Por Passa Palavra
No início desta semana, os Secundaristas em Luta―Go divulgaram um documento em que o Governo de Goiás comunica a revogação dos chamamentos públicos que entregariam a gestão de 83 escolas e institutos técnicos para Organizações Sociais (OS). Considerando que o governo de Goiás planejava concluir a licitação até o fim de junho, trata-se de mais uma conquista do movimento contra os projetos de precarização da educação do governo estadual. Mas em que contexto se dá essa conquista? O que ela significa para os lutadores da educação no estado?
As condições que a luta dá
O motivo para a revogação, segundo o governo, é a falta de adequação dos editais aos procedimentos de chamamento e seleção das OS estabelecidos pela nova redação da Lei 19.324/2016. Ora, quais são as mudanças estabelecidas por essa nova redação que ocorreu esse ano? Vejamos o que a própria Raquel Teixeira diz:
Em primeiro lugar, houve uma mudança na própria legislação estadual das OSs, que impôs limite de teto a salário de diretores, regras contra nepotismo, coisas que não havia no primeiro edital e que estão muito claras agora. Nós criamos a demanda de um sumário executivo, por exemplo, da proposta em que a pessoa vai ter que, de forma clara e objetiva, falar como resolverá determinados problemas, coisas que a gente não tinha exatamente como cobrar da outra vez. (…) Está bem explícito agora na própria lei estadual das OSs (15.503/2005) que foi alterada em maio último. Não poderão participar pessoas com processos administrativos, julgadas, com processos transitados em julgado ou não. Se vocês acompanharem a nova lei vão notar que existem travas muito importantes.
Todas essas mudanças, sem exceção, são resultados das críticas públicas ao projeto das OS na educação. Essas críticas só ganharam força com o movimento de ocupação das escolas. As alterações visam impedir situações embaraçosas como as criadas no início do ano pela recomendação do Ministério Público de suspensão do edital e da reportagem da Nova Escola em que se revelavam OS com donos desconhecidos, sem equipes, sem sede, sem nada .
É evidente que essas insuficiências só se tornaram um problema por conta da pressão exercida pelo movimento de secundaristas, universitários e trabalhadores da educação. As deficiências eram as mesmas presentes nas OSs que hoje gerem boa parte das instituições de saúde do Estado, e nem por isso os editais foram suspensos ou revogados. Foi a luta que tornou essas questões técnicas e jurídicas problemas políticos para o governo do Estado, rearranjando seus equilíbrios de poder internos. Essas novas condições geradas para a luta criam dificuldades adicionais para a implantação do projeto, que até hoje se sustentam.
Novamente a resistência
As denúncias se sucederam da mesma forma no caso dos editais das escolas técnicas, e ganharam expressividade com uma série de protestos ― alguns pequenos mas estratégicos, outros maiores. O diálogo com o poder público foi o costumeiro na cidade ― nenhum. Não por acaso, um protesto que tinha como objetivo entregar uma carta para Thiago Peixoto, da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SED), resultou na intervenção mais violenta até então da polícia contra o movimento, além de duas prisões arbitrárias com processos judiciais. De forma sintomática, aos policiais feridos no conflito foram prometidas promoções por “ato de bravura” e não houve grande repercussão para as denúncias de brutalidade policial.
O estopim da repressão e da expressão de resistência nesse processo se deu, no entanto, na ocupação do Centro de Estudos Profissionais Basileu França no dia 29 de junho. A ação foi feita um dia antes da data em que se previa a divulgação das OSs selecionadas para gerir essa escola e outras 82. Trata-se de uma das maiores escolas técnicas do estado, “menina dos olhos” do governador, com muita visibilidade.
A ocupação ocorreu sem qualquer tipo de entrada forçada, arrancou um acordo do diretor da escola pela permanência dos alunos e conseguiu apoio jurídico na hora para intermediar com a polícia. Mas os secundaristas foram surpreendidos: sem nenhum tipo de mandado, negociação ou crime, a polícia avisou que iria desocupar por ordem direta do Secretário de Segurança Pública e Vice-Governador José Elito. “A ordem é pra descer o pau e prender todo mundo”, foi o que disse o comandante da operação aos secundaristas. De forma inédita no Estado, se mobilizaram dezenas de viaturas, tropa de choque e ônibus para levar os presos em uma ocupação de escola, não de um prédio público. O precedente que conseguimos ver desta ação foram as desocupações sem mandado realizado em algumas ETECs e Diretorias de Ensino em São Paulo ― e percebemos uma ação similar na desocupação ilegal da Fábrica de Cultura na Brasilândia.
O governo arrega?
