“Se aproveitar da ignorância e miséria alheia é o pior mal que há no mundo, e só há três tipos que fazem isso; o homem do governo, o fundador de religião e os banqueiros! Nosso mestre ao contrário de fundar religião, quer refundar o amor!” Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros
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– Hum! – Fez Teotônio para Alexandra – Estou tão acabado, precisamos encontrar um lugar para descansar. Temos algum dinheiro que poderá ajudar.
Teotônio imaginava que as ruas que levavam ao seu destino profético estivessem cheias de gente alegre. Mas não foi isso o que pode contemplar. As pessoas passavam sérias e atarefadas. Na Praça da Sé diante da estátua imponente de Paulo de Tarso andavam rapidamente e maquinalmente moças e velhas igualmente aborrecidas. Teotônio tinha certeza de que deveria começar a reunião dos discípulos, mas aí, ao dar uma espiada na catedral, reconheceu que naquele momento o sopro divino que o guiava talvez não o ajudasse. Teotônio dirigiu-se ao primeiro vagabundo com que deparou, perguntando-lhe se não queria ser salvo. O mendigo a quem Teotônio tinha feito a pergunta nada respondeu, e tampouco os outros vagabundos, aos quais Teotônio então passou a contar sobre as maravilhas do reino dos céus. Todos se puseram a rir, assegurando que nunca ninguém por ali experimentará droga tão potente.
De repente, enquanto todos riam animadamente, aproximou-se um homem que, com um traje social longe da elegância, trazia nas mãos uma bíblia gasta.
– Aceita a palavra de Deus? – Perguntou o estranho.
– E quem é o portador? – Redarguiu Alexandra.
– Sou… – Respondeu o homem encabulado – Sou eu mesmo!
– E não tem vergonha de blasfemar? – Perguntou Alexandra – Não reconhece o filho de Deus?
– Claro que reconheço! – Disse o homem acreditando tratar-se do outro messias e não do nosso.
– Então segue-me! – Exclamou Teotônio.
– Claro, apenas pegue esse folheto! – Disse o homem e continuou – Gostaria de visitar nossa igreja à noite? Temos o culto das bênçãos e vitórias hoje!
– E me diga uma coisa – Redarguiu Teotônio – Nesse tal culto de bênçãos e vitória tem comida?
– Comida… só espiritual! –Disse o homem com olhar de certa ternura.
– Então, não nos interessa! – Respondeu Alexandra na mais viva expressão de desinteresse.
– Irmão, nos convide para cear hoje em tua casa e Deus estará contigo! – Calmamente falou Teotônio fitando os olhos do homem e por fim perguntou – Qual teu nome?
– Mathias!
– Matheus nos leve convosco à sua casa e Deus o abençoará! – Continuou Teotônio.
– Meu nome é Mathias não Matheus! – Falou o homem desconfiado do estranho autoconvite do messias – E como vou convidá-los para minha casa se nem os conheço!
– Não disse que reconhecia o filho do homem? Então qual é a dúvida? – Respondeu Alexandra sem muita paciência.
– A caridade é a perfeição meu irmão! – Emendou Teotônio.
Mathias – ou Matheus – viu-se obrigado a dar razão ao messias no que respeitava à natureza da fé cristã. Como nem Teotônio nem Alexandra pareciam figuras ameaçadoras e, observando-os mais de perto, via-se uma estranha chama brilhar em seus olhos, Mathias resolveu levá-los para seu pequeno apartamento que ficava na rua do gasômetro no Brás e lá, lhes servir algo de comer… valia tudo para salvar aquelas almas.
Mathias, como todos tinham que admitir, era um homem de uns trinta e poucos anos até formoso, com olhos luminosos e envolventes, e lábios grossos, fartamente carnudos. Não sei dizer se os seus cabelos, que sabia pentear com esmero e tenacidade ensopando-o de gel, eram negros ou castanhos, lembro-me apenas do fato estranho de que se tornavam sempre mais escuros, quanto mais tempo se olhava para eles. De estatura mediana, ombros largos, o homem era a personificação da negritude graciosa, sobretudo quando se encontrava com pessoas amáveis e gentis como os nossos dois heróis.
