teoria é voluntarismo e ansiedade. Se trata aqui de ter a clareza a respeito de se queremos identificar-nos com a esquerda revolucionária ou não; não é o caso de tirar o mérito dos lutadores sociais que nunca se colocaram como objetivo a revolução, apenas de saber o que guia o autonomismo, quais são as coordenadas que os militantes seguem. Sem uma clareza a respeito das práticas se torna fácil que um militante se frustre com o tempo, que acabe preferindo outras correntes que tem mais clareza a respeito do que fazem [por outro lado, o autonomismo também acaba oferecendo espaço para pessoas que não tem um grande compromisso e por isso se sentem confortáveis com a liberdade individual de organizações sem estrutura].
Faço questão aqui de me referir aos militantes de base, não “à classe trabalhadora” como boa parte dos textos deste site. Sinto que existe um enorme e extremamente acertado acúmulo de análises e debates aqui a respeito da classe e suas relações com a exploração, com partidos e movimentos e etc. O que eu sinto falta as vezes é de mais debate à respeito da militância de base. Creio que isso tem a ver com uma tradição que tenta sempre não isolar-se do resto da classe na forma de agrupação, por isso também a ênfase nos movimentos sociais. O problema é que isso acaba simplesmente ignorando algo que ocorre na realidade, que são as dinâmicas militantes no nível dos grupos mais ativos. Algo que o leninismo sempre pautou [de forma paranoica e autoritária, talvez típica da sociedade russa de seus dias]. Considero um erro tentar diferenciar-se do leninismo apenas evitando esse tipo de temática ou ignorando suas complexidades e tarefas. Talvez se eu conhecesse um pouco mais por dentro eu teria outra opinião, mas da forma como eu vejo, essa forma híbrida esquisita que o MPL tem, entre uma agrupação política e uma frente de luta, talvez seja também um resultado de questões não superadas à respeito das formas de organização da militância autonomista.
Parte deste contexto certamente também é o fato de que pouco a pouco os movimentos sociais vão se tornando mais parecidos com agrupações políticas tradicionais, quando não sindicais.
Lucas,
Eu concordo que, dentro do que se chama de autonomismo, não existe uma base teórica consolidada. Esse é o ideal, pois, havendo uma base teórica consolidada, a guiar a ação, as formulações táticas e estratégicas das organizações são potencializadas, potencializando-se, por conseguinte, as lutas sociais. Contudo, por um lado, não é isso que, no fundo, aglutina militantes, e, por outro, a existência de uma base teórica consolidada não constitui qualquer garantia contra erros de formulação tática e estratégica, e um conjunto de organizações bem equipadas teoricamente pode fracassar tanto quanto um conjunto de organizações mal equipadas teoricamente.
Pensar que uma base teórica consolidada é o elemento aglutinador de militantes é pensar que a ideologia é capaz de suscitar alguma prática, é pensar que, combinando ideologia revolucionária e proletariado, temos, como resultado, como síntese, a revolução proletária. A prática revolucionária dar-se-ia, supostamente, então, conforme a ideologia revolucionária, o que significa, colocado de outro modo, que, sem uma base teórica consolidada, não pode existir prática revolucionária. No entanto, não é preciso que haja teoria revolucionária, para que haja prática revolucionária.
Em primeiro lugar, eu acho que qualquer base teórica, qualquer ideologia, enfim, é incapaz de suscitar qualquer prática. Quando teorias, quando ideologias, emanam diretamente da prática, elas se confundem com a prática. Quando teorias, ideologias, não emanam diretamente da prática, conseguimos perceber, mesmo que tardiamente, uma defasagem entre representação e realidade. Mas, na verdade, é a própria prática, e não teorias ou ideologias, que dá este ou aquele conteúdo à luta. Fosse de outro modo, bastaria que fizéssemos chegar aos trabalhadores os nossos textos, ou os textos produzidos pelos revolucionários do passado, para que eles saíssem às ruas, tomassem as fábricas, criassem comunas agrícolas, tomassem o controle da produção e, por fim, derrubassem o Estado. Interessa, no entanto, definir qual prática, especificamente, dá este ou aquele conteúdo à luta.
Não existe, no campo autônomo, é verdade, um esforço sistemático de teorização e de formulação tática e estratégica. Trata-se de uma deficiência. Isso não significa, porém, que o autonomismo não seja uma “perspectiva” de ação. Toda prática se expressa ideologicamente e toda ideologia sempre é um corpo sistematizado de ideias, mesmo que não pareça e mesmo que tais ideias sejam sistematizadas de modo incoerente, como ocorre com relação ao autonomismo.
