Trata-se de simplesmente “dar um susto” no governo provisório e de demarcar posição, somente. Um susto, só isso. Porque o Estado deve, precisa estar em pleno funcionamento quando de um possível retorno do PT à presidência. Por Passa Palavra
Há formas e formas de luta. Algumas colocam diretamente em questão problemas centrais para o funcionamento de uma sociedade baseada na exploração e na opressão. Outras garantem um pequeno fôlego nas agruras do dia a dia, ou alguma melhoria nas condições de exploração e opressão para tornar a vida menos insuportável. Há, ainda, as que, mesmo garantindo melhorias imediatas, aprofundam o enredamento nas malhas de opressão e exploração. Em exemplos extremos, há o corpo mole e há a greve; há o atestado falso e a ocupação do local de trabalho; há o morar de favor e a ocupação de terras para construção de casas; há o parente que trabalha no SUS e consegue vaga fácil e há a ocupação das secretarias de saúde; há o luto individual pela perda dos filhos para a polícia e há os pneus queimados e os gritos por justiça.
Nada disto é novo. Nos tempos do cativeiro, por exemplo, muitas táticas foram empregues pelos sujeitos escravizados para conseguir vantagens imediatas numa relação de trabalho onde a negociação era interditada pela própria natureza autoritária do sistema escravista; ao sujeito escravizado, enquanto tal, cumpria obedecer fielmente toda e qualquer ordem, jamais questioná-las. Uma das formas de lutas empregues pelos negros escravizados foi a fuga. Mas não romantizemos: a fuga para quilombos, comunidades que pressupunham a ruptura com a relação escravista e a construção de outro modelo de sociedade, não era a mais usual, tampouco as insurreições de sujeitos escravizados. Muito mais disseminada era uma modalidade de fuga que, neste artigo, chamaremos de fuga reivindicatória: o sujeito escravizado sumia por alguns dias ou semanas e retornava ao cativeiro; embora sua recaptura fosse muito comum, era também comum seu retorno voluntário, como quem diz: “ou você, senhor, cede ao que te peço, ou saiba que posso fugir e nunca mais voltar. Já mostrei que sei fugir, então dê o que te peço”. Os motivos das fugas eram os mais variados: mudança de feitores, fuga por alguma irritação causada ao senhor, redução do valor da alforria, melhores condições de trabalho, redução da intensidade do trabalho, aumento das horas de folga, estabelecimento de dias sem trabalho, retomada de costumes anteriormente estabelecidos entre senhor e escravos, tudo isto e muito mais estava em pauta na fuga-susto, usada inclusive para participar de festejos a que o senhor proibisse a frequência de seus cativos e para reunir-se a entes queridos de que haviam sido separados pelas práticas intimidatórias e separatistas do mercado de cativos.
Se resgatamos estas histórias, é por vermos a proliferação, desde a queda de Dilma Rousseff, e a consequente ascensão de Michel Temer à presidência (pois na vice-presidência ele já estava) e o novo loteamento dos ministérios (muitos ocupados agora por antigos ministros de Dilma, numa curiosa dança das cadeiras), de uma curiosa tática de luta: a ocupação-susto. Já são vários escritórios estaduais do Ministério da Cultura (MinC) e do Sistema Único de Saúde (SUS) ocupados país afora, e sua pauta é ampla (ver, por exemplo, aqui): primeiramente fora Temer, depois o combate ao corte de recursos e de direitos, ao arrocho econômico, à extinção do MinC e sua incorporação no Ministério da Educação (MEC)… Chamamos todas elas de ocupações-susto porque, curiosamente, a prática não corresponde nem de longe ao nível de radicalidade discursiva. Fala-se que o presidente em exercício é ilegítimo, que não há diálogo com ele — mas a intensidade da luta não equivale ao que se diz. Trata-se de dar um susto no homem, nada além disso.
Mas não sejamos injustos. Em qualquer conflito social as táticas de luta não são aquelas que desejamos ou gostaríamos, mas sim, e sempre, aquelas que se tem à mão. O recente sucesso das ocupações das escolas paulistas, ainda fresco na memória coletiva, parecia apontar um caminho viável para as lutas contra o “pacote de maldades” do governo Temer. A diferença entre as ocupações dos secundaristas e as ocupações-susto, entretanto, é enorme. Sua semelhança é apenas uma aparência.
