É preciso abrir o debate sobre a delimitação dos bairros de Salvador para a participação e deliberação pelos sujeitos que dão vida à cidade. Por Glória Cecilia Figueiredo, Thais Rebouças e Brais Estévez-Vilariño*
“[…] pois discutir soluções é dar a outros o poder de formular o problema a ser resolvido” (Isabelle Stengers)
A volta à cena do Projeto de Lei que propõe uma atualização da delimitação de bairros de Salvador, com base na Pesquisa do Projeto Caminho das Águas, precisa avançar em algumas questões centrais. Neste sentido, parece-nos importante ampliar a discussão em torno do mesmo, submetendo ao crivo popular por meio de audiências públicas, que não sejam simulacros de participação, mas também de assembleias e debates abertos e igualitários, protagonizados pelos habitantes.
Nesse Projeto de Lei, que está baseado na noção de unidade territorial com relativa autonomia, o reconhecimento de bairro é confundido com a ideia de regionalização por unidades administrativas. Os bairros não são lugares homogêneos nem estáticos, pelo contrário, abrigam diferentes usos, versões, formas de realidade, apropriações e percepções, inclusive quanto aos seus limites, de geometria, historicamente, variável. Assim, igual que o mundo é um, mas múltiplo, as práticas dos habitantes, constituintes de um bairro, se entrecruzam, conflitam e ou convergem numa referência comum, mas não idêntica, de lugar.
Este entendimento de bairro como agenciamento coletivo urbano não se confunde com unidades de gestão administrativas, condicionadas pelas diferentes concepções e sentidos de programas ou políticas públicas. Os critérios distributivos ou de abrangência variam, conforme a especificidade da política e do atributo em questão. Ao mesmo tempo, diferentes políticas incidem no espaço de um bairro. Essa distinção é importante, como também o é a necessidade de que a ação estatal considere e reconheça a multiplicidade dos diferentes bairros, suas singularidades e questões comuns da cidade.
Neste sentido, vemos como problemática o critério “objetivo” de existência de três atributos entre unidade de saúde, de unidade de ensino, logradouro e de transporte público regulamentado para haver reconhecimento do bairro. Não deveria de ser um foro coletivo, aberto e híbrido, o espaço no que essa objetividade viesse a ser elaborada?
Essa exigência também negligencia o fato de a precariedade infraestrutural, técnica e coletiva da cidade ser um dos principais vieses de Salvador e das cidades latino-americanas. Os bairros populares soteropolitanos e seus habitantes precarizados (re)existem mesmo diante da ausência deliberada do Estado na provisão desta infraestrutura e equipamentos, (re)criando estratégias e modos de vida coletiva que, além de uma ‘lógica’, produzida por múltiplos processos ‘racionais’ e sociomateriais determinados,– produzem comuns urbanos, sustentam a cidade e articulam pertencimentos coletivos com regimes de visibilidade heterogêneos.
Esse critério “objetivo”, portanto, invisibiliza lugares precários ao invés de priorizar a provisão de infraestrutura nos mesmos. Além disto, parece-nos que esse critério se torna evasivo ao não precisar o caráter dos atributos de referência, num sentido de afirmação de direitos coletivos, inclusive avaliando se a sua qualidade e quantidade, com relação aos tamanhos de contingentes e densidades populacionais abrangidos, são adequadas.
Por mais que o Projeto de lei de delimitação de bairros esteja pautado em certas noções de identidade e pertencimento dos moradores que participaram da pesquisa Caminho das Águas, os 163 bairros propostos continuam sem reconhecer a maior parte dos bairros da cidade, do modo como são (auto)construídos, vivenciados e percebidos pelos seus habitantes.