Sendo assim, em segundo lugar, o que aglutina os trabalhadores não é a teoria mas a articulação entre, de um lado, demandas proletárias e, de outro, um quadro no qual as classes capitalistas não são capazes de incorporar tais demandas, de modo que não reste alternativa aos trabalhadores, senão a luta. Esse quadro pode ser local. Na verdade, geralmente é local, e é por isso que estouram lutas, localmente, aqui e ali. Se estamos falando em luta de classes, devemos ter em mente que é o choque entre as classes que suscita qualquer luta. No entanto, de um ponto de vista gramsciano, o que inibe a resposta revolucionária é a hegemonia ideológica das classes dominantes, ao passo que, do ponto de vista de certo estruturalismo, o que inibe a resposta revolucionária é, por diversas razões, a “superestrutura”. Mas, na verdade, o que inibe tal resposta é o fato de que, pela incorporação das demandas dos trabalhadores, sempre combinada à repressão, as classes dominantes conseguem prendê-los na teia de relações sociais que reforçam o capitalismo. Em certos momentos, porém, as classes dominantes perdem o controle da situação, e, em outros momentos ainda, isso ocorre numa dimensão que transcende o plano local. Nesses casos, a necessidade de participar ativamente desse tipo de luta se verifica em vários lugares, e o poder das classes dominantes é desafiado nacionalmente.
O grande erro das esquerdas é pensar que os refluxos se devem à orientação teórica, ou ideológica, deste ou daquele grupo, e os próprios autonomistas incorrem nesse erro. Os refluxos, no entanto, se devem à capacidade das classes capitalistas de incorporarem as demandas dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que dirigem a repressão àqueles grupos de militantes cujas demandas não podem ser incorporadas. Por outro lado, a incapacidade das organizações de esquerda de se massificarem deve-se a outros fatores.
Eu acho que defender a autonomia, hoje, é defender que as organizações devem: 1) incluir demandas proletárias que respondam adequadamente aos golpes vindos das classes capitalistas, de modo que os trabalhadores reconheçam os seus interesses nas palavras de ordem e nas reivindicações apresentadas; 2) incluir formas de participação não enquadradas em formas de organização burocráticas e doutrinárias; 3) valorizar a espontaneidade e a criatividade dos trabalhadores, mas sem coibir a crítica aberta, mesmo que sejam os próprios trabalhadores, em sua espontaneidade e criatividade, o alvo da crítica; 4) zelar pela solidariedade de classe, em oposição a outros tipos de solidariedade; 5) incluir uma luta contra opressões específicas, de gênero, de raça etc., mas sem que essa luta se converta num fator de desagregação da solidariedade de classe; 6) lutar pelo aumento da incorporação de valor (tempo de trabalho) na força de trabalho, mas sem permitir que as classes capitalistas compensem a maior incorporação de valor na força de trabalho com uma incorporação maior ainda de valor no capital, pelo recurso à mais-valia relativa, o que reforça o poder capitalista no interior das empresas; 7) lutar contra a canalização das demandas proletárias para dentro do Estado, quer pela via do Parlamento, quer pela via do Executivo, procedimento mediante o qual os trabalhadores perdem, de uma forma ou de outra, o controle da própria luta, o que reforça o poder capitalista no âmbito do Estado; 8) transcender o nível local e nacional, desenvolvendo a solidariedade de classe por sobre as fronteiras estatais.
Mas isso é como eu acho que as coisas devem ser. É certo que outros autonomistas pensam a autonomia de modo diferente, ou pensam que a etapa preliminar desse tipo de autonomia é a luta contra “todas as opressões”, de um modo que, a meu ver, vai de encontro àquilo que eu concebo por autonomia. Me refiro, logicamente, à tendência pós-moderna/multiculturalista que se difunde, hoje, no meio autônomo, concebendo a formação de novas elites como um progresso, no sentido da autonomia do proletariado, ou afirmando-o demagogicamente.
Enfim, não é uma base teórica consolidada que aglutina os trabalhadores, massificando as lutas. Se o critério fosse esse, os partidos de extrema-esquerda e outras organizações, mais “claros” em seus esquemas, seriam organizações de massa. PSOL, PSTU, PCB, PCO etc. são, no entanto, organizações minúsculas. Por outro lado, organizações que pretendem criar um verdadeiro partido revolucionário, quer marxista, quer anarquista, também são minúsculas. Uns provariam o quanto são organizações de massa se tivessem êxitos eleitorais mais notáveis. Outros provariam o quanto são organizações de massa se tivessem tivessem êxito no assalto ou na derrubada do Estado. Todos, incluindo o MPL, atraem militantes, por causa das ações que organizam. Mas o tipo de atração que o MPL exerceu, em 2013… As organizações citadas acima não exercem. Creio que o MPL exerceu esse tipo de atração por ter sido quem pautou uma demanda de interesse da classe trabalhadora; porque as classes capitalistas, na atual organização do transporte coletivo, no atual modelo de financiamento do transporte coletivo, não eram capazes de incorporar essa demanda; e porque outras organizações de esquerda não davam a devida atenção ao problema.