No caso das ocupações de escolas, havia problemas imediatos e facilmente perceptíveis: a implementação da reorganização escolar com fechamento de escolas, num primeiro momento, e a falta de merenda, num segundo. Tais problemas eram percebidos por aqueles diretamente afetados sem muitas mediações: “se a escola fecha, eu fico sem aula”, ou então “se não tem merenda, eu não tenho como estudar com fome”. Ao tomarem pé do problema, optaram sem perda de tempo por uma forma de luta que pôs em xeque o funcionamento normal da educação e subverteu a disciplina escolar, impondo às instituições sua própria disciplina e organização. Foi-lhes assim possível, entre outras coisas, encontrar material didático novo apodrecendo em armários e depósitos e denunciar a situação; buscar apoio junto a outros setores da sociedade e promover formas alternativas de educação (ainda que por curto prazo); enfim, abrir a escola pública ao público e projetar, mesmo temporariamente, novos modelos de sociabilidade.
E nas ocupações-susto, não é o que ocorre? Não somos, todos nós, afetados pelos cortes na saúde pública, na previdência, na produção cultural? Sim, claro, é evidente. Negá-lo seria ridículo. O problema está em outros cantos. A imitação de uma tática de luta exitosa nem sempre funciona, pois as condições mudam quando uma tática é transplantada de um campo de luta a outro. Comparando as condições de surgimento, continuidade e difusão das ocupações-susto com aquelas das ocupações estudantis, a situação é bem diferente.
Não é raro, por exemplo, que durante as ocupações-susto tudo funcione normalmente nos órgãos ocupados, enquanto os servidores que lá trabalham têm sua rotina ludicizada por atividades as mais diversas. É comum inclusive os manifestantes contarem com apoio ativo dos servidores e dirigentes de alguns dos órgãos ocupados, pois há casos em que as ocupações são previamente combinadas com eles, que aguardam os manifestantes de portas abertas.
A prática das ocupações forma o discurso de que os problemas causados pela crise econômica e os “pacotes de maldades” são obra exclusiva do governo provisório, quando na verdade são soluções passíveis de aplicação por qualquer governo em tal situação que deseje manter intactos os fundamentos da exploração e da opressão capitalistas. Anteriormente à ascensão de Michel Temer à presidência (porque na vice-presidência ele já estava), quando estava em pleno vigor o modo petista de governar por meio da cooptação travestida de diálogo, medidas muito semelhantes às atualmente implementadas já estavam em gestação (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), e não se vislumbrava protestos tão intensos ou tão midiáticos, apenas ações de baixo impacto tocadas por quem já estava previamente mobilizado.
Como se vê, a radicalidade da oposição ao governo recém-empossado se materializa em atos puramente simbólicos. Pior: os atos não empolgam. Não causam a mesma comoção social causada pelas ocupações de escolas. Não cabe a nós apontar razões, mas suspeitamos, como uma possível razão para o baixo envolvimento nas ocupações de outros além daqueles já previamente mobilizados, que a composição de classe das ocupações-susto seja bastante diferente daquela verificada nas ocupações de escolas — e a julgar pelo que apontaram as pesquisas sobre as manifestações contra o impedimento de Dilma Rousseff, não é difícil imaginar que sejam poucos os trabalhadores que se envolvam intensamente numa mobilização permanente como é uma ocupação.
Trata-se, aqui, de simplesmente “dar um susto” no governo provisório e de demarcar posição, somente. Um susto, só isso. Porque o Estado deve, precisa estar em pleno funcionamento quando de um possível retorno do PT à presidência — que é o limite objetivo da pauta das ocupações. O problema imediato, para os que promovem e participam das ocupações-susto, não são as condições de trabalho nos postos de saúde e hospitais, a democratização da produção cultural, a preservação de direitos de aposentados e pensionistas etc.; melhor dizendo, estes problemas os preocupam, sim, na medida em que sejam geridos pelo PT através de políticas públicas “participativas”.
E por que chamamos a atenção para estas ocupações? Exatamente pelos seus limites. Vão longe os tempos em que o funcionamento destes órgãos era paralisado pelos manifestantes, em que funcionários eram mantidos como reféns — sinal de verdadeiro antagonismo político. Passa longe, de igual maneira, a abertura dos arquivos e contas destes órgãos ao escrutínio generalizado, como os estudantes fizeram com os materiais estocados em suas escolas — sabe-se lá o que não se descobriria numa devassa destas… Passa ainda mais longe a ideia de ocupar órgãos centrais ao funcionamento da economia, como os escritórios do Banco Central — sendo que, neste caso, ninguém questiona o fato de a política econômica não ser “participativa” e “dialógica” desde sempre.