Omitirei, entretanto, os pormenores daquela tarde, acrescentando somente que a companheira de Mathias, chata como Xantipha, achou excêntricos e incabíveis aqueles dois loucos em sua casa. E, assim sendo, anoitecia quando os três amigos se puseram a caminho do gigantesco templo que atualmente se encontra na avenida Celso Garcia. Em determinado momento, sem saber como, Mathias deixou escapar a menção ao seu batismo nas águas do rio de Mairiporã.
– Ah, que feliz és! – Exclamou Teotônio – Todo aquele que crê e for batizado em meu nome será salvo!
Mathias, mais uma vez profundamente confuso, quis afastar-se e mesmo romper com os dois malucos. No entanto, pensando com mais tranquilidade, refreou o impulso e, dominando a confusão, lembrou-se que duas almas o faria ganhar, segundo o pastor, duas pedras na coroa de vida eterna. E, é claro que, com aquela cândida ingenuidade, esse discípulo de Teotônio, já se via pelas ruas de ouro reluzente do Paraíso carregando sobre a cabeça sua coroa.
– Tem razão, querido irmão, creio que está fazendo referência direta ao Ser mais bondoso que já existiu na face da terra. É tolice não conseguir entender que fala em nome do verdadeiro filho de Deus. Por isso, irmão, todos irão ficar maravilhados pelo seu profundo conhecimento das escrituras… – Fez Mathias com um ar mais alegre do que o de início.
– É claro que eu falo no nome verdadeiro! – Com humildade dizia Teotônio.
– E que bom Mathias que entendeu esse mistério! – Terminou Alexandra.
A essas palavras, ambos – Teotônio e Alexandra – deixaram tranquilo o recém-amigo que mergulhava em profundas reflexões. Mathias talvez tivesse bons motivos para prever patéticos desenlaces e infelicidades parvas no culto; o temperamento e a inclinação espontânea e caótica dos dois vagabundos pareciam, efetivamente, dar ensejo a tais problemas.
Como sabemos, Alexandra era a personificação da valentia e bondade, sobretudo quando se encontrava em ambientes opressivos. Diante de tantas características singulares herdado, talvez, por um passado nunca resolvido, pouco se notava que sua formação tenha sido a de uma aristocrática em plena república. O hipotético leitor já a conhece e talvez tenha refletido sobre tais características. Além disso, Alexandra sem dúvida lera as “Confissões” de Agostinho e algo de Thomaz de Aquino, a quem, diga-se de passagem, detestava; tendo, em seguida, esquecido quase tudo o que aqueles livros continham. Cantava e atingia muitas notas com uma perfeição peculiar, sua extensão vocal atingia a do soprano absoluto, o que indicava que desde muito cedo fez aulas de música e com gente muito talentosa.
Se, os ouvidos retrocederam, segundo aquele filósofo alemão, o alcance de nossa visão também. É bem verdade que, aos olhos da maioria, a intrigante Alexandra nem existisse, mas convenhamos que a existência para este pessoal não passa de uma simples coisa mediada. Em primeiro lugar, esperam que por ser mulher, nossa heroína resigne-se ao fardo maternal, aceite o papel como num transe hipnótico, suspire profundamente, sorria para tirar fotos, e, de quando em quando, mostre gostar da submissão patética, demonstrando, assim, o mais alto grau de felicidade servil. Aliás parece não haver outro sinônimo para a felicidade, hoje em dia, senão a servidão. Não obstante, para felicidade de Alexandra seria imprescindível que trabalhasse de acordo com as regras do nosso século, aceitando viver nos fins de semana e rezando para que nos infindáveis anos houvesse feriados.
Alexandra intuitivamente sabia que nossos queridos cidadãos, se tivessem sorte, descontados os anos escolares que consistem numa preparação para o martírio, trabalhavam em média 28,610,820 horas ao longo de sua vida e folgavam 9,085,440 horas. Significando, assim, que menos de 30% da vida é de fato vivida, o resto é trabalho. Para nossa heroína tal fato não é apenas deselegante com quem nasceu para viver, era também criminoso para quem nasceu para ser livre. Muito pior que as regras de São Jerônimo, a condenação divina é tida como bênção e defendida por muitos.
Por sua vez, esse primeiro discípulo de Teotônio – Mathias ou Matheus – era alegre e sua única preocupação era chegar à Glória, motivo pelo qual não havia nada que apreciasse mais do que falar de pecado e arrependimento. Tudo o que fosse para cumprir a sua missão de pescador de almas despertava sua emoção; nunca ele suspirava de cansaço, a não ser nos dias em que encontrava um desses materialistas históricos que impediam seu passeio pelas interpretações malucas da bíblia inventadas somente no século XX.