Mesmo surpreendido e forçado a recuar na ocupação, o movimento anunciou que continuaria irredutível na oposição ao projeto e ficou visível que, mesmo sem ocupação por longo prazo, um susto foi passado no governo e na gestão das escolas ― que reforçaram a segurança em absolutamente todas as escolas e deram férias coletivas para os funcionários. A publicação do resultado do edital foi adiada, e uma semana depois foi publicada a revogação dos editais. No mesmo dia da revogação, 8 de julho, o titular da SED Thiago Peixoto anunciou sua saída do cargo. Figura estratégica dos projetos de precarização (ou “desburocratização”) do governo, sua saída embaralha e deixa indefinida a questão da terceirização da gestão das escolas técnicas, em suspenso por alguns meses.
Vale lembrar que Thiago Peixoto é, há vários anos, uma figura importante para a educação do estado de Goiás ― foi ele o responsável pela implantação do Pacto Pela Educação (como se pode ver aqui e analisado criticamente aqui) ― antecipando já em 2011 a agenda da austeridade através da “boa gestão de recursos”. Na Secretaria de Educação, conseguiu derrotar a greve dos professores e o SINTEGO (Sindicato dos Trabalhadores da Educação em Goiás) em 2012, impor o Bônus Reconhecer, os tutores de escola e cortar boa parte da titularidade dos professores. A derrota temporária das OSs no início do ano e agora foram também derrotas para esse secretário e seu projeto, não apenas para Raquel Teixeira e Marconi Perillo.
Dentro de suas limitações, a forma autônoma, horizontal, não corporativista e intransigente de luta assumida pelo movimento Secundaristas em Luta ― ou Educação em Luta ― ainda dá mostras de vitalidade e capacidade de explorar as fragilidades e divisões internas do Estado para arrancar vitórias. Esses acontecimentos são expressivos do que ações que conseguem incorporar elementos de solidariedade de classe e resistentes aos mecanismos de cooptação estatal são capazes de conseguir ― mesmo em um contexto de forte repressão, perseguição e diante de um governo também intransigente.
Reorganização das forças
Raquel Teixeira já anunciou mais um edital ― dessa vez “imbatível” ― realizado em parceria com o Banco Mundial para 23 escolas de Anápolis. Vejamos nas palavras dela:
Foi aberto um novo edital, nós temos um potencial muito grande de concorrentes, tínhamos apenas 10 concorrendo naquela primeira vez, hoje temos 43 aprovadas ou em processo de aprovação, inclusive de outros estados. No workshop de ontem trabalhamos até o tipo de proposta técnica que tem que ser apresentada e corrigimos alguns problemas que nós detectamos nas propostas técnicas apresentadas da outra vez. Acho que teremos um patamar de qualidade bem mais alto.
Tudo indica que a pequena vantagem e tempo obtido pelas lutas anteriores serviram também para que o Estado reforçasse o leque de grupos interessados na proposta e sua consolidação técnica e jurídica. Assim como os trabalhadores, o Estado não perde tempo.
Em outro plano, os trabalhadores da educação anunciam uma greve para agosto, principalmente pela questão do pagamento do Piso Salarial ― uma greve cuja mobilização o SINTEGO vem adiando na esperança de poder resolver a questão judicialmente, como se vê na mobilização voltada para as audiências judiciais que discutirão a questão. Salvo algumas exceções marcantes e esforços tímidos, a ausência dos docentes e administrativos no debate sobre a gestão das escolas foi notável. Isso ocorreu tanto no debate das escolas públicas quanto nas escolas técnicas. Malgrado as razões, que não cabe discutir agora, trata-se de uma limitação séria que não dá sinais de resolução por parte dos professores.
Talvez os esforços no debate das formas de trazer novas pessoas para a luta, os debates acirrados sobre a Escola Sem Partido, as ações de solidariedade e chamamento realizadas pelos secundaristas em assembleias de professores e o exemplo da luta dos aprendizes e arte-educadores em São Paulo (que também mostraram dificuldades) mostrem caminhos novos para essa luta além dos limites postos? Além do corporativismo do sindicato, além da derrubada infinita dos editais e, em ambos os casos, rumo a um questionamento mais profundo das relações vigentes nas escolas e das implicações da austeridade sobre as nossas vidas enquanto trabalhadores.
As imagens são das obras de Joaquín Torres Garcia
o estado tem suas ferramentas e nos enredamos nela as vezes
as ONGs sempre drenando forças dos movimentos sociais, simulacro de participação social
Ótimo texto. Entregar equipamentos de educação, cultura, saúde e lazer às OSs é aumentar o investimento e precarizar o atendimento. Passa-se a gastar mais e a beneficiar menos, tanto quantitativa, como qualitativamente. Direitos sociais não são serviços e devem ser garantidos e executados pelo estado.
Gostei do texto! Nos revela a luta potente dos estudantes e o papel do estado. Curiosa é a ausência dos professores e técnicos no processo. Será por conta do controle exercido pelas burocracias sindicais ou do aumento da alienação que acomete cada vez mais os trabalhadores da educação? Ou as duas coisas e algo mais?