As ocupações-susto não colocam diretamente em questão problemas centrais para o funcionamento de uma sociedade baseada na exploração e na opressão. Pode ser até que, pelos seus resultados imediatos, garantam um pequeno fôlego nas agruras do dia-a-dia, ou alguma melhoria nas condições de exploração e opressão para tornar a vida menos insuportável. Mas há algo certo: pelo limite objetivo de suas pautas, aprofundam o enredamento nas malhas de opressão e exploração. Especialmente quando já se anuncia aos quatro ventos a formação de uma ampla frente eleitoral de esquerda para as próximas eleições — de que estas mobilizações seriam os primeiros ensaios — não podemos, a esta altura, nos dar ao luxo de construirmos ilusões.
As imagens que ilustram o texto são do filme Nosferatu.
Como as ocupações do MinC principalmente são heterogêneas pelo Brasil, tendo como único consenso o “Fora Temer”, seria bom que o PP dissesse de onde pegou informação para fazer essa análise e chegar às suas conclusões.
Deixando de lado o tom do artigo, o que primeiro se observa nele é a contradição entre a parte que diz “Em qualquer conflito social as táticas de luta não são aquelas que desejamos ou gostaríamos, mas sim, e sempre, aquelas que se tem à mão”, para depois afirmar sobre as ocupações em tela, com uma certeza que o leitor não sabe de onde foi retirada, que: “trata-se, aqui, de simplesmente “dar um susto” no governo provisório e de demarcar posição, somente. Um susto, só isso. Porque o Estado deve, precisa estar em pleno funcionamento quando de um possível retorno do PT à presidência — que é o limite objetivo da pauta das ocupações.”
Afinal, com todo conhecimento que o PP tem das ocupações pelo país, elas são a tática que se tem à mão ou se usa ela porque o interesse e objetivo é apenas dar um “susto”?
A crítica seria boa e válida se ela se detivesse no que está ficando claro já pelo menos a parte dos ocupantes: que eles não estão incomodando, que eles não estão atingindo o capital. Mas o texto faz essa crítica como se os ocupantes fossem petistas de má fé, e não que como se estivessem usando as táticas que tem às mãos no momento, e como sendo capazes de refletir sobre elas, e redefini-las. Por isso e pelo tom, o artigo acaba sendo altamente sectário, para dizer o mínimo.
É tolo achar que as pautas, e mais importante, os desejos dos tais ocupantes se limitam ao que o texto aponta. E mais, que essas lutas uma vez desencadeadas não possam ir para além do horizonte inicial delas. Ou pegaram uma ocupação de uma cidade com as características apontadas no artigo e generalizaram erroneamente para todo o Brasil.
Outra contradição que me parece é um coletivo que sempre afirmou que a forma dos movimentos são mais importantes que a bandeira (a pauta), afirme que pelo limite objetivo das pautas dessas ocupações elas aprofundam o enredamento nas malhas da exploração e opressão. Precisa avisar pro pessoal aqui do Ocupa MinC -SC isso aí… que se eles estivessem em casa vendo TV estariam ajudando mais a luta anticapitalista.
Aí chegamos na ´”radicalidade” tal que é típica da inércia das seitas de extrema-esquerda. Assim prefiro mesmo o Baudrillard de 1980, que afirmava logo que o que curto-circuitava o sistema era a não participação, a passividade.
Ah, mas não é isso que estamos dizendo… Mas como não? Não estou vendo a ocupação do Banco Central!
0800 BISCOITO FINÍSSIMO
Recomendo – com ênfase redobrada, aos nauseados com o pindorâmico varejo político e suas varejeiras moscas (de esquerda & direita, recíproca e simetricamente contrarrevolucionárias) -: SOCIEDADE BURGUESA (DE UM E OUTRO LADO DO ESPELHO: La Comédie humaine) e OS SENTIDOS DAS PALAVRAS (Terminologia econômica e social em La Comédie humaine), cujo autor, João Bernardo, em copyleft de boníssima hora disponibilizou na internet & alhures…
JB flana: passapalavrando alegorias, analogias, metáforas social-históricas & análises percucientes para gozo estético-intelectual de doutos, leigos, virgilianos, dantescos etc., leitores (ou não) de Balzac.
O também balzaquiano (sic) Marx aprovaria.