Desculpe hipotético leitor, mas aqui preciso me intrometer um pouco: não haverá dúvidas que uma das coisas mais bizarras já ocorridas na história do cristianismo se deva a um erro de interpretação cometido no século XX. Irmãos sequiosos pela renovação do morno e tedioso protestantismo, ao lerem os atos dos apóstolos, interpretaram a festa de pentecostes como um ritual de língua angelical. O que diz lá nos atos? Diz que em determinado momento os apóstolos começaram a falar línguas estranhas. O que eram as línguas estranhas? Ora, simplesmente línguas de povos diferentes que viviam em Roma. Como nossos irmãos interpretaram? Como línguas de anjos, ou seja, gritos espasmódicos que invadem a alma e na qual o Espírito Santo se manifesta. Esse erro interpretativo foi aquilo que gerou as igrejas neopentecostais. E era uma dessas igrejas – igrejas não, templo faraônico – que seria visitada por nosso messias. Nesse instante, Teotônio olhava com certa curiosidade para o amplo espaço daquela construção faraônica, tão fugaz e invasora, que mais parecia algo de extraterreno.
Ao entrar naquele imponente e opressivo templo, Teotônio, excitado, foi tomado de uma doce e indescritível alegria, naturalmente olhava aquela multidão de miseráveis com certo carinho. Com a imagem da leviandade diante dos olhos, sentou-se numa cadeira estofada e fez um profundo silêncio que, de certo modo, descreviam o seu estado d’alma. Suas intenções ou ações com aquele silêncio era um mistério mesmo para Alexandra cuja afinidade eletiva era a mais sincera. Embora, alegre, nosso messias não conseguia se sentir confortável naquele ambiente artificial e cheio de luzes.
Mathias não pôde deixar de se preocupar quando viu os hábitos estranhos e profundamente lacônicos de Teotônio. Pusera-se a tentar apresentar os dois amigos ao povo da igreja, mas toda tentativa foi vã; tanto Teotônio quanto Alexandra não estavam interessados sequer de sair do lugar que lhes fora arranjado. Emocionado, no entanto, Mathias sentiu o coração disparar quando, ao olhar para a porta central, o pastor Waldomiro Macedo adentrou imponente o recinto, vestido com um terno de belo corte e com uma barba longa e patriarcal, compunha seu figurino um chapéu de boiadeiro. Amável, gracioso como sempre na sua grosseria, nas palavras e em todo o seu jeito de ser. “Meu querido pastor!”, suspirou Mathias do fundo de sua alma, quando o próprio Waldomiro Macedo, o amado Macedo, lhe deu a mão desejando-lhe a paz do Senhor.
Este fitou-o com olhos interessados e a seguir viu que do lado de Mathias estavam novas ovelhas. Sob olhos de admiração subiu ao púlpito. “Esse homem é um santo!”, ouvia-se de um lado, “Olha como é humilde!”, ouvia-se de outro. Por outro lado, Teotônio em vez de dedicar a atenção ao culto, aos hinos, aos clamores e pedidos, ou de sentir aquele frêmito consolador que envolve as almas dos desesperados num desses espaços apelativos, não conseguia desviar o extraviado pensamento da falsidade daquele espetáculo carregado de intencionalidade; ao mesmo tempo buscava entender como em dois mil e tantos anos tudo tinha se resumido àquilo que, com todo sacrifício que havia dedicado, pudessem falar mais de satanás e de bênçãos que não eram outras que sinônimo de dinheiro.
Nesse momento, Alexandra, foi até o bebedouro e olhando para o nada deixou derramar mais água no chão do que a sanidade permitia. Com um vozeirão trovejou em pensamentos: “Saco, que lugar mais pavoroso, como pode conquistar tanta gente? Hum… também, para quem não teve nada na vida qualquer gota de possibilidade é um oceano de sentido!” – e assim pensando, arrastou-se até seu lugar novamente sob olhares temerosos de Mathias que preocupado não sabia o que poderia advir daquela nobre mulher.