Por fim, discordo que, dentro do autonomismo, o multiculturalismo coexistiu com o classismo porque o autonomismo é “laxo”: ambos coexistiram porque havia uma base de concordância mínima. Todos eram autonomistas, de certa maneira, mas nem todos eram autonomistas da mesma maneira. Quando ficou claro que existe uma grande diferença entre o que defendiam, essencialmente, uns e outros, o campo autônomo rompeu-se.
Fagner,
Creio que existem 2 níveis de discussão aqui. Sobre as massas e os trabalhadores, os programas de fato não costumam ser o que os aglutina ou os mobiliza, ao menos não num momento como o atual. Mas temos exemplos de momentos históricos em nosso continente onde o socialismo foi sim um polo aglutinador e de mobilização de massas. Está, é claro, relacionado a um contexto histórico onde o socialismo era uma realidade palpável, ou seja, alternativa à sociedade capitalista, mesmo com todos os defeitos dos regimes: a possibilidade de implantar um socialismo em uma versão local realmente colocava massas de alguns países em movimento, penso especificamente no Chile e na Argentina dos anos 60′ e 70′. Não acho que o ideal seria “reatualizar” esse momento, algo muito pouco dialético, mas como dado histórico sabemos que as massas podem sim estar mais próximas ou mais afastadas das alternativas programáticas ao capitalismo, elas não são naturalmente alheias a um programa de sociedade.
No nível da militância, eu acredito que há sim uma divisão de fundo que se não é exatamente “teórica”, é ao menos ligada às tradições políticas, que historicamente estão vinculadas tanto à prática quanto à teoria. As teorias são capazes de formular práticas não a partir do vácuo, mas no sentido em que elas organizam e sistematizam práticas com uma intencionalidade. Da mesma forma, uma prática pode ser revolucionária apenas na medida em que ela tem intenção. Uma prática revolucionária sem intenção (revolucionária) ou teoria (revolucionária) é uma contradição que facilmente cai numa espécie de revolução coca-cola, auto-elogiando-se sem uma finalidade que não seja ela mesma. Os black-blocs são um exemplo de prática radical que fica na esfera do espetáculo e que tem por finalidade a si mesma. Não tenho dúvidas de que quebrar coisas será parte das práticas efetuadas durante uma verdadeira revolução, mas isso não faz do quebra-quebra dos black blocs uma prática revolucionária.
Talvez entraríamos num debate já próximo à filosofia se vamos aprofundar sobre em que sentidos a teoria e a prática devem confundir-se mas também diferenciar-se. A formação política é importante para que os trabalhadores de hoje possam nutrir-se da história da classe e dos métodos de luta dela, para entender como certas práticas e métodos transcendem os objetivos diretos de cada caso.
Ler, estudar e debater é algo que grupos de estudo bíblico também fazem e não é uma prática revolucionária se não contar com um conteúdo abertamente crítico. A leitura de textos revolucionários não causa a revolução de forma abstrata, ela provoca efeitos nos indivíduos e nas suas atuações coletivas, não se distancia da esfera mais ampla da educação. A formação e a auto-formação política em si mesmas já são prática revolucionária que só existe a partir do momento em que existe algo para ser lido (ou algum pensamento a ser debatido. Tanto texto como pensamento podem ser sobre algo material, uma prática, um evento, ou algum tópico mais abstrato). Como você bem diz, isso não é garantia de nada, mas tampouco se trata de algo que possa ser ignorado. Espalhar textos esperando que sejam lidos é fantasioso e messiânico, dogmático se pensamos que os textos serão entendidos exatamente como nós os entendemos. Mas não é possível avançar para um momento ofensivo se a própria classe trabalhadora, por meio de indivíduos muito materiais, de carne e osso, não tomam para si a tarefa de formar-se e propor os caminhos locais que levam a um destino coletivo e universal, em direção a algo que ainda não existe e por isso só pode ser vislumbrado como abstração. Isso não se faz com textos iluminados, isso se faz com formação coletiva, com debates de pequenos grupos onde o texto serve apenas de apoio, mas sem ele não há piso comum. E quanto mais frágil o piso comum, mais provável a ruptura.