Apenas considerando os endereços de projetos de construção e reforma licenciados pela prefeitura nos últimos 16 anos, ou seja, a parte ínfima da cidade que acede ao formalizado direito de propriedade, podemos identificar mais de 130 bairros — designados pelos responsáveis pelos projetos aprovados — que não constam na relação do Projeto de Lei. Como exemplos destas ausências temos desde bairros históricos como Alagados, 2 de Julho e Gamboa aos “novos bairros” (?) produzidos pelo mercado imobiliário na forma de grandes condomínios fechados, como o Alphaville.
Particularmente sobre o bairro 2 de Julho, sugerimos que conheçam a luta do Movimento Nosso Bairro é 2 de Julho pelo seu reconhecimento em reação a projetos especulativos, gentrificadores e contra a tentativa arbitrária de mudança do seu nome. Esse e outros foram reduzidos ao bairro único do “Centro”. Também podemos perguntar se as Ilhas que compõem Salvador coincidem cada uma a apenas um bairro, como colocado no mencionado Projeto de Lei.
Praia do Flamengo, Campinas de Brotas, Politeama, São Lázaro, Cajazeiras IX e Mouraria, também são mais alguns exemplos desses bairros, assim reconhecidos pelos habitantes de Salvador, mas ignorados na delimitação proposta pela Prefeitura.
Também são questionáveis alguns limites, traçados na delimitação proposta, que cortam e separam, formal e simbolicamente, grupos que se reconhecem como partes de um mesmo bairro. Um destes exemplos referem-se à supressão do bairro 2 de Julho e às delimitações propostas para o que seriam o bairro Centro e o bairro Comércio. Estas delimitações dividem a Ladeira da Preguiça, uma via local, deste modo, os moradores do Beco da Califórnia passariam a fazer parte, formalmente, do bairro Comércio enquanto que os seus vizinhos do outro lado da rua seriam do bairro Centro.
O reconhecimento dos bairros, no modo como são vivenciados pelos seus habitantes, poderia permitir uma aproximação dos seus cotidianos e das especificidades dos seus lugares de vida coletiva. Esta orientação poderia convergir com um sentido de uma gestão municipal democrática e efetivamente descentralizada do Município.
Assim, a definição de unidades administrativas, que efetivamente reconhecessem os bairros existentes, poderia avançar na democratização da produção e do acesso a bens, serviços e redes de infraestruturas públicas e coletivas, considerando a diversidade territorial de Salvador e reconhecendo as demandas comuns e particulares dos moradores e usuários de cada bairro e da cidade.
No entanto, as atuais 10 Prefeituras de Bairro (quantidade de unidades administrativas menor que as 18 Regiões Administrativas anteriores e que já eram limitadas), guiadas pela lógica neoliberal e do urbanismo corporativo da atual gestão, são “de bairro” apenas no discurso. De fato elas reduzem ainda mais a aproximação com esses lugares, já que cada uma dessas prefeituras abrange uma miríade de dezenas de bairros. Parece desnecessário dizer que esta descentralização, mais discursiva do que traduzida em ação, não vem acompanhada de descentralização dos recursos orçamentários municipais, nem de uma lógica distributiva de recursos que priorize os lugares de maior precariedade, dentre outros critérios incontornáveis de justiça espacial, muito menos corresponde a mecanismos de gestão democrática que alarguem a autonomia dos habitantes de cada bairro e da cidade nas decisões sobre as políticas urbanas que incidam nos seus lugares de vida.
Diante das questões colocadas, entendemos que a discussão deste projeto de lei precisa ser ampliada, muito para além dos guardiões da razão tecnicista e do progresso, abrindo-se o debate para uma participação e deliberação pelos sujeitos que dão vida aos bairros, os habitantes da cidade. E, que se avance, antes de tudo, na maneira como essas questões serão formuladas, permitindo à multitude destes habitantes definir quais são os seus problemas e como eles devem ser enfrentados.
* Glória é professora da Faculdade de Arquitetura da UFBA, Thais é presidente da Sociedade Brasileira de Urbanismo e Brais é geógrafo e pesquisador de pós-doutorado do IGEO/UFBA.