Nesse preciso instante, porém, apagaram-se as luzes principais do templo e a cruz com o neon horripilante, agora, parecia mais candente; o teclado que executava melodias leves e descabidas, agora, tornava-se mais singelo em alguns momentos e, noutros, desfilava acordes mais pesados todas as vezes que o nome do Satanás era apregoado. Todos fecharam os olhos, menos, obviamente, nosso herói e Alexandra que desconfiavam demasiadamente da armação. Os obreiros, dentre os quais, Mathias, começaram uma oração laudatoriamente repetitiva enquanto mulheres e homens entravam em transe e batiam pés e palmas dando em seguida gritos espasmódicos. Era real para a maioria; não para Teotônio, Alexandra ou o pastor Waldomiro Macedo. Juntaram-se assim dois obreiros para impor as mãos sob as cabeças de Teotônio e Alexandra, entretanto, ambos não deixaram e foram cercados por mais de seis. Diziam que aquela resistência de ambos era coisa do Satanás.
Entretanto, Teotônio, prestes a acertar um pontapé num daqueles obreiros, foi impedido por Mathias que viu toda a cena e interferiu os outros dizendo-os para que não agarrassem o filho de Deus e o derrubassem. O mesmo foi feito por Alexandra que nervosa gritava um “Não” lírico em soprano alto que, ao invés de atrapalhar, mais ajudava na sessão psicológica de transe e hipnose. Isso fez com que caísse uma senhora nervosa, desmaiando em seguida e, berrando “ela é minha – ela é minha”, alguns miseráveis que sofriam da mesma idiossincrasia tombaram ao ter suas cabeças balançadas por aqueles obreiros. Waldomiro Macedo, que despejara todo o seu frasquinho de óleo ungido, disse em voz baixa para um dos obreiros ao seu lado:
– Mas que ousadia daqueles dois, não fecharam os olhos e se negaram a ser ungidos pelos obreiros!
– Só podem estar com Satanás! – Redarguiu o obreiro.
Teotônio e Alexandra não entendiam aquela violência gratuita, nem o que estava lhes acontecendo. Nosso messias com as faces rubras de despeito e ojeriza, não conseguia encontrar uma explicação senão a da mais legitima ignorância e falta de zelo com o Outro. Mathias notou o constrangimento do filho do homem. Aproximou-se amavelmente e disse-lhe:
– Bem, Teotônio, acalme-se. Estava dali e percebi que desde o início da sessão, das bênçãos e vitórias, vocês estão desconfortáveis. Inclinando-se para o chão, e resistindo a imposição das mãos santas dos obreiros despertam a desconfiança geral de que são ímpios. Deixem que façam uma oração por vocês…
– Como ousa dizer isso para o filho do homem – Interferiu Alexandra – Não disse que reconhecia o filho de Deus? E, agora, o trata como um cão! Quem pensa que é para recomendar orações a Teotônio… não só as mãos de seu pastor estão sujas, como também, são utilizadas para induzir esses miseráveis ao mais fundo do poço moral. Se aproveitar da ignorância e miséria alheia é o pior mal que há no mundo, e só há três tipos que fazem isso; o homem do governo, o fundador de religião e os banqueiros! Nosso mestre ao contrário de fundar religião, quer refundar o amor!
– Mas, o que está dizendo? – Perguntou espantado Mathias – O único Cristo é Jesus!
– E ele está bem na sua frente, só um estúpido não sabe que Teotônio é Jesus! – Disse Alexandra com um riso nos lábios – Hi! Hi! Hi! Mas, é claro… todos são tolos! Jesus voltou… claro que não como vocês queriam… mas voltou e está aqui!
– Não diga isso! Isso é blasfêmia! – Interferiu com sincero espanto Mathias.
– Os fariseus diziam a mesma coisa sobre ele a dois mil anos atrás! – Redarguiu Alexandra.
O bondoso Teotônio Cristo levou a mão ao peito. Descobriu que aqueles miseráveis seguiam homens cujo único deus de fato que adoravam era Mamon. Sentindo-se no inferno, Teotônio já não se contentava em ficar passivo ante tanta hipocrisia e humilhação humana – o tumulto serenara, a calma fora restabelecida porque o pastor Waldomiro Macedo iniciaria a pregação. Ao mesmo passo, Teotônio assegurava para si que suas palavras seriam como o mais eficiente bálsamo consolador para uma gente ameaçada por forças tão torpes e imundas. E ali se estabeleceu o duelo do século cujas consequências catastróficas teriam o alcance universalmente válido da ignorância e do bandeiritismo, mas isso fica para o próximo capítulo.
As fotografias que ilustram o artigo são de autoria do projeto SP Invisível.