Você mesmo já escreveu em outro texto a respeito da necessidade de que o autonomismo se reproduza não apenas com convocatórias de manifestações, mas como forma de auto-organização dos trabalhadores. E se o MPL merece muito mérito por tirar o Brasil da letargia lulista, cabe já o balanço organizativo e desde maio de 2014, com o texto sobre o limite da tática da revolta popular, desde então quase todas as avaliações sobre o pós-2013 do MPL tem sido bastante complicadas, mostrando vários obstáculos para esse processo de reprodução organizativa. Creio que ambos estamos aqui também tentando pensar isso, fazer teoria, para buscar formas de se avançar e superar (não para “abandonar e ir por outro lado”) nesse processo, digamos assim, reprodutivo das práticas e organizações do autonomismo. Eu acredito que o rompimento de setores do MPL, como toda crise, tem um lado positivo e um negativo. O lado positivo é o lugar comum de que novas coisas podem surgir… O lado negativo, ao meu ver, é que justamente devido à forma híbrida da organização, essa ruptura representa uma desorganização deste setor classista que integrava a organização. Não apenas uma ruptura política, como por exemplo deixar de construir uma frente de lutas, mas uma ruptura organizativa de algo que tinha anos de acúmulo. E outro indício negativo é que não se tratou de algo que se exauriu, algo que foi “encerrado” de forma política, mas sim de uma ruptura militante, por mais que alguns membros façam essa leitura teórica no momento de desvincular-se, é claramente uma leitura individual e não coletiva, um (necessário, creio) ato militante e não uma construção coletiva de leitura [ao menos foi assim que a coisa foi expressa no âmbito público, em SP e na BA, a partir da somatória de diferentes cartas de desvinculação assinadas por uma, duas ou três pessoas, em diferentes momentos. Eram individuais por mais que apontassem para a mesma direção].
Outra questão que eu levanto a respeito da reprodutividade do MPL é se ele realmente foi capaz de oferecer-se como exemplo a ser seguido, ou se a partir de 2013 foram outras as formas de organização que acabaram “capitalizando” a mobilização generalizada. Eu acredito que existem ganhos mais além do que poderia ser contabilizado, especialmente no que diz respeito ao imaginário social; e no entanto, sem militância é capaz que não houvesse junho de 2013, se não houvesse um grupo militante fazendo trabalho de base e organizando manifestações há anos (sem dúvida “algo” ocorreria mesmo sem o MPL, mas considerando que 2014 foi ano de Copa e sua correspondente repressão desmedida, talvez a explosão do consenso lulista tardasse um ou dois anos mais, ou talvez aparecesse de outras formas mais próximas à direita, haja visto o potencial acumulado que a extrema-direita hoje demonstra). As vezes me parece que o autonomismo sofre muito de seu próprio veneno, quando critica os aparelhos partidários e suas lógicas de seita religiosa, muitos autonomistas terminam substituindo o proselitismo partidário por uma soberba sectária, internalizando a lógica de seita, como se nós não tivéssemos nenhuma mensagem, nada de importante para dizer à população, já que 1) ou ela já o sabe secretamente; 2) ou o próprio ato de defender nossa visão das coisas representa um ato autoritário que supõe a posse de uma verdade absoluta. Ou seja, ou possuímos uma verdade tão verdadeira que não faz falta nenhuma anunciá-la, ou todos somo tão idiotas que seria um crime pensar que somos menos idiotas que os demais. Em ambos casos o que se consegue é evitar o debate e o conflito de ideias. Obviamente que estou esboçando aqui um estereotipo do senso comum, mas se o faço é porque me parece que ele deve ser abertamente combatido, e combater isso é uma prática que requer discurso e “teoria”, um discurso com um conteúdo que vá mais além do senso comum. Anunciar coisas também é uma prática, especialmente quando sabemos que essa anunciação causa efeitos e reações.
Tudo isso tem a ver com a crítica que na minha opinião o autonomismo deve fazer aos elementos mais reacionários que simpatizam com as organizações a-partidárias, os quais formaram um setor não menor dos simpatizantes que o MPL ganhou em 2013. Essa crítica teria o valor de impulsar os demais elementos (e possivelmente os criticados também) a tomarem posição na questão da auto-organização, superando a tática de abster-se dos espaços de disputa onde os partidos dogmáticos estão presentes para darem o passo de atuar ali sabendo que os problemas dos partidos dogmáticos não se combate entregando a eles a liberdade para aparelharem tudo, mas sim auto-organizando-se e pressionando pela base. Mas para pressionar pela base é necessário estar disposto a debater e entrar em conflito, e eventualmente formar-se para poder responder ao discurso cristalizado e repetitivo dos dogmáticos. Isso não se faz por meio de consensos, nem evitando todo o contato com os grupos organizados de forma tradicional, muito pelo contrário.
A outra opção é que o autonomismo seja apenas mais uma designação laxa como “esquerda”. Escamotear as diferenças de fundo sem marcar as posições é uma estratégia que facilmente dá margens para o oportunismo e para as políticas mais reacionárias, como bem estamos vendo nas diferentes “frentes de esquerda” que estão tentando ser construídas nesse exato momento no Brasil. Devem haver concordâncias mínimas, mas com a clareza de quem são as partes concordantes, algo que parece estar ocorrendo agora apenas como resultado de uma crise destas mesmas concordâncias.